segunda-feira, maio 23, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (5)

 


5.  Uma Vida Nova

Estendeu o olhar até ao fundo à procura de um lugar. Preferia à janela, para se distrair com as vistas. A camioneta vinha quase cheia, apenas o banco de trás satisfazia a sua preferência e para lá se dirigiu. Sentia a curiosidade dos passageiros enquanto percorria o estreito corredor até ao fundo. Ajeitou-se à ponta do banco, encostada à janela, colocou a pequena maleta de viagem sobre as pernas e, na mão, uma bolsinha de retalhos. Os seus parcos pertences.

Ali ia ela a caminho do futuro, tão incerto…

Não teve despedidas. Apenas a Graziana, no outro lado da estrada, lhe acenou e lhe fez um gesto de felicidades, com a mão no coração. Não lhe tinha revelado, nem a ninguém, a sua intenção de partir, e muito menos a decisão de o fazer neste final de Setembro de 1965, dia 29, data que no início do ano a senhora Gertrudinhas marcara no Almanaque de Santa Zita, assinalando o seu aniversário. Era uma forma diferente de celebrar os seus dezassete anos. Mas à Graziana não lhe escapou a sua intenção.

O seu passado era para esquecer. A sua mãe agonizara no hospital da Misericórdia, para onde a levaram. O pai partira para as franças e despediu-se num postal ilustrado com “esquece-me para sempre que eu não volto” e a mãe encolhera os ombros quando lhe entregaram o correio. Murmurando um “maganão” entre dentes abraçou-se a ela suspirando, talvez com alívio “Já sabes que somos só a gente”. Era finalmente uma mulher livre, mas a sua liberdade durou tão pouco. Ao cabo de meio ano foi encontrada caída e inconsciente na margem da ribeira, à Ponte Pedra, sobre o caixote da roupa que se preparava para lavar. Acudiram-lhe outras lavadeiras mas a partir daí nunca mais foi gente. Que tinha sido uma trombose, braço e perna mortos, e nunca mais recuperou o tino. Livre do marido, ficava agora talvez, com liberdade acrescida, ao deixar este mundo onde tão castigada tinha sido.

Vitoriana procurava também a sua liberdade. Libertar-se da maldade da tia-madrinha, que assim que a mãe adoeceu a pusera como criada de casa e das filhas, umas inúteis preguiçosas e más. Não queria voltar para o canto da despensa, onde a esperava a escuridão, o mofo da enxerga velha, as alpergatas de sola de corda fosse Verão ou Inverno.

Tinha-lhe valido a boa alma da senhora Gertrudinhas que, conhecendo as suas necessidades e os maus tratos a que era sujeita, conseguiu levá-la para sua casa a troco dalgumas notas para a tronga da tia, responsabilizando-se pela roupa e comida. Até então, aos doze anos, fora a melhor coisa que lhe acontecera. A senhora Gertrudinhas precisava mais da sua companhia do que de outros serviços.

Esteve com ela três anos que passaram tão depressa. Até que a senhora dera uma queda e o filho a levou para Faro. Mas o sol põe-se todos os dias… e deu-lhe um mês para deixar a casa. Mas sair para onde? De novo para a casa da bruxa da sua tia? Não. Nunca mais. Mesmo que a Guarda a obrigasse, haveria sempre de fugir. Portanto, era o tempo de cortar com essa vivência e arrumar a sua história num rol para esquecimento.

Começava assim uma nova vida, na camioneta dos Belos a caminho de Lisboa. Esta Quarta-feira era o dia de cortar com o passado, assim lhe ajudasse o Santo Antoninho, graças a Deus.

Uma apitadela e um solavanco marcaram o momento do arranque. Alguns que ainda estavam de pé sentaram-se rapidamente. A camioneta fez a curva, — um último olhar para a tabuleta assinalando Lisboa a 238 Km —, rodou na ponte sobre a ribeira e lançou-se pela estrada da várzea, ou melhor, pela estrada de Lisboa. Ia nervosa com a aventura… as suas únicas saídas da vila tinham sido até Lagos, e sabia que Lisboa, a capital, não tinha nada a ver com a cidade algarvia. A Graziana, que visitava quase diariamente na Central dos Despachos, é que lhe dera as informações com que foi alinhavando o seu plano secreto, quando em conversas triviais lhe punha as suas dúvidas “A última paragem da camioneta não tem nada que enganar: é mesmo ao lado do embarque no vapor; e depois são só três quartos de hora até chegar ao Terreiro do Paço”.

No Rogil entraram três rapazes, despedindo-se das famílias com alarido, acenavam para a rua à medida que se deslocavam até ao fundo da camioneta. Atiraram-se para o banco traseiro, brincando uns com os outros. Não lhe tocaram sequer, mas sentiu-se incomodada. Além disso as caras não lhe eram estranhas. Talvez das festas da Senhora D’Alva ou talvez da escola, pois havia moços da Charneca que iam à escola da vila. Sim, devia ser da escola. Não se aquietaram antes de Odeceixe. A camioneta parara e havia sempre movimento de passageiros pelo que eles aproveitaram para sair. Pediram-lhe que desse um olho nas coisas que deixaram a marcar os lugares. E ficou a vê-los na taberna a bebericarem uns copinhos de anis. Continuou ela a vaguear pelo seu plano, extraído direitinho de “Uma Vida Nova”, um folhetim que ela lia e relia para a senhora Gertrudinhas, rindo-se ou comovendo-se, consoante, tsche, tsche...

Foi sobressaltada com o regresso dos rapazes. “Brigado” murmurou-lhe um enquanto se sentava, desta vez com maneiras e mais próximo dela.

Deu-lhe um toque de cotovelo e perguntou-lhe – Conheço-te da escola, não é verdade? Andámos juntos com a menina Zabelinha, não te lembras?

Ela acenou apenas, afirmativamente. Já se tinha lembrado dele.

— Eu sou o Agostinho. E Tu? Ana? Não, qualquer coisa a acabar em ana, não é? És a Viviana, do cerro do Forte.

— Não. Vitoriana. Sou a Vitoriana, — respondeu, sem desviar o olhar, rematando a conversa desejosa de retomar a solidão dos seus pensamentos... Não estava disposta a grandes revelações, nem sequer ia permitir a este Agostinho, um paspalhão que lhe aparecera de repente, nem a quem quer que fosse, lhe entrasse pela alma a dentro.

 

Praia de Buarcos, Nov 2021


CASAS NO FORTE - Folhetim (4)

 

4. Já bateu!

 Francisco tinha estado a almoçar na Vila do Bispo com o Joaquim Marreiros, seu velho amigo e colega de faculdade, com quem se encontrava sempre que vinha até Aljezur. Invariavelmente atacavam uns percebes e terminavam com uma massinha de peixe, comida leve porque era preciso manter a forma. Aqueles almoços eram sempre um acontecimento, cabendo ao Joaquim a escolha do peixe a confeccionar com a massa, especialidade da casa, caprichada pela Tia Arminda. Reviviam episódios dos tempos de estudantes e também de trabalho, pois ambos tinham entrado para o Ministério dos Negócios Estrangeiros no mesmo dia. Joaquim saíra mais cedo e tinha-se estabelecido na sua terra natal como advogado e solicitador, enquanto Francisco se tinha transferido para o corpo das embaixadas e sido colocado em Paris.

Apressaram o café e a continha que dividiram, hábito que lhes ficara de tempos mais magros. Despediram-se com um abraço e um “até qualquer dia”.

Eram duas e um quarto da tarde; Francisco tinha de estar no notário em Aljezur para uma escritura marcada para as quatro. Estava com tempo.

Pôs-se a caminho no seu jipe UMM, carro que mantinha em boa forma, apesar dos muitos quilómetros já percorridos. O pouco conforto era compensado pelo prazer de circular em todo o terreno. Quase sem dar por isso, já a Carrapateira lhe aparecia a seguir à curva. Faltavam cerca de vinte quilómetros para a vila. Era um sítio simpático este, e sempre que por ali passava vinham-lhe à memória as férias dos seus oito e nove anos. Uns dias inesquecíveis em casa dos tios, sempre disponíveis para o receber, tanto quanto a sua mãe o autorizava a ir. Quando um dos tios aparecia na vila, pedia-lhe que o levasse… para a casa do outro! O “programa” era sempre aliciante, fosse em que casa fosse. No tio da aldeia, era frequente o levantar de manhã cedo, consoante a maré, para ir à Praia do Amado fisgar uns linguados na rebentação.

Noutras ocasiões ficava no Casal do Bem Formoso, mais conhecido por À dos Torres, propriedade dos outros tios. Lá as actividades eram diferentes, cavalgar a mula em pelo — só com uma saca pelo lombo —, ou dar comida aos bacorinhos e à criação, regar o milho e ainda abanhar no tanque de regas.

Divagando com ia, já a Bordeira ficara para trás. Nas curvas da subida, estavam meia dúzia de carros parados atrás de um camião carregado de cortiça. A carga precisava de ser aconchegada porque as cordas tinham afrouxado. Cautelosamente os carros iam à vez ultrapassando o camião. À sua frente estava um velho Mercedes 180 que arrancou lentamente com uma fumaceira negra. A vinda de outro carro em sentido contrário fê-lo suspender a ultrapassagem e recuar para o ponto donde arrancara. O condutor não conseguiu controlar a manobra e acabou por bater com a traseira na frente do UMM.

— Já bateu! — Exclamou o Francisco, mais interiormente do que em voz alta.

O jipe estava equipado com um guincho pelo que o embate, justamente no gancho, fez saltar a tampa da mala do Mercedes que lentamente se entreabriu, deixando ver o conteúdo: um carregamento de pacotes de cigarros Marlboro. O condutor do Mercedes, baixinho e barrigudo, apressou-se num saltinho para baixar a tampa da mala, mas esta não se prendia. Não conseguindo evitar a revelação da suspeitosa carga, gritou ao seu acompanhante que lhe trouxesse um cobertor do banco traseiro e com ele tapou atabalhoadamente a mercadoria.

— Vai lá ao camião pedir uma corda. — Gritou para o seu acompanhante; e para o Francisco: — O senhor já viu bem o que fez? Se tivesse mantido a distância nada disto tinha acontecido.

— Desculpe lá, mas eu estive sempre parado. O senhor é que recuou para cima de mim. Portanto, não me venha com essa conversa.

Entretanto pararam duas motorizadas. Os dois homens cumprimentaram os outros dois, perguntando se havia azar e se era preciso alguma coisa que eles até tinham visto tudo.

— Não é preciso nada, isto resolve-se já. Tou com pressa; tenho pessoal à espera na vila.

— E eu tenho uma escritura em Aljezur daqui a meia hora… — impacientava-se o Francisco.

O do Mercedes percebendo que ao Francisco também lhe interessava sair da situação rapidamente, propôs-lhe encontrarem-se no Primavera ao fim da tarde.

Anotaram-se nomes e matrículas e assim fizeram um intervalo no problema.

*

A papelada estava toda em ordem e a escritura resolveu-se rapidamente. Conhecia o vendedor desde sempre, João Maria, filho da Ti Amélia, e acabaram no Primavera para fechar a transacção com uma cerveja.

Bebericavam e conversavam até que , à porta apareceu o do Mercedes.

— Ah! Já cá está! – E dirigindo-se ao João Maria, — e tu, conheces este senhor! Sabes que ele me amachucou o carro?

— Espere lá! Eu estava parado e o senhor é que recuou para cima de mim. Pensei que isso tinha ficado claro.

O do Mercedes sentou-se à mesa, sem cerimónia, e pediu uma Sagres.

— Conheço este senhor, e tu também. Andámos juntos na escola. Não te lembras do Chico Marujinho?

— O Chico Marujinho?! — Surpreendeu-se o do Mercedes. — Eh pá! Estás tão diferente, e a barba…

— E tu, quem és? José Moreira — recordando a anotação — não me lembro.

— Pois calculo que não, que não te lembres. Morava aqui, no Degoladoiro… — Apontou para a colina; e passando o lenço de mão pela cabeça lisa, acrescentou em desabafo que, noutro tempo, tinha mais cabelo. Zé da Moleira.

— Ah, sim, olhando-te melhor… O Zé da Moleira!

Na estrada tinha-lhe ficado aquela impressão que, mais cedo ou mais tarde, nos invade a todos. “Parece-me uma cara conhecida. De onde é que o conheço? Será da tropa?”

— Sim, sem dúvida. Imaginando-te naquele tempo. Então o que fazes agora, moras por cá?

— Olha, cá e lá! Tenho por aqui uns frigoríficos e compro percebes e lagostas para umas cervejarias de Lisboa.

— E quanto ao toque no carro? Estive a ver o teu jipe e não se nota nada! O que ficou pior foi o meu Mercedes que tenho de mandar arranjar.

— Mas foi um acidente? Como? — O João Maria esperando pormenores.

Ao que o Zé da Moleira respondeu: “Foi aqui o Chico que me deu cabo do fecho da mala”.

— Outra vez! — Interrompeu o Chico. — Eu estava parado. Se quiseres fazer a Participação Amigável, faz-se.

— Eh! Deixa, ficamos assim. Cada um paga o seu e pronto. — E aproximando-se do ouvido do Chico — E tu também não viste nada, não é? Quero dizer, não tiveste tempo de ver nada.

— Tu viste que eu vi e eu sei bem o que vi. Portanto…— Chico, encolhendo os ombros, mas querendo deixar claro que a situação poderia trazer complicações para o outro.

O João Maria virava a cabeça ora para um ora para o outro, sem perceber bem o que se estava a passar.

— Bem… Então ficamos quites ou não? Olha, gostei de te voltar a ver. Pagas a minha cerveja. Vou à minha vida.

Chico viu com alívio o afastamento da melga do Zé da Moleira. “Ficamos quites!”. Lata não lhe faltava. Por ele estava bem. Acabava-se de vez com aquele assunto que até se podia complicar… para o “exportador de marisco”, claro. No entanto não quis fazer grandes adiantamentos ao João.

— Queres mais uma? Ah não? Então vamos andando? Olha, arranja-me lá os contactos desses amigos, pode ser que me façam a obra.

Praia de Buarcos, OUT 2021 

CASAS NO FORTE - Folhetim (3)

 


3. Da Zimbreirinha à Praia da Fortaleza 

O sol ia-se aproximando da linha do horizonte, pintando à superfície das águas a longa estrada que em sonhos nos levaria até ele, senhor da luz… e do seu contrário, já que as trevas só existem quando ele adormece. A estrada dourada morria na praia. Esta, por sua vez, não era mais do que uma estreita faixa de areia estendendo-se entre os rochedos que entrando pelo mar, fechavam a baía, ornada a sul pela sentinela gigante que é a Pedra da Agulha. Do cimo da falésia, dominava-se toda aquela imensidade de água verde-azulada que acariciava a areia e beijava as rochas com uma doçura pueril. Pela encosta abaixo ficavam os casebres disformes dos pescadores; casas que haviam primeiramente sido construídas de braceja seca, colhida no barranco que, em tempos de invernia, corria para a praia do Monte Clérigo. Posteriormente, à custa de muito esforço e ajudas, foram lentamente levantadas as paredes, tabiques de barro e pedras, um tipo de taipa mais estreita e rudimentar. Desprezavam qualquer embelezamento e até alinhamento com casas vizinhas e distribuíam-se em socalcos que os pescadores foram escavando e murando, transformando veredas em dois metros de rua.

As crianças, poucas, costumavam brincar na praia. Corpos nus, inocentes, rebolavam-se na areia e na espuma da babugem; os mais crescidotes já desafiando o mar, cortavam as ondas com agilidade. Depressa adquiriram a destreza que lhes viria a ser indispensável quando, maiorzinhos, integrassem a companha do bote familiar. Exibiam a sua pele escura, curtida pelo sol e pelo salitre, mais vezes molhada com água salgada do que com água doce, tão escassa e trabalhosa.

Os homens trabalhavam de dia ou de noite, conforme as marés e o tempo. Firmes mesmo quando o mar os fazia dançar, deitavam as redes ou os aparelhos presos a bocados de cortiça amarrados uns aos outros, com uma cana que às vezes tinha um trapo colorido para ajudar a localização e a propriedade, honestamente respeitadas.

As mulheres, na sua maioria, ocupavam-se das casas e da família. Tinham a seu cargo preparar as refeições, incluindo o farnel, e o abastecimento da água, recolhida em enfusa na rocha-sul. Era sua a responsabilidade por escalar e secar para conserva as moreias, os polvos, as lulas e as arraias.

Os mais velhos, quando já não iam ao mar, ajudavam na feitura e no conserto das redes, ou empatando os anzóis nos terminais da sedela para a preparação dos aparelhos.

A vida era monótona na Fortaleza. Meia dúzia de casebres para uma dúzia de famílias. Muitos gatos e muitas galinhas e, numa zona mais afastada, a fila de pocilgos onde algumas das famílias criavam o seu cevão para o Inverno. Havia também a venda do Vítaro, que afectara ao negócio a cabana que tinha sido do burro, mobilando-a com dois bancos junto à parede e um tosco balcão de tábuas que o mar lhe trouxera. O Vítaro teve de deixar o mar quando naufragou durante um temporal. Era um homem muito precavido e quando o mar ficou mais agitado enrolou à volta da barriga um largo cinturão que tinha preparado com cordas e bocados de cortiça. Naufragou e foi um milagre o seu salvamento. O mar foi depositá-lo, inconsciente, na Boca da Barra, levando-o pelo rio acima até aos Salgados onde foi recolhido pelo lavrador do Bertual. Com um ombro escangalhado nunca mais recuperou a força no braço, nem voltou à faina.

Pouco antes, no ano de 1840, ali desembarcou o Manuel Francisco, também conhecido por Manel Carrapato. Natural da Carrapateira dedicava-se à pesca no portinho da Zimbreirinha, num bote a meias com o seu irmão. Em dia de mar cão, não conseguiram controlar o bote e este despedaçou-se contra o rochedo. O irmão morreu e ele ficou por lá, sem barco nem trabalho. Os da Fortaleza passavam pela Zimbreirinha de vez em quando e um dia em que ajudou o Vítaro com os covos, seguiu com ele e mudou o poiso, mendigando a subsistência em troca de pequenos trabalhos. Acabou por ser a ajuda do Vítaro quando este ficou incapacitado: habilidoso de mãos foi ele quem lhe preparou uma nova cabana para o burro e lhe amanhou os bancos e o balcão para abrir a venda. Era com a sua força que o taberneiro contava e acompanhava-o nas suas deslocações semanais à Azia, para ajudar a carregar o burro: dois barris de 50 litros de vinho tinto e branco e mais dois pequenos com a medronheira.

Com estas práticas acabou por propor ao amigo uma sociedade: o Vítaro entrava com o burro e ele garantiria o abastecimento do vinho, ao mesmo tempo que levava peixe para vender na vila e se encarregava de outros mandados.

Saía de madrugada para chegar à vila ainda manhã cedo. Fazia uma paragem no Monte dos Vales, como toda a gente que por ali passasse, para uma sede de água, desta que tinha fama e que tirava do poço com o caldeiro de folha que partilhava com o burrico. A sua venda começava ali. A patroa ou a filha, a Ana Rosa de olhar doce, esperavam já por ele para um gudião ou um safio para as batatas de caldo.

Fosse qual fosse o tempo, chuva ou sol, com uma saca enfiada pela cabeça ou apenas com um gorro, seguia pelas veredas até à encosta do Castelo e descia pelo rua do Degoladoiro. Levava consigo um grande búzio que tocava a anunciar a sua chegada.

— Mest’e Manel, o qué que traz hoje? O mê home só me pede moreia. Arranje lá uma.

Praia de Buarcos, Abr2021


CASAS NO FORTE - Folhetim (2)

 

2.  O Exame de Admissão de 1958

Eram apenas cinco: o Tóino das Ovelhas, o Arménio do Rogil, o Zé Manel da Igreja Nova, o Ruizinho de lá por trás e ele, Francisco José Marreiros, também conhecido por Chico Marujinho. Juntavam-se ao fim da tarde em casa da Dona Inácia para se prepararem para o exame de admissão.

Estudavam a lição, esclareciam os significados e faziam a análise gramatical; ela em seguida questionava-os:

— Qual é o sujeito da primeira oração? E o complemento directo? Cantem-me agora os pronomes demonstrativos, bem afinados e sem enganos!

Exercitavam a Aritmética com contas de horas, áreas e volumes; reviam a História com as Dinastias, os Reis e os seus cognomes e entravam na República com relevo para o Estado Novo, cujas principais figuras — Craveiro Lopes e Salazar — ilustravam em folha inteira os seus livros.

— Não se esqueçam que o General Craveiro Lopes é o Senhor Presidente da República, o mais alto magistrado da Nação, e que o Primeiro-ministro é o Senhor Doutor António de Oliveira Salazar, o salvador da Pátria.

— Porque é que ele é o salvador da Pátria? — Era o Zé Manel, o “Curioso”.

— Porque sim. Olha porque se não fosse ele Portugal tinha entrado na Guerra. — E apontando para cada um deles — E o teu pai, e o teu e o teu teriam ido de espingarda ao ombro; e até podiam ter morrido!

E com estas respostas lhes arrefecia a pouca curiosidade que os temas suscitavam.

O que se dava naquelas explicações era tudo o que já tinha sido dado na escola e o que ainda estavam a dar. Talvez mais aprofundado; um pouco mais que meras revisões para avivar a memória. A professora insistia em que se devia saber tudo de cor. Os rios e as serras, as linhas e os ramais do caminho-de-ferro, os distritos e as suas capitais, o corpo humano e os seus diversos aparelhos.

Era tudo muito a sério com a Dona Inácia, que nunca sorria, não dava confiança. Ali não havia reguadas, mas se algum se distraísse tinha garantido uma palmada na nuca ou até, como aconteceu com o António quando apareceu com mais de uma hora de atraso, um puxão de orelhas que ele até chorou. Por mais que se justificasse com o tresmalho das ovelhas, de nada lhe valera. Não foi por isso com certeza, mas os pais dele desistiram alegando que, naquela altura, precisavam da sua ajuda para o pastoreio dos bichos, e assim ele se libertou deste esforço e clausura.

As explicações tinham lugar naquela casinha fria no quintal da Dona Inácia desde as férias do Natal. Era uma espécie de despensa onde guardavam a fruta, as abóboras e os potes do mel. O pote que estava a uso pingava da torneira para um pequeno alguidar de barro onde passavam o dedo indicador sempre que a professora se ausentava.

O exame de Admissão era uma etapa obrigatória para aqueles que queriam continuar a estudar. O Chico e o Arménio iriam fazê-lo em Lagos, na Escola Industrial e Comercial, pelos finais de Julho, os outros foram para o Liceu de Portimão.

Os 31 km que separavam Aljezur da cidade eram, naquele tempo, uma barreira de difícil transposição. O Chico e a mãe foram na camioneta dos Belos, uma daquelas que tinha o nariz saído.

A última paragem era no “Largo das Camionetas”. Lá estava à espera uma prima do Chico que os levou para a sua casa na Rua dos Peixeiros onde ficaram alojados.

Nessa mesma tarde ainda foram conhecer a escola, num passeio familiar. Grande edifício, tão diferente daquele a que estavam habituados. Porta larga, corredor comprido com muitas portas, um grande pátio do recreio e, não se via nenhuma senhora Marcolina, de cana-da-índia na mão! Apontaram-lhes a lista afixada onde já estavam os nomes e, para cada um deles indicava o número da sala onde se realizariam os exames.

As provas escritas estendiam-se por toda a semana, dia sim, dia não e começavam já no dia seguinte, às nove horas, depois era necessário esperar pelas provas orais.

Terça-Feira. O caminho para a escola não tinha nada que enganar e era perto, o Chico foi sozinho, sem escolta familiar. Penteadinho, com um pouco de brilhantina, revia mentalmente o Caderno de Problemas. Ia ser o exame de Aritmética. Estava tranquilo.

Afinal a prova fora mais fácil do que se esperava.

— Correu-te bem? — Perguntou ao Arménio. — Olha, a mim correu, fiz tudo.

— A mim também. Quanto te deu o custo das maçãs no primeiro problema? A mim deu-me três e quinhentos.

— Deu-me o mesmo, estamos certos! E agora onde vais? A seguir ao almoço, vou passear até à praia da Batata, não queres vir?

E foram mesmo. Encontraram-se no largo e seguiram pela Rua da Barroca. Estava um esplêndido dia de Verão e não resistiram ao calor. O mar parecia a ribeira na Ponte Pedra! Despiram-se e foram ao banho em cuecas, descontraídos e sem vergonhas.

As provas continuaram. A última, antes da oral, era a de Desenho. Era preciso lápis e uma borracha nova e foram comprá-los à Papelaria Paula, que era a casa verde no largo do Camões, que já conheciam. Tanto o Chico como o Arménio tremiam literalmente e, como a quem treme lhe treme o risco, ficaram ambos receosos. O Arménio teve de desenhar uma cafeteira e o Chico uma garrafa. Eram as peças mais difíceis por causa da simetria dos lados. Gastando muita borracha lá conseguiram equilibrar, mal ou bem, os contornos do gargalo e a asa da cafeteira. Estava feito e já não se podia apagar mais.

Mais uns dias de praia até que marcaram as provas orais e lá foram, por ordem alfabética, fazer o competente brilharete. As salas enchiam-se de pessoas que queriam assistir às provas. Os candidatos ocupavam a primeira fila. Havia uma carteira livre, destacada das outras, onde se sentava o aluno que era examinado. Estavam dois professores numa mesa sobre um estrado.

Ia começar. Um dos professores chamou: “Arménio, senta-te aqui.” Lançaram algumas perguntas de História, depois de Ciências, e por aí fora. O Chico acompanhava as questões respondendo mentalmente, “é afluente do Tejo”, “nasce na Serra do Caldeirão ou Mú”... Foi a seguir. A mesma coisa mas com perguntas diferentes. Quiseram ouvi-lo ler e trouxeram-lhe um livro aberto num texto de História. Mantendo o tema perguntaram-lhe quem tinha sido o pai do Infante D. Henrique e quem sucedera a D. João I. Tudo matérias que ele bem sabia. Nas ciências nem gaguejou. Tudo lhe saiu bem.

Despachado aquele grupo tiveram que esperar um pouco pelos resultados. Aprovados! Nem muito, nem pouco, apenas aprovados. Ficaram radiantes. A mãe do Arménio deu-lhes os parabéns e puxou o filho dizendo:

— Vamos filho, já está ali o carro de praça.

Assim se cumpria o caminho para o futuro, uma etapa que viveram com uns belos e inesperados dias de férias em praia de poucas ondas, nada como as do Monte Clérigo!

O Chico e a mãe regressaram no dia seguinte. Orgulhoso ele, e a mãe que nem menos.

Praia de Buarcos, Abr2021

CASAS NO FORTE - Folhetim (1)

 


1.  Reencontro

O Forte é um cerro. Não tão alto como o do Castelo nem como o do Mosqueiro, mas que com estes dois constituem os baluartes da Vila, proporcionando uma muralha de abrigo natural dos ventos do mar, lá por trás. É por esta razão natural que a Vila se desenvolveu nas suas encostas viradas a nascente. Nestas encostas os arruamentos não eram mais que uns estreitos corredores, com os casebres apenas no lado da encosta e, pela frente, o desnível era aproveitado para a instalação de estrumeiras, de galinheiros, patamares para os monturos, às vezes quase se encostando às traseiras das casas dos vizinhos. Esta geografia urbana manteve-se até à actualidade com pequenas alterações. Excluindo um número reduzido de ruas nas zonas menos íngremes, as outras permitiam estender o horizonte pela várzea e pela Igreja Nova até à Serra de Monchique ou, um pouco mais a nordeste, pelas pequenas colinas que ladeavam o Carrascalinho e a Aldeia Nova. A várzea da frente, rectangulada em tamanhos diversos, terra rica e escura, que recebe das ribeiras do Areeiro, das Alfambras e da Serra a bênção das suas cheias, fertilização natural para mitigar as carências familiares. Era uma área considerável dividida em pequenas parcelas, as hortas, que consumiam o tempo de todos os familiares pois, se a várzea dava tudo, esse tudo só vinha como retribuição do trabalho assíduo, permanente.

Tinha saudades da subida a pé, desde o Largo da Câmara antiga, agora transformada em Museu Municipal. A mãe e a avó estavam sempre a mandá-la fazer recados, ir à mercearia ou à loja e ela descia em correrias e regressava… mais devagar, entretendo-se com outras da sua idade. Mas os tempos já não eram os mesmos. Encheu o peito de ar e fez-se à ladeira, subindo em ziguezague, técnica que o avô usava para aliviar o esforço dos bois ao puxarem as carretas. A meio da subida cortou pela direita e parou em frente do antigo Registo Civil, lembrando o senhor da perna tesa, com o cigarro já apagado colado aos lábios, e o outro funcionário, tão meticuloso e demorado nas suas certidões, que ela e as outras ouviam-no, pela janela, lendo e repetindo cada palavra à medida que a escrevia com a sua invejável caligrafia.

Mais um bocado de ladeira e chegaria à sua casa. Aquela. As barras azuis mal se distinguiam na parede da frente a perder o cafelo. A oliveira que o seu avô plantara ainda lá estava, desgrenhada, integrava-se na paisagem que aquele “miradouro” abria sobre a várzea, salientando a profundidade do horizonte. Era a mesma paisagem, a de sempre. Aquela que ela deixara há mais de trinta anos. A sombra dos montes da Vila na várzea marcava a hora e, neste momento, acabara de entrar na courela do mestre Manel Hilário; eram portanto quatro horas. O sino da igreja matriz badalou a confirmação.

Lançou o olhar para a Igreja Nova; estava maior, mais casas embora com arquitecturas que nada têm a ver com a traça tradicional, ruas regulares, em volta da igreja e ao longo da ladeira. Já lá tinha estado, a almoçar. O Largo, antes tão grande que podia conter a feira anual e os mercados, que se diziam grandes naqueles tempos, era agora um minúsculo recinto que se enchia com meia dúzia de carros e duas esplanadazinhas.

Aproximava-se da casa. Era a mais decadente, abandonada, e o palheiro do burro, do lado de cá, não tivera melhor sorte. A da vizinha Adélia tinha sido restaurada, talvez por isso a casa lhe parecia muito mais pequena. Pela frente tinha apenas a porta, com postigo, e uma janela, a única janela, por onde ela, colada à vidraça, costumava espreitar a chuva e os reguinhos de água.

Em frente da porta rebuscou na sua mala de mão e retirou um pequeno taleigo de retalhos onde guardava a chave da casa, grande e antiga, oxidada. Apontou ao buraco da fechadura mas estava atulhado de papéis amassados. Subiu-lhe uma irritação pelo estômago acima e não pôde conter um impropério. Mas era apenas um pequeno contratempo que a tesourinha do seu estojo de unhas resolveria facilmente. Bem, não tão fácil assim, mas um bom quarto de hora depois já a chave entrava na fechadura. Estava muito perra. Com cuidado deu uma volta, e depois outra. Apenas duas voltas numa fechadura tão grande. A porta rangeu e não se deixou abrir mais do que metade: estalou nos gonzos e seria necessário levantá-la um pouco para desbloquear. Sim, era a mesma porta, com os mesmos defeitos. As coisas não se consertam sozinhas.

‑ És tu, Vitoriana?

 

Praia de Buarcos, Mar2021


5. COMO SE DESCREVIA ALJEZUR EM 1927

                                                                                                                                     por CarlNasc

 

DOMINGO, MARÇO 20, 2011

Turismo - Guia de Portugal


Viajar, nos dias de hoje, não representa qualquer dificuldade para a maioria dos classemedianos portugueses, mas tempos houve em que viajar era um privilégio de muito poucos.
Raul Proença teve esse privilégio e, esse privilégio foi-nos transmitido por podermos aceder ao seu Guia de Portugal, obra em que o mestre socialista e republicano publicou com as suas notas de viagens e estudos históricos e geográficos que fizeram desta obra um verdadeiro guia turístico. A primeira edição da Biblioteca Nacional de Lisboa, saiu em 1927.
 
Como curiosidade, deixo aqui em excerto as poucas linhas dedicadas a Aljezur a pp. 309:


"Aljezur, vila pequena e pobre, com 4160 hab., sede de conc. (Hosp. Margarida Pardal, Maria Matos; dia fer. 29 de Agosto), tomada aos Mouros por D. Paio Peres Correia no reinado de D. Afonso III. D. Dinis deu-lhe foral em 1280, que D. Manuel renovou em 1504. Fica na encosta E. dum escarpado cerro, em cuja base passa a ribeira de Odesseixe (deve ser a ribeira de Aljezur).  Do castelo mourisco apenas se conservam hoje algumas ruínas, na parte mais elevada da colina, ao S. Aljezur é tida como o sítio mais insalubre do Algarve (febres intermitentes).
A 6 km. de Aljezur as praias do Monte Clérigo e da Pipa; a 7 km. a da Arrifana, ou da Fortaleza."

E algumas páginas mais adiante (pp. 320):

"Ao N. da Ponta da Carrapateira estende-se a vasta praia desse nome. "Passada a praia, eleva-se outra vez a terra até a Arrifana. A enseada da Arrifana fica entre duas pontas: ao N. a da Arrifana; perto da ponta S. a Pedra da Anixa. Ao N. da Ponta da Arrifana a foz da ribeira de Aljezur, e ainda a N. a de Odesseixe. A costa é por ali tão alcantilada e o mar tão encapelado que nem os pescadores lhe podem chegar. Os pobres habitantes destes sítios, com muito risco de vida, pescam algum peixe para seu mesquinho sustento e apanham os perseves que por estas rochas desde o cabo se criam. Nestas também se encontram grandes mexilhões. Há grandes furnas por esta costa."

Set2020 por CarlNasc