Não percebia, na altura, por que razão havia de ir para a
“doutrina” na Igreja da Misericórdia ‑ catequese é uma palavra que só aprendi
alguns anos mais tarde, noutros ambientes já longe deste Algarve serrano e
marinheiro. Com os meus nove aninhos, tinha nos joelhos escanzelados as marcas
do que me divertia: a rua, as correrias, a bola, as guerrinhas. “Sempre na
vadiagem com a moçada!”, clamava a avó. Correr pelo Caminho das Piteiras até ao
Degoladoiro e descer a rua da Ti Bia até à estrada, ou voar até ao Cerro do
Forte, fugir pelas Cabeças e descer para “abanhar” na Ponte-Pedra, culminando
com uns mergulhos na confluência das águas límpidas (naquele tempo) da ribeira
do Areeiro, sem vergonha de mostrar as vergonhas às lavadeiras. Pois não
percebia. A “doutrina” era uma espécie de prisão, e eu, um pintassilgo na
gaiola a piar pela liberdade; irrequieto, não correspondia nem com a atenção
nem com a compostura que aquelas meninas aburguesadas exigiam para a salvação e
purificação do “Pelo Sinal”.
Lá em casa não éramos de santos nem de benzeduras. A minha
mãe tinha a família e o campo para cuidar, não lhe sobrando tempo para mais do
que um “Valha-me Dés”, e o meu pai preocupava-se mais com a Terra do que com os
Céus, guardando o pouco tempo das noites para Banda Filarmónica e para a escola
de Esperanto, a seguir à cafezada.
O senhor padre Domingos apreciava mais a Banda do que a
aprendizagem daquele linguajar pouco católico do Zamenhof e mandava-lhe umas
indirectas nos cafés da vila, a ele e aos outros “pobres ignorantes” que se
distraíam com a conversa sem se aperceberem que os homens da santas sacristoas
estavam por perto. O café dos Rolos ou o café Silva, este mais popular e
aqueloutro mais aristocrático, eram naqueles tempos a alternativa às vendas e
por ambos passava a patrulha da guarda a pôr o visto e para ser vista. Algumas
mesas tinham clientela certa, ninguém se atrevendo a ocupá-las: o senhor
presidente da Câmara e o padre Domingos eram geralmente os primeiros a chegar,
depois o doutor notário e, lá para mais tarde, um ou outro lavrador. Liam “O
Século” e comentavam as diatribes do Pandita Nehru atrás das nossas Índias, com
um olhar perscrutador através das nuvens de fumaça, das reacções dos outros
homens. Nas noites de cinema, trocavam palavras de entendidos sobre os filmes
anunciados no prospecto do “Aljezur Sonoro Cine”, que alguns já conheciam de
Lagos.
Por causa disto tudo, que eu só vim a perceber uns anos mais
tarde, é que o padre me perguntou se os meus pais sabiam que eu andava na
doutrina.
–“…dos nossos inimigos” – interrompi ‑ foi a Madrinha que me
mandou vir ter com a menina Mariazinha.
‑ Ah! A Madrinha, aquela santa senhora. Então porta-te como
deve ser.
‑ Sim senhor, eu cá porto-me sempre bem. – Saiu-me a
resposta, pronta.
O padre e a menina Mariazinha recolheram-se ao canto do
altar e, pela maneira como alternadamente me olhavam, esconfique tavam a falar
de mim. Mas eu porto-me sempre bem, consolei-me, e fiz bem em lhes dizer, que
era para eles não pensarem coisas. Quando a Madrinha mandava era para se fazer,
senão acabavam-se aqueles lanches de encher a barriguinha: fatias de pão de
canto a canto com o coalho do leite e açúcar, estrelinhas de figos torrados e
docinhos de casamento, que só lá…. E ela tinha prometido à minha mãe dar-me um
terço especial, benzido pelo Bispo. Se me portasse mal, lá se iam estes convidados
e eu ficava era a ver os outros afilhados no brequefesta, se outro castigo não
me acabedasse.
Quem já soubesse persignar-se, que nós chamávamos o
“P’lo-sinal” e o “Nome-do-Pai”, ia fazê-los em frente da menina Mariazinha e
podia sair mais cedo. Eu fui o primeiro a pôr-me na frente dela mas só me
despachou a seguir à MariJoão e à Marizabel. Não me apoquentava a demora, mas
elas ficaram para fazer-me arrenegas à saída da igreja. Já lá dentro tinham
levado o tempo todo a fazer caretas e deitar-me a língua de fora, coisas que a
menina Mariazinha nunca via; ela só via quando era eu a fazer qualquer coisa.
Então tive que me impor. Fomos brincar ao Senhor Barqueiro no pátio do
hospital, logo por trás da igreja. Quando chegou a vez da Marijoão, respondi-lhe
o “passará, passará, mas algum ficará” e desmanchei-lhe o laço do vestido, e à
Marizabel, “passará, passará, mas a bandelete ficará” e tirei-a e transpuze-a
por cima do paredão, para o meio da estrumeira do hospital. A seguir fugi e
elas ficaram as duas a chorar.
Fui a correr até à da minha tia para lanchar uma fatia de
pão com manteiga encarnada e ainda cheguei a tempo de entrar no jogo da bola
que ia começar no Cemitério Velho. Cinco de cada lado, seleccionados
alternadamente pelos chefes de equipa, o Inaice Zé e o Joanito, que antes
tinham saltado na direcção um do outro e coberto a distância restante com os
pés, o esquerdo depois o direito, e assim, até tocarem no do adversário, para
decidirem qual seria o primeiro a escolher. Fiquei com o Inaice. O jogo durou
até ao sol-pôr, quando a mãe dele se fez ouvir num chamado que chegava a todos
os cantos da vila onde houvesse a miudagem. Ganhámos 2-0 e ficou logo marcada a
desforra para o dia seguinte. Alguns ficámos ainda por ali, discutindo os golos
e os falhanços.
‑ Viste o chuto qu’ê ca di? – gritava o Luís, ‑ Eh pá,
aquilo nam tinha mesmo defesa, nem o Costa Pereira a apanhava.
*
Quando cheguei a casa já se sabia das minhas bolaretas com
as moças. O meu avô disse-me logo que tinha vindo a vizinha Zabel a queixar-se
da bandelete da filha.
- Chico, anda cá! – a minha mãe chamou-me à cozinha assim
que me sentiu em casa. – O que é que andaste a fazer? Não posso estar
descansada contigo!
‑ Mãe… ê cá nam fiz nada! – respondi assim a ver se pegava.
– Elas é que levaram a doutrina inteira a meterem-se comigo! – funguei – E a
menina Mariazinha nunca as vê a elas. Ê cá nam fiz nada! – e só para mim,
remordendo, ‑ Moças dum raio, ai quando
as apanhar!
A minha mãe nem levantou os olhos do tacho das papas que ia
mexendo com o colherão, enquanto deixava cair a farinha de milho lentamente,
por entre os dedos. Ainda me disse:
‑ O teu pai vai saber e não te vais safar, já sabes…
O meu avô passando o seu braço sobre os meus ombros, solidário,
disse-me baixinho naquele seu tom calmo e terno:
‑ Deixa lá, menine, na há-de ser nada. O que é preciso é
levares a doutrina até ao fim e a senhora Madrinha na se zangar. Às mecinhas
nada de mal lhes faças… que é tudo a brincar.
O meu pai não tardou. Já sabia, é claro.
‑ Anda cá, ‑ e apertou-me no meio das suas pernas, ‑ andas
então a pregar peças às moças! Isto agora é todos os dias? Pára com isso. Ouve
bem o que eu te digo: ou entras nos eixos, ou temos o burro nas couves!
E ficou assim. Não era para brincadeiras nem me batia, mas
castigava-me doutra forma que me doía ainda mais. No domingo passava um filme
que eu queria ver, “O Pirata Vermelho”, cujos cartazes já me faziam imaginar
aventuras de viagens e batalhas nas caravelas das descobertas. O rapaz era o
Burt Lancaster.
‑ Querias ir, não querias?
Olhei-o com os olhos já a quererem chorar. Se ele não me
levasse, como é que eu iria viver aquelas aventuras com a malta?
‑ Paiiii… Ò pai, leve-me lá… Ò pai, leve-me lá que eu
porto-me bem! Ò pai… a minha travessura foi pequena… e eu até gosto delas…
Leva-me?
Foi um grande filme… cinemascope e a cores!
No Sábado a seguir lá tive que voltar à Igreja, mesmo
contrariado. Não gostava mas passei para a lição das Avé-marias. As moças não
passaram, ficaram tufadas e cansaram-se das carantonhas e eu, de peito inchado,
consegui um “muito bem” da menina Mariazinha.
Como o meu pai me explicara a seguir ao cinema, cada um
tinha o seu trabalho e a obrigação de o fazer como devia de ser; a escola e a
doutrina eram o meu trabalho, tinha que o fazer bem. E fazia-o.
‑ Foi um ganda filme, na foi mê pai?