10.
Agostinho – Fuzileiro
Na manhã seguinte, ou melhor, na
madrugada seguinte, levantou-se às seis horas, ainda antes da tia o acordar.
Despachou-se depressa, higiene tratada e barba feita, pouca barba, mas enfim, a
cara foi devidamente escanhoada. Agarrou o seu pequeno saco com o indispensável
e saiu. Antes de começar a descer a escada voltou atrás para um beijo à tia.
Apanhou o eléctrico, quase vazio
àquela hora. Já sabia que aquela carreira ia passar na Rua da Conceição, onde
devia sair e caminhar para a Doca da Marinha. Era perto e em dez minutos chegou
ao portão. Não viu campainha, abanou-o para anunciar a sua presença.
Apareceu-lhe um marinheiro armado, com espingarda em bandoleira e baioneta no
cinturão, a perguntar-lhe: “O que é que queres a esta hora, pá?”
Agostinho, um pouco intimidado,
gaguejando lá explicou que se vinha apresentar como voluntário para a Marinha.
O marinheiro, percebendo a hesitação
e a timidez dele, quis aproveitar para se divertir, pois ali não era ele a
autoridade? portanto o outro teria que dançar com a sua música.
— E quem te disse para vires para
aqui? A apresentação é no Alfeite, não é o que diz a tua guia? Ora mostra lá.
— Sim. Mas também me disseram que
aqui eu posso apanhar a vedeta H para atravessar o rio, ou não?
Entretanto um Cabo saiu da
casa-da-guarda e atalhou para o marinheiro.
— Estás armado em quê, pá? Então não
te disseram que iam aparecer alguns candidatos à recruta para apanharem a
vedeta? Verifica a guia e deixa-te de merdas.
— OK. — E para o Agostinho, entre
dentes. — Tás com sorte. Entra lá e vai para além, para o pé daquele banco. É
de lá que parte a vedeta.
Agostinho lá foi e sentou-se no banco
grande, azul. Esteve sozinho durante muito pouco tempo, outros candidatos
começaram a chegar.
Às sete e vinte, aproximou-se um
pequeno barco cujo nome não conseguiu ler, escondido que estava por um pneu
pendurado à proa.
— Este barco é que é a vedeta? —
Perguntou um, mal disfarçando o nervosismo.
— Deve ser, não aparece mais nenhum.
— Avançou outro, de cabelo ruivo.
Por fim o tipo das manobras saltou
para o cais para amarrar o cabo. Ao vê-los exclamou: — Vá, toca para bordo e
acomodem-se, que isto hoje é capaz de encher.
Recolheu-se e foi para a cabine.
Soaram três toques na sirene e ele gritou: — Vamos sair às sete e meia. Quem
não estiver fica em terra.
Do portão surgiu mais um grupinho de
rapazes apressando o passo. Afinal a vedeta hoje não ia encher, mas quase! Novo
toque da sirene e soltou a amarra. Partiram. O das manobras gritou: — Esta
embarcação é um verdadeiro calhordas e com a maré a vazar vamos demorar aí uns
três quartos de hora. E aviso já: ninguém vai chamar pelo gregório aqui dentro
do meu barco. Se almarearem vão para a popa vomitar pela borda fora, olha ó
caraças!
Era cedo e estava fresco. Os mais
inseguros instalaram-se perto das janelas. Abriram-nas para entrar o ar, mas
juntamente com o ar, entravam imensos salpicos que por vezes eram uma autêntica
chuveirada que molhava mais do que aliviavam o enjoo, embora o rio estivesse
calmo. A viagem decorreu sem incidentes. Durante parte do percurso tiveram a
companhia de alguns golfinhos que pareciam disputar uma corrida com a vedeta.
Demoraram mesmo os três quartos de hora anunciados.
Quando atracaram foram encaminhados
para o Grupo Número 2 onde estavam preparadas três mesas de recepção, cada uma
com um cabo escriturário a fazer o atendimento que constava de um pequeno
questionário, findo o qual eram encaminhados para outra fila onde esperavam
pela inspecção médica: uma breve auscultação, observação da planta dos pés e
das partes íntimas e um elementar teste à visão. Finalmente tinham de cumprir
os mínimos de desempenho físico numa corrida de aproximadamente 100 metros e
avaliar a capacidade de recuperação. Obtida a “aprovação” nesta inspecção,
passavam então à recolha de sangue para análise.
Havia perto duma centena de
candidatos, voluntários, com elevada taxa de aprovação. Este processo levou
muito tempo e depressa se esgotou a manhã. Foi atribuído a cada um uma guia com
a sua identificação e um número. O almoço foi servido num grande refeitório.
Antes de comerem, o mesmo cabo instruiu que havia autocarros à espera deles.
Tinham o destino indicado num papel no vidro da frente, Vila Franca de Xira e
Escola de Fuzileiros em Vale de Zebro.
— Alguém tem dúvidas? — Pausa. —
Muito bem!
O grupo do Agostinho chegou à Escola
de Fuzileiros pelas quatro da tarde onde os esperava a praxe do corte de cabelo
modelo recruta, a habitual carecada. Após uma passagem pela arrecadação para
receberem toda a palamenta, foram encaminhados para a caserna onde foram
distribuídos pelos respectivos lugares.
— Amanhã apresentem-se na parada às
sete e meia da manhã. — Instruiu o cabo. — A caserna tem de ficar arrumada, com
todas as camas bem feitas. Bem feitas ouviram? As mãezinhas não vêm cá arrumar
o quartinho dos meninos!!! Ok?
— Hoje vão jantar às 19 horas no refeitório do
rés-do-chão, ainda sem formatura nem lugar marcado. Recolhem aqui até às 21
horas e pelas 22 será apagada a luz e é o silêncio.
A vida de fuzileiro começava assim, com dureza. Nas
primeiras duas semanas não havia autorização para sair. Em boa verdade, nem
apetecia: os dias eram cansativos com tanta actividade. Era a ginástica, era a
aplicação militar, eram as operações nocturnas. A exigência era sobretudo
física, sempre pondo à prova a resistência. Na segunda semana já houve
eliminações por incapacidade.
Finalmente, na sexta-feira durante o almoço, o
sargento da instrução informou que quem quisesse ir de fim de semana podia
pedir um “passaporte” ao comandante do seu pelotão e apanhar o autocarro para
Cacilhas ou para o Barreiro que saíam às quatro e meia da tarde.
Agostinho foi dos primeiros a chegar junto do
comandante do seu pelotão. Com o dito passaporte para justificar à PM ou à PA
se fosse interceptado, envergou a sua farda de sair, a precisar de um arranjo,
poliu as botas, e foi instalar-se no autocarro. Estava ansioso. Não tinha
conseguido telefonar aos tios e muito menos à Vitoriana.