sábado, outubro 13, 2012

Os Bruxos da Corte Cibrão

A folha 19.694




‑ Não acreditas, não acreditas, mas devias ir – insistia o Zé Leonel. – Há coisas que nunca se sabe… Vai lá que eu vou contigo.
‑ Ò pá, Zé! Vou lá fazer o quê, não me dizes? O senhor Joaquim deu-me as sebentas e eu vou usá-las, não? Olha esta, começa em 19.651 só porque me apeteceu, e vou lá escrever também o que me apetecer. Olha ò caraças!
‑ Sim, como te apetecer, mas se queres escrever como deve ser, devias ir lá falar com os gajos, ‑ o Zé Leonel voltava à carga, ‑ li num sítio que isso é importante. Amanhã era bom, é dia 13.

E lá fomos à Corte Cibrão, no caminho de Marmelete.
 
Que dia aquele! Tenho-o registado como se ontem fosse e, no entanto, já lá vão uns belos anos. Naquele tempo eu tinha o hábito de numerar as páginas dos meus cadernos (sebentas) começando num número qualquer, geralmente elevado e sem repetições, para dar a impressão que escrevia muito, e nesta aparece uma folha com este curioso número 19.694. Curioso e especial, porque segundo os presságios dos pobres bruxos da Corte Cibrão, os dois velhos pai e filha nele viram os ziguezagues do meu destino e por ele me traçaram um raio de futuro. Levei-lhes naquele dia um caixotinho cheio de sebentas e cadernos em branco, mas já com as páginas numeradas para contrariar qualquer eventual desejo de anular escritos repesos. A ideia do Zé Leonel era que eles "protegessem" os meus desabafos com as suas sábias evocações anti-desgraça.


O Bruxo de Corte Cibreira
Eles folhearam e folhearam demoradamente, concentrados no vazio das folhas, e como se consultassem os espíritos detiveram-se nesta página. Bruscamente o velho agarrou uma pequeníssima bolsa de pano que trazia ao peito, parecendo buscar nesse amuleto a ajuda para conseguir ler nessa página o que muitos anos depois eu lá pudesse escrever, e olhou-me fixamente com os olhos semicerrados.



Eu era um valente cavaleiro de bicicletas nos meus quinze anos, e pelos bruxos só sentia uma espécie de curiosidade que a minha tia Emília constantemente me aguçava com as suas benzeduras e os seus “olha que dá azar”. Mas naquele momento o meu coração acelerou e temi. Dissimuladamente fiz figas. O Zé Leonel nessa altura enganchou o seu braço no meu, como a fortalecer a nossa união frente a algum quebranto ou andaço que pelos ares viesse. Mas não, foi apenas uma espécie de sina (aliás, havia até quem dissesse que estes dois eram, afinal, mais adivinhos aciganados do que bruxos).

E sempre veio a sina…

“Menine, em prumêres, ‑ me recomendou o velho,‑ nada de dares este númaro a nenhuma das folhas dos teus escritos; até devias era rasgá-la;
Sigundes, em escrevendo uma em cada dia, já vais ser velho quando cá chegares a esta folha e…;
Torceros, os quatro prumêros númaros são do ano em qu’hádes ser mancebo (naquele tempo aos 21 anos);
E despoje, o númaro quatre é o teu mês das sortes, hádes sentar praça em abrili nas tropas das Cavalarias;
Maje ainda, o númaro um qué dzê q’um ano despoje hádes ir pra uma guerra;
E vê-se na soma dos númaros de 1969 o dia desse mês, outra vez abrili, em qu’hádes partiri.
E revirando os olhos ainda continuou com as contas ‑ … nove e um dez, noves fora um, um e seje faz seti, com novi  faz dezaseje, noves fora seti, com quatre faz onzi, noves fora doje. Poj’é Chico, a tua ida à guerra vai fazer sofrer munto duas pessoas… deixa veri… sim, um és tu mesmo, vai-te a doer o pêto de partires, a outra pessoa há de ser… uma moça, seja ela quem for. E na te posse dzê maje nada!”
Mas ainda balbuciou qualquer coisa que mal percebi: " - ... se vais a começar… outubro de 2017… se não sabias ficas a saber, o mundo acaba na volta do século… e todos vão pagar… é o pocalipes“.
E assim acabou. Fez um sinal para que lhe deixasse a paga sobre a tosca mesa de castanho, velha e suja, e recolheu-se para a escuridão da outra metade casa, separada da entrada por serapilheiras cosidas, penduradas num varal.
A filha agarrou-me no talego e empurrou-nos para rua com o caixote das sebentas. Respirámos fundo, eu o Zé Leonel, e sem mais palavras montámos nas gingas e pedalámos ladeira abaixo até à Fonte da Azinheira. Só aí parámos para nos refrescarmos e acordar daquele “sonho”.

*

Passados tantos anos ainda mantenho essas sebentas, ou quase todas. Perdi essa mania da escrita diária, obrigatória, e muitas delas acabaram sendo usadas para coisas de escola, minhas e dos primos.
Hoje, fim de semana de arrumações, é preciso criar espaço para mais uns livros que se foram acumulando, e sai em cena uma velha caixa de cartão no cimo dum armário do sótão. A caixa das sebentas! E lá estava a sebenta número 13, a tal com a folha 19.694, completamente inutilizada com um grande X a vermelho. Naquela altura havia qualquer coisa... um misto de respeito e medo, ‑ a crendice generalizada fazia parte da nossa obscura matriz sociocultural, ‑ que me atordoava os sonhos e me levou a inutilizar a dita folha com aquele gigante X que risquei a lápis grosso.
Nunca mais me lembrara desse episódio, mas agora recordei pormenorizadamente a história da minha ida aos bruxos da Corte Cibrão. A casa mal iluminada. A cara do bruxo-velho, pele curtida e enrugada pelos muitos anos ‑ mais de cem, diziam ‑ , olhos pretos, frios, encovados, a boca sem dentes que lhe fazia sobressair o queixo e lhe dava aquela fala esquisita. Até o cheiro dumas ervas quaisquer que a bruxa-filha deitara nas brasas eu parecia senti-lo agora.

Não, não, hoje já não sou supersticioso e por isso decidi usar a famigerada folha 19.694 para nela escrever este reviver de há cinco décadas. Sem medos nem mistérios. Apenas porque sim.
Mas e as datas!? É verdade, as datas coincidiram! Menos o fim do mundo... Mero acaso?! Não, não, não sou mesmo supersticioso... pèro que las hay, las hay!