Zé Marujo - Carpinteiro e Abegão
“As ondas vão e vêm num eterno vaivém”. Era o que a
avó lhe costumava dizer sempre que na conversa se falasse do mar. Dizia ela e
ainda é o que se diz. Mas não, ele não tinha a mesma opinião, não era verdade.
As ondas vêm, só vêm, não vão. Enrolam-se sempre na mesma direcção, ou seja, do
mar para a terra, para as rochas, para as praias. Verdade até quando a maré
vaza. E era nesta fase da maré vazia que José Alberto dos Santos, carpinteiro e
abegão, com costela de pescador da Fortaleza que lhe influenciou a alcunha de
Zé Marujo, instalado nas rochas perto da água, dava banho ao seu isco. Prendia
uma pedrinha furada junto ao anzol para garantir um bom arremesso e fazê-lo
afundar, pois sargos à tona d´água foi coisa que nunca vira. Iscava com minhoca
da pedra que apanhava no laredo e que misturava com terra grossa. Segurava-as
entre os dedos da mão esquerda para lhes enfiar o anzol com a direita. Era um
petisco para o peixe, mas desta vez o pexinho tava bicoso, bicava com a
ponta da beiçola e limpava o anzol sem se prender. Zé Marujo precisava de levar
pelo menos um sargo ou uma dourada para o jantar, como prometera à mãe. Queria
alternar às couves com toucinho. Mas as esperanças estavam a perder-se e o que
ele previa era um chibato daqueles.
Resolvera ir à pesca para pensar na conversa que teria
de ter com mestre Jacinto sobre a oficina. Assim que saíra da escola tinha ido
aprender o mister da carpintaria e abegoaria com o mestre Jacinto e tornou-se o
seu braço direito. Após o mestre ter tido aquele estúpido acidente que o
deixara incapacitado, ele sozinho dava conta da oficina.
Dedicou-se com todo o afinco ao trabalho. Se fosse
dele gostaria de modernizar o equipamento, comprar máquinas e um motor para
mecanizar a serração e o aparelhamento da madeira. Mas a oficina não era sua…
Resolvera abordar o assunto com o mestre Jacinto.
— Meste Jacinto, estando como está e com a sua
idade, o que pensa fazer com a sua oficina?
— Não penso grande coisa. — Respondeu-lhe o patrão. —
Quero é ficar sossegado, pois se já pouco posso fazer. Se aparecer alguém…
Ficaram-lhe no ouvido estas últimas palavras. O mestre
Jacinto não se importaria de vender, mas o pior era o dinheiro. Nem sabia
quanto e muito menos como o obter.
Fixava os olhos na bóia, mas o seu pensamento estava
na oficina.
Zé mantinha o dedo indicador na sedela esticada à
espera de sentir qualquer subtil esticanito antes da cana vergar. E se
sentisse… puxava. Técnica do seu pai e que funcionava bem, mas não hoje, pois
se os gajos nem picavam.
Para ele chegava, decidiu-se. Estava ali já há tempo
de mais. Era assim, a sorte quando vem, nem sempre bafeja toda a gente, e muito
menos por igual. Neste caso, a sorte não é como as ondas do mar. Vem e… não
vem... Hoje não havia peixe no Penduradoiro de Baixo.
Arrumou os seus materiais no seirão. Queria aproveitar
a maré baixa para ir ao laredo apanhar uns mexilhões, ou talvez algum polvinho
distraído. Se não, seriam outra vez papas ao jantar.
Tocou a mulinha pelo areão abaixo e foi prendê-la numa
pequena pedra em frente às Margaridas. Nas suas alpargatas de sola de corda,
depressa caminhou pelas rochas rasteiras até onde as águas batiam. Por ali não
andava mais ninguém. Com o peixeiro esgravatou uma pinha de mexilhões, e logo
outra e mais outra. Que belos! Grandes e recheados! Num instante ficou com o
seirão quase cheio, já bastavam. Ainda procurou numas frestas das rochas com o
gancho do seu peixeiro, mas nem o trapinho branco os atraía nem os polvos
estavam com disposição para o tacho. Não há peixe, não há polvo, mas vai haver
uma arrozada de mexilhão que até já lhe fazia crescer água na boca. A sua mãe
era uma artista na cozinha, tudo o que fazia lhe saía bem e então com uma
copada daquele vinho que trouxe dos Vales em paga do conserto da janela.
Regressou à praia e preparou a sua navalha para limpar as conchas. Era uma bela
apanha.
Carregou o seirão num dos lados da gorpelha,
prendeu o peixeiro no outro lado, junto à cana, e caminharam pela areia direito
à ribeira do Monte Clérigo por mor da mula beber. O animal bebeu demoradamente
e deixou de lhe cobiçar o barrilinho de barro.
A seguir marchou pela ribeira acima. Olhou a
inclinação do sol, e pensou que chegaria à vila antes do fim do dia.
Não se enganara, mas já caía o sereno quando deixou a
mula na cavalariça. A mãe assomou ao postigo e perguntou-lhe se trazia peixe
para o jantar.
— Não ‘nha mãe trouxe mexilhões. Já estão
raspados e prontos a saltar para o tacho do arroz.
Em pouco tempo já estava na mesa. A mãe ainda
trabalhara na Casa Grande satisfazendo o fino paladar dos patrões e das muitas
visitas, e por lá se manteve até à morte da senhora. Desde então remeteu-se à
sua própria casa e, depois da morte do pai, dedicou-se completamente ao filho
que ia agora nos seus vinte e dois. Ele cedo assumira o papel do homem da casa.
Nada faltava. O rapaz era trabalhador e habilidoso.
Um dos filhos da Casa Grande, tenente do exército,
intercedeu por ele e ficou isento do serviço militar alegando ser amparo de
mãe, o que até era verdade.
Naquela noite, depois de despachada a arrozada de
mexilhão, Zé Marujo partilhou com a mãe a sua ambição e a angústia que isso lhe
fazia. Toda a tarde na rocha e no laredo não pensou noutra coisa. Fora à pesca
para pensar e não concluiu nada.
— ‘Nha mãe, qu’é qu’eu faço? Não posso
perder a oficina… E se for outra pessoa a comprar e eu ficar de fora?
— Amanhã é Segunda, é um bom dia para começar coisas.
Fala com o meste Jacinto. Pergunta-lhe qual a ideia dele. Propõe-lhe
pagares uma renda.
— Como se fosse uma courela onde um homem tem de
largar a pele para pagar as meias!
— Mas é para começares, e depois logo vês! Quem sabe
ele esteja de acordo. Não deixa de ser o dono e receberá uma paga, sem
trabalhar. Tens de ser cauteloso, fazeres contas. Sabes quanto a casa cobra…
oferece-lhe a terça parte.
Saiu e passou ainda na venda do Largo da Ponte e
bebericou um copinho de aguardente. O Ti João preparava-se para fechar e já não
estava ninguém para conversar. Era áspera a medronheira e arrepiou-se. O homem
disse-lhe, como a inspirar-lhe confiança, que viera do Mourão, e que até o
Presidente Carmona a tinha bebido aquando da eleição em Fevereiro, mas o Zé não
estava disposto a repetir a dose. Despediu-se e pôs-se rua acima. Amanhã era
Segunda-Feira, dia de começar coisas como dissera a mãe, e o Carmona não havia
de perceber grande coisa destas bebidas dos alambiques da serra.