LUÍSA - RAINHA DO VIDIGAL
“In nómine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti.” —
Era o padre a iniciar ritual, provocando em uníssono um grande “Amen”.
Esta parte inicial, até o Zé a percebia, desde
criança, mas quanto à continuação, apanhava uma palavra aqui, outra ali, mas
sem perceber o significado. Por que cargas d’água é que haveriam as missas de
ser celebradas em latim, se o povo falava era o português. Até o padre tinha de
ler por aquele livro grande, pois se não tinha ninguém com quem falar aquela
língua, já morta como se dizia, como é que ele haveria de a praticar. Era só pregação! Mas o sermão, esse era em bom algraveo,
percebido por todos! “Irmãos, podeis dar, então dai aos necessitados e dai à
vossa Igreja, porque quem dá aos pobres…”.
…
“Dominus vobiscum”…
“Ite, missa est.” — O padre anunciava
o fim do santo sacrifício. Quem conhecia o ritual murmurava um “Deo
grátias”.
Terminava a missa, o que se percebia pelo farfalhar
das roupas e pelo ruído dos passos. As pessoas encaminhavam-se para a porta. Os
poucos homens foram os primeiros a sair, mas Zé manteve-se até ela passar. Ela
mandou-lhe um olhar de cumprimento ou de desafio, ou de convite, ele que lhe
desse o sentido que quisesse, mas ele respondeu-lhe com um picar de olho. Já no
adro, ela despediu-se das amigas e esperou por ele. Um “Olá” mútuo foi mais do
que suficiente e, como se tivesse sido combinado, dirigiram-se para a lateral
do edifício onde estavam os animais.
Ela procurou no alforge as sandálias do campo e trocou
de calçado, e ele esperando ao lado dela, perguntou-lhe se ia já para casa, ela
que sim e convidou-o a acompanhá-la.
— Não queres ir até lá? Faço uma frigimenta de chouriça
com ovos.
— Ora aí está uma coisa qu’a mim me cai no goto! Atão
vou contigo. Vá que t’ajudo a montar.
— N’é preciso. — Com a leveza do seu corpo pequeno e a
agilidade que a caracterizava, deu um balanço e saltou; com meia volta no ar
ficou sentada de lado na albarda. — Olha, já estou.
— Segura-te ao cabeço da albarda, que eu levo a
areata.
O caminho fizeram-no devagar, sem pressas. Era cedo. A
conversa fluía entre eles. Ela, que tomava conta da casa e do irmão desde que
os pais sucumbiram ao febrão das sezões que apanharam no Alentejo quando foram
para as mondas. Ela e o irmão escaparam porque tinham ficado com familiares em
Maria Vinagre.
— E tu? Os teus pais? A tua mãe já sei que é quem toma
conta de ti, mas e o tê pai? Marujo, não era?
— Sim, era marujo. Andava numa traineira da Fortaleza.
Um dia um par de roazes prendeu-se nas redes quando fizeram o cerco e ele saiu
na chata para tentar salvar a faina da sardinha. Dizem que os roazes viraram a
chata e ele ficou debaixo e deve ter levado uma pancada na cabeça. Quando o
tiraram já estava sem vida. Eu era ainda pequeno. Daí, fiquei com esta alcunha
de Zé Marujo, mas é só alcunha, o meu apelido e Santos. Sou José Alberto dos
Santos.
— Pois é claro! Marujo não é nome de ninguém. Bem, sei
lá, se calhar até podia ser, não achas.
Chegaram ao monte e o Zé dispôs-se a desalbardar o
burro e prendê-lo na courela do pasto por detrás da casa.
— Sim, obrigada. Eu vou mudar de roupa. — E sentindo
que lhe provocara um certo ar matreiro, antecipou-se ela. — Não te atrevas a ir
lá a casa antes de eu aparecer cá fora, hem? Nem penses!
— Tá bem, fica descansada. O qu’é que pensas?
Pouco depois já estavam à mesa com a frigimenta na
frente. Pão, vinho e boa disposição.
— O Manel? Inda nâ o vi.
— O mê irmão foi de manhã cedo à pesca para a
Carriagem com o vizinho ali de cima. Só vêm lá para a noitinha e, como é
costume, não há-de trazer peixe nenhum!
Conversaram. Iam-se conhecendo, ambos entusiasmados
com a presença do outro, sentindo-se confortáveis, tranquilos. Ela ruborizada e
abanando-se com a mão, sugeriu irem-se sentar no poial à porta e apanharem um
pouco de ar mais fresco, e comerem lá fora as laranjas. E foram.
— Queres que experimente outra vez fazer-te os óculos?
— Zé abrindo a sua faquinha de bolso.
— Claro que não, aquilo foi apenas uma brincadeira.
A ocasião e as suas posições ao lado um do outro
propiciavam inevitavelmente alguns toques com as mãos. Ela limpou as dele com
uma rodilha molhada e seguraram-se mutuamente durante uns segundos.
— Tens as mãos frias. — Comentou ela.
— Mas tenho o coração quente. Não é assim que se diz?
— Ele agora segurando as dela. — Mas as tuas estão quentinhas. No teu caso é o
calor do teu coração, ou estou enganado?
— ‘Tás-me a fazer corar! Sei lá se é o calor do
meu coração! Ele está dentro do meu peito, e lá há calor suficiente para ele
bater.
— E esse calor não transborda, como o meu?
Mantinham-se de mãos nas mãos. Ele apertou-as
ligeiramente e ela correspondeu com idêntico aperto.
— Gosto de ‘tar aqui contigo. Aqui ao pé de ti.
Fazes-me sentir bem. E tu, o que sentes?
— Fazes-me corar outra vez. — Hesitante, baixando os
olhos. — Sim, também gosto.
— Então gostamos os dois. — E arriscou. — Gostamos um
do outro, é?
— Bêque-me…
— Bêque-me quê? Atão a gente acerta-se. —
O qu’é que dizes? Vá, diz lá!
— Mas digo o quê? Se a gente se acerta? Pode ser…
— Pode ser, ou queres mesmo? — Zé aproximando-se,
tentando dar-lhe um beijo na face.
— Sim... Também quero. — Ela permitiu o beijo e
retribuiu beijando a face dele.
Para ela já chegava por hoje e disse-lhe isso. Que se
fosse já. Tinha a cabeça numa grande baralhação e precisava de pensar. Ele
concordou, mas puxando-a mais para si, beijou-lhe os lábios. Implorou só mais
um bocadinho e trocaram outro beijo. A hora da partida ia-se alongando na
tarde. Tanto para um como para o outro a novidade dos beijos era maravilhosa.
Ele sempre segurando as mãos dela fê-la pôr-se de pé. Ficaram frente a frente e
beijaram-se de novo e desta vez com um abraço, primeiro tímido, mas depois
apertado e desinibido. Excitados os dois, ela defendeu-se, afastando-se
murmurou-lhe que deviam ficar por ali.
— Só mais um abraço para a despedida. — Pediu ele.
E com esse derradeiro abraço se despediram. Combinaram
que ela o visitaria na oficina já na Segunda-feira, e depois combinavam como se
veriam. Ele encostou-lhe a boca ao ouvido e disse-lhe baixinho “Inda há-des
ser a m’nha rainha!”