OS CONTRATOS DA PÁSCOA
“Contrato, contrato, contrato fazemos” e enganchávamos os dedos mindinhos da mão direita, sacudindo os respetivos braços num sobe e desce ao ritmo da ladainha, e continuávamos “Sábado de Aleluia desmancharemos e Domingo de Páscoa nos pagaremos!”, se não me falha a memória, logo depois dos sinos anunciarem a Aleluia e arrumadas que ficavam as matracas até ao próximo ano, num excitante esconde e busca. Era assim na Semana Santa, uma tradição que cumpríamos desde pequeninos, começando os contratos com os adultos da casa ou da vizinhança, passando aos colegas da escola e por fim, praticando (reminiscências) com as namoradinhas ou com aquelas que gostaríamos que viessem a ser.
Li num destes dias que
o prémio era um saco de amêndoas. Admirei-me, pois saco de amêndoas (que nunca
foi saco, mas pacotinho…) era uma coisa que, se aparecesse lá por casa, era
único e maternalmente administrado para chegar para toda a família. Os nossos
eram apenas confeitos, uns pequenitos que tinham um pinhão dentro que, com o
seu justo ou exagerado aumento de valor, tem vindo a ser substituído por um
grãozinho de alcagoita.
As procissões, com
sermão obrigatório no Largo da Câmara (antiga), quase sempre da sacada da Casa
Mimo, levavam ao êxtase a população religiosa da vila. Eram sobretudo mulheres
e crianças; os poucos homens pareciam estar presentes apenas por dever ou
imposição, funcionários ou “forças vivas”, sem faltar o representante da Legião
Portuguesa, vestiam as opas e transportavam os andores, exibindo as suas
melhores fatiotas, também por cá chamadas “de ver a Deus”. Mas apesar de não
participarem nas celebrações religiosas, os homens não deixavam de afunilar as
pernas em cotim novo, e as botas, brilhando com uma vela de sebo de Holanda e
com fileiras de brochas novas, batiam a cadência nas calçadas.
Há memórias neste
texto que só vim a compreender uns anos depois dos “contratos”, quando a minha
mãe, mais uma vez não resistindo às minhas insistências, teve de me costurar
umas calças novas, com bolsos cortados e tudo, para eu estrear na feira do
Rogil, ou melhor dizendo, no baile da feira do Rogil, para onde me desloquei...
a pé, claro!
Isto é uma espécie de
fé no profano. Coisas do pensamento que não se controla… e a cena do baile da
feira ainda outras lembranças me trouxe, pelo que fica já aqui a recordação e homenagem
ao velho companheiro Leonel, que em muitas andanças pedalava por nós dois a sua
ginga, levando-nos por montes e eiras atrás das desfolhadas ou outras adiafas –
que também não são na Páscoa, mas que terminavam sempre em bailarico com música
de batipum e batipum ‑ joga papas à parede ‑ de um qualquer fole de duas
escalas.
Mas voltando à Páscoa
e à costura da minha mãe… A razão destas memórias é que eu me tinha aventurado
pelo sótão da casa, de lente na mão, para recolher as ratoeiras, e fora encalhar
em duas velhas matracas que há anos descansavam naquele canto sem luz. Pareciam
duas pequenas portas de postigo, madeira carunchosa, com umas argolas de ferro
penduradas de cada lado e uma espécie de asa como pega. Era fácil de “tocar”
tal instrumento. “Seguras nas asas e sacodes”, ensinou-me a minha mãe, “serviam
para chamar as pessoas para a igreja, na Quaresma, pois não se tocavam sinos
nessa altura… já se não usa”. Mas eu ainda me lembrava de ver a vizinha
Marianita, no Adro, agitando aqueles objetos numa chinfraneira esquisita.
Coisas da Páscoa que me trouxeram de volta esses tempos da infância, dos
confeitos, dos brindeiros e dos folares.
Quem se lembra de ir
partir o folar ao campo? Na segunda-feira, quase sempre naquele lugar designado
por “Ao Caminho da Praia”; não por falta de outros sítios (imagine-se!) mas
simplesmente porque sim, ou porque tinha bom piso para as senhoras e era mais
fácil controlar a pequenada.
Os homens mais uma vez,
natural e tradicionalmente, mantinham-se alheios a esta atividade meio santa,
importada doutras crenças, preferindo a semeadura de prosa pelas vendas.
Nós éramos uns quantos
putos, mesmo putos, moçada da mesma idade com oito ou nove anitos, tínhamos o
nosso grupo. Fazíamos a guerra dos assaltos ao castelo, ou do “camoniesse” e do
“manzuar”, verdadeiros Cisco Kids de pistolas de pau. Meninas à parte, que o
faroeste era só para homens e o nosso jogo não tinha “saloon”.
A Coca-Cola era
proibida e os pacotinhos de sumo ainda não tinham sido inventados. Quanto muito
uns pirolitos, para os mais abonados, ou umas limonadas (caseiras) para os mais
finos. Nós, os menos, desembaçávamos com aguinha da ribeira, ainda bebível,
colhida de mãos em concha na corrente acima das pedras de lavar roupa.
Se não chovesse, era
uma tarde daquelas. Regressávamos esgotados e sujos, transbordando de alegria,
comentando as cenas dos filmes que criáramos, em que “o rapaz” chegava sempre
na hora de libertar os outros “cabois” e prender os malfeitores.
Éramos os maiores do
nosso tempo e representávamos à vez o Audie Murphy, o Alan Ladd ou o Randolph
Scott, cujos nomes pronunciávamos muito à nossa maneira.
‑ Camoniesse! Iupi!