quarta-feira, junho 26, 2013

Estórias Barlaventinas - Os contratos da Páscoa

Tenho esta espécie de contrato (unilateral!) com o Algarzur de só publicar no blog novidades depois de saídas no jornal. Isto faz com que alguns textos acabem por sair aqui um pouco a destempo, mas não faz mal, acho eu que não faz mal. Prioridades são prioridades e o que é inédito é para ser inédito. Mas estes "Contratos da Páscoa" já por aqui andaram, noutras Páscoas, perdendo assim esse ineditismo. Olhem, paciência... rebusquei no meu scriptorium, escovei a poeira dos pergaminhos e aqui estão eles de novo, para reler e relembrar as "Estórias Barlaventinas" da nossa infância e juventude.


OS CONTRATOS DA PÁSCOA

 “Contrato, contrato, contrato fazemos” e enganchávamos os dedos mindinhos da mão direita, sacudindo os respetivos braços num sobe e desce ao ritmo da ladainha, e continuávamos “Sábado de Aleluia desmancharemos e Domingo de Páscoa nos pagaremos!”, se não me falha a memória, logo depois dos sinos anunciarem a Aleluia e arrumadas que ficavam as matracas até ao próximo ano, num excitante esconde e busca. Era assim na Semana Santa, uma tradição que cumpríamos desde pequeninos, começando os contratos com os adultos da casa ou da vizinhança, passando aos colegas da escola e por fim, praticando (reminiscências) com as namoradinhas ou com aquelas que gostaríamos que viessem a ser.

Li num destes dias que o prémio era um saco de amêndoas. Admirei-me, pois saco de amêndoas (que nunca foi saco, mas pacotinho…) era uma coisa que, se aparecesse lá por casa, era único e maternalmente administrado para chegar para toda a família. Os nossos eram apenas confeitos, uns pequenitos que tinham um pinhão dentro que, com o seu justo ou exagerado aumento de valor, tem vindo a ser substituído por um grãozinho de alcagoita.

As procissões, com sermão obrigatório no Largo da Câmara (antiga), quase sempre da sacada da Casa Mimo, levavam ao êxtase a população religiosa da vila. Eram sobretudo mulheres e crianças; os poucos homens pareciam estar presentes apenas por dever ou imposição, funcionários ou “forças vivas”, sem faltar o representante da Legião Portuguesa, vestiam as opas e transportavam os andores, exibindo as suas melhores fatiotas, também por cá chamadas “de ver a Deus”. Mas apesar de não participarem nas celebrações religiosas, os homens não deixavam de afunilar as pernas em cotim novo, e as botas, brilhando com uma vela de sebo de Holanda e com fileiras de brochas novas, batiam a cadência nas calçadas.

Há memórias neste texto que só vim a compreender uns anos depois dos “contratos”, quando a minha mãe, mais uma vez não resistindo às minhas insistências, teve de me costurar umas calças novas, com bolsos cortados e tudo, para eu estrear na feira do Rogil, ou melhor dizendo, no baile da feira do Rogil, para onde me desloquei... a pé, claro!

Isto é uma espécie de fé no profano. Coisas do pensamento que não se controla… e a cena do baile da feira ainda outras lembranças me trouxe, pelo que fica já aqui a recordação e homenagem ao velho companheiro Leonel, que em muitas andanças pedalava por nós dois a sua ginga, levando-nos por montes e eiras atrás das desfolhadas ou outras adiafas – que também não são na Páscoa, mas que terminavam sempre em bailarico com música de batipum e batipum ‑ joga papas à parede ‑ de um qualquer fole de duas escalas.

Mas voltando à Páscoa e à costura da minha mãe… A razão destas memórias é que eu me tinha aventurado pelo sótão da casa, de lente na mão, para recolher as ratoeiras, e fora encalhar em duas velhas matracas que há anos descansavam naquele canto sem luz. Pareciam duas pequenas portas de postigo, madeira carunchosa, com umas argolas de ferro penduradas de cada lado e uma espécie de asa como pega. Era fácil de “tocar” tal instrumento. “Seguras nas asas e sacodes”, ensinou-me a minha mãe, “serviam para chamar as pessoas para a igreja, na Quaresma, pois não se tocavam sinos nessa altura… já se não usa”. Mas eu ainda me lembrava de ver a vizinha Marianita, no Adro, agitando aqueles objetos numa chinfraneira esquisita. Coisas da Páscoa que me trouxeram de volta esses tempos da infância, dos confeitos, dos brindeiros e dos folares.

Quem se lembra de ir partir o folar ao campo? Na segunda-feira, quase sempre naquele lugar designado por “Ao Caminho da Praia”; não por falta de outros sítios (imagine-se!) mas simplesmente porque sim, ou porque tinha bom piso para as senhoras e era mais fácil controlar a pequenada.

Os homens mais uma vez, natural e tradicionalmente, mantinham-se alheios a esta atividade meio santa, importada doutras crenças, preferindo a semeadura de prosa pelas vendas.

Nós éramos uns quantos putos, mesmo putos, moçada da mesma idade com oito ou nove anitos, tínhamos o nosso grupo. Fazíamos a guerra dos assaltos ao castelo, ou do “camoniesse” e do “manzuar”, verdadeiros Cisco Kids de pistolas de pau. Meninas à parte, que o faroeste era só para homens e o nosso jogo não tinha “saloon”.

A Coca-Cola era proibida e os pacotinhos de sumo ainda não tinham sido inventados. Quanto muito uns pirolitos, para os mais abonados, ou umas limonadas (caseiras) para os mais finos. Nós, os menos, desembaçávamos com aguinha da ribeira, ainda bebível, colhida de mãos em concha na corrente acima das pedras de lavar roupa.

Se não chovesse, era uma tarde daquelas. Regressávamos esgotados e sujos, transbordando de alegria, comentando as cenas dos filmes que criáramos, em que “o rapaz” chegava sempre na hora de libertar os outros “cabois” e prender os malfeitores.

Éramos os maiores do nosso tempo e representávamos à vez o Audie Murphy, o Alan Ladd ou o Randolph Scott, cujos nomes pronunciávamos muito à nossa maneira.

‑ Camoniesse! Iupi!