domingo, novembro 27, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (11)

 



LUÍSA - RAINHA DO VIDIGAL

“In nómine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti.” — Era o padre a iniciar ritual, provocando em uníssono um grande “Amen”.

Esta parte inicial, até o Zé a percebia, desde criança, mas quanto à continuação, apanhava uma palavra aqui, outra ali, mas sem perceber o significado. Por que cargas d’água é que haveriam as missas de ser celebradas em latim, se o povo falava era o português. Até o padre tinha de ler por aquele livro grande, pois se não tinha ninguém com quem falar aquela língua, já morta como se dizia, como é que ele haveria de a praticar. Era só pregação! Mas o sermão, esse era em bom algraveo, percebido por todos! “Irmãos, podeis dar, então dai aos necessitados e dai à vossa Igreja, porque quem dá aos pobres…”.

“Dominus vobiscum”…

“Ite, missa est.” — O padre anunciava o fim do santo sacrifício. Quem conhecia o ritual murmurava um “Deo grátias”.

Terminava a missa, o que se percebia pelo farfalhar das roupas e pelo ruído dos passos. As pessoas encaminhavam-se para a porta. Os poucos homens foram os primeiros a sair, mas Zé manteve-se até ela passar. Ela mandou-lhe um olhar de cumprimento ou de desafio, ou de convite, ele que lhe desse o sentido que quisesse, mas ele respondeu-lhe com um picar de olho. Já no adro, ela despediu-se das amigas e esperou por ele. Um “Olá” mútuo foi mais do que suficiente e, como se tivesse sido combinado, dirigiram-se para a lateral do edifício onde estavam os animais.

Ela procurou no alforge as sandálias do campo e trocou de calçado, e ele esperando ao lado dela, perguntou-lhe se ia já para casa, ela que sim e convidou-o a acompanhá-la.

— Não queres ir até lá? Faço uma frigimenta de chouriça com ovos.

— Ora aí está uma coisa qu’a mim me cai no goto! Atão vou contigo. Vá que t’ajudo a montar.

— N’é preciso. — Com a leveza do seu corpo pequeno e a agilidade que a caracterizava, deu um balanço e saltou; com meia volta no ar ficou sentada de lado na albarda. — Olha, já estou.

— Segura-te ao cabeço da albarda, que eu levo a areata.

O caminho fizeram-no devagar, sem pressas. Era cedo. A conversa fluía entre eles. Ela, que tomava conta da casa e do irmão desde que os pais sucumbiram ao febrão das sezões que apanharam no Alentejo quando foram para as mondas. Ela e o irmão escaparam porque tinham ficado com familiares em Maria Vinagre.

— E tu? Os teus pais? A tua mãe já sei que é quem toma conta de ti, mas e o pai? Marujo, não era?

— Sim, era marujo. Andava numa traineira da Fortaleza. Um dia um par de roazes prendeu-se nas redes quando fizeram o cerco e ele saiu na chata para tentar salvar a faina da sardinha. Dizem que os roazes viraram a chata e ele ficou debaixo e deve ter levado uma pancada na cabeça. Quando o tiraram já estava sem vida. Eu era ainda pequeno. Daí, fiquei com esta alcunha de Zé Marujo, mas é só alcunha, o meu apelido e Santos. Sou José Alberto dos Santos.

— Pois é claro! Marujo não é nome de ninguém. Bem, sei lá, se calhar até podia ser, não achas.

Chegaram ao monte e o Zé dispôs-se a desalbardar o burro e prendê-lo na courela do pasto por detrás da casa.

— Sim, obrigada. Eu vou mudar de roupa. — E sentindo que lhe provocara um certo ar matreiro, antecipou-se ela. — Não te atrevas a ir lá a casa antes de eu aparecer cá fora, hem? Nem penses!

— Tá bem, fica descansada. O qu’é que pensas?

Pouco depois já estavam à mesa com a frigimenta na frente. Pão, vinho e boa disposição.

— O Manel? Inda o vi.

— O irmão foi de manhã cedo à pesca para a Carriagem com o vizinho ali de cima. Só vêm lá para a noitinha e, como é costume, não há-de trazer peixe nenhum!

Conversaram. Iam-se conhecendo, ambos entusiasmados com a presença do outro, sentindo-se confortáveis, tranquilos. Ela ruborizada e abanando-se com a mão, sugeriu irem-se sentar no poial à porta e apanharem um pouco de ar mais fresco, e comerem lá fora as laranjas. E foram.

— Queres que experimente outra vez fazer-te os óculos? — Zé abrindo a sua faquinha de bolso.

— Claro que não, aquilo foi apenas uma brincadeira.

A ocasião e as suas posições ao lado um do outro propiciavam inevitavelmente alguns toques com as mãos. Ela limpou as dele com uma rodilha molhada e seguraram-se mutuamente durante uns segundos.

— Tens as mãos frias. — Comentou ela.

— Mas tenho o coração quente. Não é assim que se diz? — Ele agora segurando as dela. — Mas as tuas estão quentinhas. No teu caso é o calor do teu coração, ou estou enganado?

— ‘Tás-me a fazer corar! Sei lá se é o calor do meu coração! Ele está dentro do meu peito, e lá há calor suficiente para ele bater.

— E esse calor não transborda, como o meu?

Mantinham-se de mãos nas mãos. Ele apertou-as ligeiramente e ela correspondeu com idêntico aperto.

— Gosto de ‘tar aqui contigo. Aqui ao pé de ti. Fazes-me sentir bem. E tu, o que sentes?

— Fazes-me corar outra vez. — Hesitante, baixando os olhos. — Sim, também gosto.

— Então gostamos os dois. — E arriscou. — Gostamos um do outro, é?

Bêque-me…

Bêque-me quê? Atão a gente acerta-se. — O qu’é que dizes? Vá, diz lá!

— Mas digo o quê? Se a gente se acerta? Pode ser…

— Pode ser, ou queres mesmo? — Zé aproximando-se, tentando dar-lhe um beijo na face.

— Sim... Também quero. — Ela permitiu o beijo e retribuiu beijando a face dele.

Para ela já chegava por hoje e disse-lhe isso. Que se fosse já. Tinha a cabeça numa grande baralhação e precisava de pensar. Ele concordou, mas puxando-a mais para si, beijou-lhe os lábios. Implorou só mais um bocadinho e trocaram outro beijo. A hora da partida ia-se alongando na tarde. Tanto para um como para o outro a novidade dos beijos era maravilhosa. Ele sempre segurando as mãos dela fê-la pôr-se de pé. Ficaram frente a frente e beijaram-se de novo e desta vez com um abraço, primeiro tímido, mas depois apertado e desinibido. Excitados os dois, ela defendeu-se, afastando-se murmurou-lhe que deviam ficar por ali.

— Só mais um abraço para a despedida. — Pediu ele.

E com esse derradeiro abraço se despediram. Combinaram que ela o visitaria na oficina já na Segunda-feira, e depois combinavam como se veriam. Ele encostou-lhe a boca ao ouvido e disse-lhe baixinho “Inda há-des ser a m’nha rainha!”