Domingo de finais de
Junho, quente e sem escola. O meu pai saíra cedo para o mar. Ouvi-o conversar
com a minha mãe: ia fazer a maré e depois dar uma ajuda no Casino. O Costa e o
Zé da Luz tinham-lhe pedido essa ajuda para fazerem o terraço do Sargo e ele não
podia dizer que não. “Ajudar os primos não é favor.”
A cozinha cheirava
aos ovos com chouriça do farnel do meu pai. Salivei e levantei-me num salto
para ir passar um pedaço de pão na frigimenta, petisco fino antes do café.
Salpiquei os olhos
no lavatório da cozinha, enfiei as calças curtas e as sandálias (de sola de
pneu fabricadas pelo Sr. Manel Gil, da Igreja Nova) e saí a correr a desafiar o
Zé Rogério.
– Queres ir à praia?
– sussurrei pelo postigo – Vamos ao Monte Clérigo, vamos ver o Casino.
Não demorou nada e o
Zé Rogério saltou pela janela.
– Anda – e começou a
subir a ladeira para o Castelo.
– Espera Zé Rogério.
Vamos pelo Castelo? Direito aos Montes Galegos? Por ali é mais perto – e
apontei lá para trás, o caminho das hortas e da ribeira. – Vamos ter ao Vale
Palheiro e subimos por lá. Eu sei o caminho.
E assim fomos
saltitando, caminho abaixo, abrindo o peito ao ar da manhã. Passámos ao largo
da Fonte das Mentiras, atentos e receosos, não fosse o Viva-à-Rússia estar lá
ao pé, e seguimos os contornos do cerro a caminho do Vale Palheiro. Não havia
que enganar, era caminho à vista. A vila por trás e o monte dos lavradores pela
frente. O casqueiro na cabeça protegia do sol mas a sede já apertava. Ao nos
aproximarmos do monte os cães começaram a ladrar e apareceu a senhora Joaquina,
surpreendida.
– Por aqui a esta
hora! Onde é que vão vocemecês, mecinhos?
– Vamos ao Monte
Clérigo ter com o meu pai! – resposta pronta, convincente – temos é um
bocadinho de sede…
Ela foi buscar um
púcaro e deu-nos água da bilha, fresca. Os nossos olhos fixaram-se no pão sobre
a mesa.
– É carne frita, – murmurei para o Zé Rogério,
e insisti – é carne frita!
A senhora Joaquina
não ouviu, mas até pareceu que tinha ouvido. A sua mão grossa segurou o pão e a
faca e partiu duas fatias. Untou-as com a gordura do tacho e aplicou-lhe dois
piques de carne.
– Vá comam. Os moços
têm sempre vontade. E se vão para tão longe…
– Ainda é muito
longe? – O Zé Rogério, receoso. – Vê-se daqui?
– Quando chegarem lá
em cima, estão a meio do caminho, – explicou a senhora Joaquina, – as mães
sabem de vocês? – Acenámos afirmativamente. – De certeza?
– Sim, sim, vamos
ter com o meu pai. Vamos Zé. Obrigado. Té má logue!
Subimos a ladeira e
levámos algum tempo a chegar ao caminho da praia. Aí sentámo-nos na berma da
estrada. Não se via ninguém. Estrada para a frente e estrada para trás.
Escondida pelas curvas, voltava a aparecer lá longe, muito longe. É verdade que
já nos doíam as pernas, estávamos cansados e de novo cheios de sede. Ficámos
ali parados.
– Para que lado fica
o mar?
– Olha Zé, acho que
é… além, tás a ver?
– Na tou a ver nada.
– fungou o Zé Rogério. Já não sei para onde é.
– Olha! – gritei,
apontando na direcção do velho celeiro. Um carro de mula! Estamos com sorte.
Era o senhor Manel
Zé, do Palazim, que naquele tempo alugava o seu carrinho para pequenos fretes.
Carregava mobília para uma família de veraneantes. Esticou as rédeas da mula e
com um “Aí, Boneca, aííí!” parou o carro junto da gente.
‑ Eh! Vocês! Que
andam por aqui a fazer, sozinhos? Vadiando?
‑ Não senhor, somos
da vila e vamos à praia ter com o meu pai que está a trabalhar no Casino.
‑ E têm pernas para
tanto? É mais longe do que pensam. Vá, cá pra riba.
Ficou mais curta a
nossa viagem e mais agradável, de carro e com companhia. Pela minha parte já
não podia com as pernas e o Zé estava na mesma. A Boneca era ligeira e depressa
chegámos à curva da altura com o Sr. Manel a dar à manivela do travão, que o
carro não podia embalar. Íamos felizes, eu e o Zé Rogério. O mar estendia-se
até perder de vista, sereno e imenso, encandeando-nos com o reflexo do sol.
‑ Onde é o fim do
mar? O que haverá para lá?
‑ És curioso! – o
Sr. Manel Zé parecia adivinhar os meus pensamentos, ‑ Perguntas aos teus tios
que te explicam. Eles que são homens do mar, e já correram este mundo e o
outro. Para além, lá muito longe, muito longe, fica a América. Já ouviste
falar?
Não, ainda não
ouvira falar. Só do Américo, da Igreja Nova, ajudante do Sr. Bertolino caldeireiro;
será a mulher dele? Que não, não era nenhuma pessoa. América era uma terra, com
muita gente rica. Todos os miúdos têm bicicletas e toda a gente tem carro.
Quando era mais novo teve uma carta de chamada, mas não pôde ir por mor dumas
sezões que apanhou. Tinha pena…
Então os meus tios
da marinha é que conhecem a América. Devem ser o Tio João e o Tio Eugénio que
mandam aqueles postais ilustrados com fotografias de navios e de cidades
desconhecidas. Ora fosse eu marinheiro e iria conhecer essa América.
‑ Zé Rogério, quando
a gente crescer não queres ir para a marinha? Os meus tios arranjam lugar prá
gente, certezinha.
Chegados ao fim da
estrada, lá estava o Casino. O Casino! Nunca tinha visto um casino e não me
pareceu lá grande coisa. Era uma barraca de tabuinhas pintadas de branco e azul
e telhado de braceja, uma casa como as outras naquela rua de areia onde custava
a andar. Dizem que foi o Negus que a fez, mas disso não tenho a certeza. Negus,
o rei da Praia do Monte Clérigo, um rei sem reino nem reinado, tão queimado do
sol que parecia um africano, e se calhar até era… da Abissínia.
Estavam uns homens
trabalhando no terraço ao som da gaita do Sidónio, mas do meu pai nem a sombra.
Comecei a ficar aflito. Descobri o parente Costa e perguntei-lhe. O meu pai já
partira para a Amoreira.
Foi assim uma
espécie de dor de barriga, e o Zé Rogério que nem menos. Cansados e sem comida,
a situação não tinha grandes saídas.
‑ E agora Xico, o
que é que a gente vai fazer?
‑ Deixa, ‑ que
decidido eu era! ‑ Vamos ter com o Sr. Manel Zé e ele leva a gente prá vila
outra vez.
Chegámos à vila pela
tardinha e desembarcámos ao pé da Praça. Tínhamos faltado ao almoço e agora era
preciso explicar. A minha mãe tinha ido para as ceifas do meu avô e eu havia de
ter ido comer à da minha tia da vila. Por aí a coisa resolvia-se. O pior era o
Zé Rogério.
‑ Dizes que vieste
comigo à da minha tia da Igreja Nova.
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