sábado, janeiro 05, 2013

Já não cora a Maribia...


Nos anos sessenta e poucos, Maribia fora entregue aos cuidados da menina Geninha como aprendiza de modista, sem qualquer alternativa. “Vais e vais mesmo, eu é que sei!”

Ao fim de dois meses, Maribia tratava das brasas para o ferro de passar, desalinhavava o dia inteiro e no final, por ser a mais nova, varria o chão da casa de costura, cumprindo à risca, sempre à risca, que a menina Geninha não era para brincadeiras: “Moça, linhas para um lado e alfinetes para o outro!”

Mais lhe apetecia brincar do que estar ali naquela prisão, de manhã até à tarde. Ela, ainda a começar, e as outras duas, a Fernanda e a Conceição, já ajudantas e com direito a soldo variado, consoante o serviço. Ouviam rádio só aos bocadinhos, e baixinho, para não gastar muito a bateria: o folhetim e os Parodiantes, mas música nada, cantavam elas e alternavam com conversetas e anedotas picantes que a faziam corar. Corava sempre, e então quando as outras mangavam com ela por não perceber os contornos das historietas sussurradas entre dentes, ainda mais vermelha ficava. Aqui, a menina Geninha vinha em sua salvação com um daqueles “Chiu meninas! Deixem a mecinha em paz, que tem tempo!”

Havia sempre visitas, freguesas para medidas ou provas ou apenas visitas, que se demoravam num traz-e-leva e diz-que-disse. “É como no João Barbeiro! Há por aí munta gente a falazar!”, contestava o pai dela, o Joaquim Borrego, trabalhador à jorna e sempre contra tudo. No dia 5 chegava o Figurino com os novos modelos, juntamente com a coleção das amostras dos Armazéns do Norte, o que atraía mais senhoras. Entre suspiros de “ai que lindo!” ou de “não me ficava tão bem?” entravam e saíam as madamas, não antes de se inteirarem ou deixarem o caso do dia, ou da semana, ou mais algum episódio do Dr. Rodrigo que dava traques pela rua, ou da sua Mariazinha, uma oferecida, e que andava no coisital com o Luís da farmácia. Maribia, na inocência dos seus treze anitos, não percebia muito bem o que era e não lhe queriam explicar, mas aquilo era falar mal, com certeza.

– Maribia, vais à loja e trazes quatro metros de fita estrafor preta. – mandava a menina Geninha. Perguntas à Leninha se as minhas meias já estão prontas. Dizes que eu depois mando pagar.

— E volta depressa que ainda tens de ir ao despacho entregar uma encomenda para a Joanita das Alfambras.

E logo as outras duas lhe atiraram, entre dentes: – Vais ver o Ruizinho lá na loja. – Vê lá, não te distraias e não te enganes na fita. Olha o catrapisco, hem!

O Rui era filho da dona da loja. Tinham andado juntos na escola e nessa altura eram vizinhos. Às vezes brincavam juntos, mas agora ele estava em casa das tias em Portimão, a estudar, e só se viam nas férias. Toda a gente dizia que eles se namoravam, coisas de miúdos, mas era mais uma daquelas coisas que a faziam corar, sentia logo o calor nas faces. A menina Geninha já lhe tinha dito que não se apoquentasse, que com a idade ia passar, que afinal não era assim tão mau, pois a Conceição e a Fernanda, na hora de saírem, davam beliscões na cara só para ficarem com umas corzinhas.

Saltitando ladeira abaixo e depois pelas escadas do mestre Pedro Afonso, chegou à loja das meninas Margaridas. Estavam pessoas a ser atendidas e teve de esperar. Reparou que o Rui estava ao canto do balcão a ler um livro de quadradinhos, já com o olhar fixo nela. Corou outra vez e ficou com o coração acelerado. Disse-lhe um “Olá!” tão sumido que mais ninguém ouviu, a que ele respondeu da mesma maneira. Ficaram se olhando assim, tão embevecidos, que nem ouvia a menina Margarida a chamá-la.

– MariaBia, então hoje o que é que temos? O que é?

Quando retomou as escadinhas, logo na primeira travessa, saiu-lhe o Rui ao caminho e, sem aviso nem conlicenças ali lhe deu um beijo fugidio na face vermelha. Fixaram-se por uns segundos, uma eternidade, até que ela desatou a correr pelas escadas acima.

*

É dia de procissão da Nª. Srª. D’Alva. As festas são no largo da Igreja Nova, com quermesse, um palco para espetáculo e esplanada para petiscos, com mesas e cadeiras para se assistir às variedades. Os prospetos diziam que vinham uns artistas de Lagos e o Joãozinho do Rogil com o seu acordeão, para o baile do costume.

Maribia era agora a ajudanta principal e que já tomava conta da oficina, aliás atelier, como dizia o anúncio que a menina Geninha mandara pendurar na janela. Revelara-se com um jeito especial para o corte, cujo diploma tirado em Lagos, na Singer, estava emoldurado na parede, e duma perfeição, que as madamas só queriam que o toque final fosse dado por ela.

– Olá Maribia! – uma espécie de murmúrio tão perto do seu ouvido. – Dás-me sorte com os teus bilhetinhos? Quero vinte e cinco tostões deles.

Hoje, nas festas, fazia um turno na quermesse. Olhava de frente, quase desafiando, os rapazes que faziam bicha para comprarem os bilhetes a ela. Já não costumava corar tanto… mas corou.

– Olá Rui! Podes crer, se comprares do meu cestinho vais ter um prémio. Estendeu-lhe o cesto com o coração acelerado e as pernas a tremerem.

O Rui tirou os bilhetinhos e desenrolou-os, lentamente, gozando o momento – Tinhas razão, saiu-me o 20! O que será?

Era uma moldura, brilhante, com uma daquelas fotografias.

O Rui ofereceu-lha. – Fica para ti, acho que lhe vais dar melhor uso que eu. É uma coisa mais… feminina. Faz de conta que esses… somos nós os dois. O que é que achas?

Lá estava ela a corar outra vez, mas encheu-se de coragem e olhou-o nos olhos. – Obrigada, aceito. Vou pôr uma fotografia minha e…– hesitou e desafiou-o – fico à espera da tua, para lhe juntar.

– Está bem, vou-ta mandar. – E pousando a sua mão sobre a dela, deixou-lhe um “espera por mim”, e desapareceu com os seus amigos.

*

Ele foi para os Fuzileiros na camioneta da manhã seguinte. A fotografia, a preto e branco, chegou três meses depois. Estava fardado e segurava numa das mãos um cachimbo. Ficava-lhe tão bem o cachimbo… ”Com a amizade do Rui” lia-se na parte da frente e, na parte de trás, um comprometedor “Espera por mim” dentro de um coração.

*

O Rui embarcara para a Guiné. Escreviam-se, ela era a sua madrinha de guerra. Era o que dizia, mas na verdade o que sentia era diferente. E ele também. As cartas começavam sempre por “Minha querida Maribia” ao que ela respondia com “Meu querido afilhado”. Na verdade, ambos achavam que já se namoravam. Faziam planos para quando ele voltasse, iriam morar para a Cruz de Pau, ou para o Feijó, e ela abriria em sua própria casa um atelier de costura para outras madamas, e teria as suas aprendizas e ajudantas.

Ficou-se o futuro no sonho. O Rui desaparecera em combate. O não aparecimento do corpo ainda lhe alimentou esperanças, que o fim da guerra fez renascerem. Mas em vão os meses se tornaram anos, e estes quase uma vida.

A Maribia ainda espera o Rui. O seu Ruizinho de olhar sereno, segurando o cachimbo que lhe dava um ar tão fino…