segunda-feira, dezembro 23, 2013

O Nosso Castelo na Bandeira Nacional


Desde sempre, nos círculos familiares, havia alguém que conhecia coisas e coisas e nos fascinava com tantas histórias, nos intermináveis serões das noites de inverno. Na minha família era a Tia. A Tia sabia de tudo, opinava sobre todos os temas que vinham à baila, fazia recomendações, sempre para levar a sério, e contava-nos histórias, muitas delas passavam para as noites seguintes, longas e complicadas que eram. Uma das vertentes que era frequentemente abordada era a da valentia dos portugueses, e particularmente dos aljezurenses, nas lutas travadas contra os Mouros e a integração do Reino dos Algarves nas posses de Sancho II e Afonso III e, consequentemente, no cognome deste. E aqui vinha sempre a explicação da Bandeira Nacional, enaltecendo que o Castelo de Aljezur era um dos sete que figuram naquele pendão, o que para nós nos enchia de orgulho patriótico e regional.
Esta minha Tia juntamente com tantas outras Tias contadoras de histórias a gerações de aljezurenses, foram assim responsáveis por termos crescido com este mito, alimentando-o e veiculando-o orgulhosamente aos nossos descendentes e divulgando-o junto da nossa rede de relações.

Uma obra literária muito interessante que já neste blogue divulgámos, “Aljezur, Terra Mimosa” de Manuel Garcia (1938) e que constitui motivo de orgulho para muitos aljezurenses (apesar da Senhora D. Câmara o continuar a ignorar esquecendo-se uma reedição) refere também esta situação (vide http://barlaventino.blogspot.pt/2011/04/o-brasao-de-aljezur.html).

Também em nosso modesto entender não passa de mais um mito, possivelmente motivado por um desejo de reivindicar importância para a nossa terra (e para as outras seis), cuja justificação histórica ainda jaz adormecida nalguma recôndita prateleira da Torre do Tombo.

Conta-se então que os sete castelos da Bandeira Nacional dizem respeito às últimas conquistas algarvias, e que foram Albufeira, Aljezur, Cacela, Castro Marim, Estômbar, Paderne e Sagres.
Nem sempre foram sete os castelos da Bandeira, tendo mesmo o painel de D. Afonso III 16 castelos em dois desenhos diferentes; como foi feita a sua selecção também não se sabe.

Aqui deixo alguns exemplos das armas nacionais ao longo dos tempos para melhor podermos apreciar essa evolução.

D. Afonso III - 16 castelos
D. Afonso III (diferente disposição, 12 castelos)

D. João I (ainda os 12 castelos)
D. João II (7 castelos)


D. Manuel II (8 castelos)

Bandeira Actual (7 castelos)
O nosso objectivo é apenas o levantar duma questão que subsiste sem resposta: trata-se apenas de um mito, histórico, ou nele está contida alguma verdade para além do simples desejo que assim fosse?

Fica a dúvida sobre o tema e fica também o desafio:

Desmitifica-se ou passa à História?

segunda-feira, dezembro 09, 2013

Estórias Barlaventinas - Doutrina ou Jogar à Bola?


Não percebia, na altura, por que razão havia de ir para a “doutrina” na Igreja da Misericórdia ‑ catequese é uma palavra que só aprendi alguns anos mais tarde, noutros ambientes já longe deste Algarve serrano e marinheiro. Com os meus nove aninhos, tinha nos joelhos escanzelados as marcas do que me divertia: a rua, as correrias, a bola, as guerrinhas. “Sempre na vadiagem com a moçada!”, clamava a avó. Correr pelo Caminho das Piteiras até ao Degoladoiro e descer a rua da Ti Bia até à estrada, ou voar até ao Cerro do Forte, fugir pelas Cabeças e descer para “abanhar” na Ponte-Pedra, culminando com uns mergulhos na confluência das águas límpidas (naquele tempo) da ribeira do Areeiro, sem vergonha de mostrar as vergonhas às lavadeiras. Pois não percebia. A “doutrina” era uma espécie de prisão, e eu, um pintassilgo na gaiola a piar pela liberdade; irrequieto, não correspondia nem com a atenção nem com a compostura que aquelas meninas aburguesadas exigiam para a salvação e purificação do “Pelo Sinal”.

Lá em casa não éramos de santos nem de benzeduras. A minha mãe tinha a família e o campo para cuidar, não lhe sobrando tempo para mais do que um “Valha-me Dés”, e o meu pai preocupava-se mais com a Terra do que com os Céus, guardando o pouco tempo das noites para Banda Filarmónica e para a escola de Esperanto, a seguir à cafezada.
O senhor padre Domingos apreciava mais a Banda do que a aprendizagem daquele linguajar pouco católico do Zamenhof e mandava-lhe umas indirectas nos cafés da vila, a ele e aos outros “pobres ignorantes” que se distraíam com a conversa sem se aperceberem que os homens da santas sacristoas estavam por perto. O café dos Rolos ou o café Silva, este mais popular e aqueloutro mais aristocrático, eram naqueles tempos a alternativa às vendas e por ambos passava a patrulha da guarda a pôr o visto e para ser vista. Algumas mesas tinham clientela certa, ninguém se atrevendo a ocupá-las: o senhor presidente da Câmara e o padre Domingos eram geralmente os primeiros a chegar, depois o doutor notário e, lá para mais tarde, um ou outro lavrador. Liam “O Século” e comentavam as diatribes do Pandita Nehru atrás das nossas Índias, com um olhar perscrutador através das nuvens de fumaça, das reacções dos outros homens. Nas noites de cinema, trocavam palavras de entendidos sobre os filmes anunciados no prospecto do “Aljezur Sonoro Cine”, que alguns já conheciam de Lagos.

Por causa disto tudo, que eu só vim a perceber uns anos mais tarde, é que o padre me perguntou se os meus pais sabiam que eu andava na doutrina.
–“…dos nossos inimigos” – interrompi ‑ foi a Madrinha que me mandou vir ter com a menina Mariazinha.
‑ Ah! A Madrinha, aquela santa senhora. Então porta-te como deve ser.
‑ Sim senhor, eu cá porto-me sempre bem. – Saiu-me a resposta, pronta.
O padre e a menina Mariazinha recolheram-se ao canto do altar e, pela maneira como alternadamente me olhavam, esconfique tavam a falar de mim. Mas eu porto-me sempre bem, consolei-me, e fiz bem em lhes dizer, que era para eles não pensarem coisas. Quando a Madrinha mandava era para se fazer, senão acabavam-se aqueles lanches de encher a barriguinha: fatias de pão de canto a canto com o coalho do leite e açúcar, estrelinhas de figos torrados e docinhos de casamento, que só lá…. E ela tinha prometido à minha mãe dar-me um terço especial, benzido pelo Bispo. Se me portasse mal, lá se iam estes convidados e eu ficava era a ver os outros afilhados no brequefesta, se outro castigo não me acabedasse.

Quem já soubesse persignar-se, que nós chamávamos o “P’lo-sinal” e o “Nome-do-Pai”, ia fazê-los em frente da menina Mariazinha e podia sair mais cedo. Eu fui o primeiro a pôr-me na frente dela mas só me despachou a seguir à MariJoão e à Marizabel. Não me apoquentava a demora, mas elas ficaram para fazer-me arrenegas à saída da igreja. Já lá dentro tinham levado o tempo todo a fazer caretas e deitar-me a língua de fora, coisas que a menina Mariazinha nunca via; ela só via quando era eu a fazer qualquer coisa. Então tive que me impor. Fomos brincar ao Senhor Barqueiro no pátio do hospital, logo por trás da igreja. Quando chegou a vez da Marijoão, respondi-lhe o “passará, passará, mas algum ficará” e desmanchei-lhe o laço do vestido, e à Marizabel, “passará, passará, mas a bandelete ficará” e tirei-a e transpuze-a por cima do paredão, para o meio da estrumeira do hospital. A seguir fugi e elas ficaram as duas a chorar.

Fui a correr até à da minha tia para lanchar uma fatia de pão com manteiga encarnada e ainda cheguei a tempo de entrar no jogo da bola que ia começar no Cemitério Velho. Cinco de cada lado, seleccionados alternadamente pelos chefes de equipa, o Inaice Zé e o Joanito, que antes tinham saltado na direcção um do outro e coberto a distância restante com os pés, o esquerdo depois o direito, e assim, até tocarem no do adversário, para decidirem qual seria o primeiro a escolher. Fiquei com o Inaice. O jogo durou até ao sol-pôr, quando a mãe dele se fez ouvir num chamado que chegava a todos os cantos da vila onde houvesse a miudagem. Ganhámos 2-0 e ficou logo marcada a desforra para o dia seguinte. Alguns ficámos ainda por ali, discutindo os golos e os falhanços.
‑ Viste o chuto qu’ê ca di? – gritava o Luís, ‑ Eh pá, aquilo nam tinha mesmo defesa, nem o Costa Pereira a apanhava.

*

Quando cheguei a casa já se sabia das minhas bolaretas com as moças. O meu avô disse-me logo que tinha vindo a vizinha Zabel a queixar-se da bandelete da filha.
- Chico, anda cá! – a minha mãe chamou-me à cozinha assim que me sentiu em casa. – O que é que andaste a fazer? Não posso estar descansada contigo!
‑ Mãe… ê cá nam fiz nada! – respondi assim a ver se pegava. – Elas é que levaram a doutrina inteira a meterem-se comigo! – funguei – E a menina Mariazinha nunca as vê a elas. Ê cá nam fiz nada! – e só para mim, remordendo,  ‑ Moças dum raio, ai quando as apanhar!
A minha mãe nem levantou os olhos do tacho das papas que ia mexendo com o colherão, enquanto deixava cair a farinha de milho lentamente, por entre os dedos. Ainda me disse:
‑ O teu pai vai saber e não te vais safar, já sabes…
O meu avô passando o seu braço sobre os meus ombros, solidário, disse-me baixinho naquele seu tom calmo e terno:
‑ Deixa lá, menine, na há-de ser nada. O que é preciso é levares a doutrina até ao fim e a senhora Madrinha na se zangar. Às mecinhas nada de mal lhes faças… que é tudo a brincar.
O meu pai não tardou. Já sabia, é claro.
‑ Anda cá, ‑ e apertou-me no meio das suas pernas, ‑ andas então a pregar peças às moças! Isto agora é todos os dias? Pára com isso. Ouve bem o que eu te digo: ou entras nos eixos, ou temos o burro nas couves!
E ficou assim. Não era para brincadeiras nem me batia, mas castigava-me doutra forma que me doía ainda mais. No domingo passava um filme que eu queria ver, “O Pirata Vermelho”, cujos cartazes já me faziam imaginar aventuras de viagens e batalhas nas caravelas das descobertas. O rapaz era o Burt Lancaster.
‑ Querias ir, não querias?
Olhei-o com os olhos já a quererem chorar. Se ele não me levasse, como é que eu iria viver aquelas aventuras com a malta?
‑ Paiiii… Ò pai, leve-me lá… Ò pai, leve-me lá que eu porto-me bem! Ò pai… a minha travessura foi pequena… e eu até gosto delas… Leva-me?
Foi um grande filme… cinemascope e a cores!

No Sábado a seguir lá tive que voltar à Igreja, mesmo contrariado. Não gostava mas passei para a lição das Avé-marias. As moças não passaram, ficaram tufadas e cansaram-se das carantonhas e eu, de peito inchado, consegui um “muito bem” da menina Mariazinha.
Como o meu pai me explicara a seguir ao cinema, cada um tinha o seu trabalho e a obrigação de o fazer como devia de ser; a escola e a doutrina eram o meu trabalho, tinha que o fazer bem. E fazia-o.


‑ Foi um ganda filme, na foi mê pai?