Levei quase
um ano com a Zulmirinha. Ensinou-me a ler e a escrevinhar qualquer coisita,
sempre com incentivos de figuinhos secos ou torrões de açúcar pela lição sabida
ou cópia sem erros. Lá estagiei e ganhei confiança e lá conheci a minha
professora (a que viria a ser) que morava mais abaixo e que dava sempre vaia.
“Francisquinho, lá te espero para Outubro”. “Sim minha senhora”.
A Escola Primária de Aljezur (*)
E esse
Outubro finalmente chegou de céu embrulhado, ansiosamente esperado. A escola
começando na primeira semana ‑ no meu ano foi a 6, logo a seguir ao dia da
República (fosse lá o que isto fosse, só compreendido alguns anos mais tarde).
Um dia diferente de todos os outros, um primeiro dia. Preparara tudo de
véspera: uma mala castanha de papelão, brilhante nas suas cantoneiras de lata,
e lá dentro, a pedra com o respectivo lápis-de-pedra e o indispensável trapinho
para apagar, um caderno de duas linhas, lápis de carvão e caneta de aparo, e o
Livro, esse que acabei por saber de cor e salteado. Pouca coisa que saltitava
dentro da mala à medida que eu voava pela ladeira abaixo, nas minhas sandálias
novas de sola de pneu, como dizia o mestre Manel Gil, que as fizera: “Com estas
até voas! Levam sola de avião”.
…que acabei por saber
de cor…
Ia
orgulhoso, no meu bibe branco, a estrear, com abotoadura ao lado esquerdo e um
cinto para apertar e franzir.
‑ Vai pela
beira da estrada, cautela com os carros!
Éramos
muitos, de branco, pela berma da estrada a caminho da Escola. Moços e moças.
Uns já conhecidos, outros a conhecerem-se. Os mais velhos a fazerem já as suas
filistrias ou a defenderem os seus amigos. “Este é o Chico, é meu primo, vejam
lá, hem?!”
Eu nunca tinha
visto tanta moçada junta. Reunimo-nos no pátio. Os mais novos pareciam
identificar-se mutuamente e ficávamos juntos, à espera.
‑ Práqui os
da primeira e práli os da terceira, – a voz autoritária da prima Marcolina que
com o seu ponteiro de cana-da-índia tocava as novas ovelhas para junto da
parede, numa formatura dois a dois.
Ficámos
quietos e inquietos durante uns segundos que pareceram horas. A “contina”
mantinha os rapazes alinhados até que se ouviu lá de dentro um “mande-os
entrar”.
Entrámos
para a sala, grande, cheia de carteiras em quatro filas. “Ninguém se senta sem
eu dizer”. A professora começou a chamar-nos pelos nomes, indicando o lugar
onde cada um devia ficar. Os da primeira classe nas primeiras filas, e os da
terceira nas filas de trás. “Menino Francisco, a seguir.”
O meu olhar
percorreu toda a sala. À nossa frente, sentada a uma mesa de tampo preto, a
senhora professora. Sobre a mesa alguns papéis, um estojo de vidro com dois
tinteiros, um azul e outro encarnado, e uma tabuinha estreita, com dois dedos
de altura. “Será a régua?” perguntei-me, arrepiado. Por trás da professora um
crucifixo como o que a Madrinha tinha por cima da cama. Mais para o lado, o
quadro, preto, tão preto, estranho, com um estrado por baixo. Ao longo da
parede estavam uns armários, duas fotografias em moldura, cada uma com um velho
penteadinho, e ainda uma janela fechada com a bandeira a fazer de cortinado,
que afinal não era nem uma coisa nem outra: era uma caixa que se chamava vitrine, e a cortina não era cortina, mas
sim a verdadeira bandeira nacional como aprendemos mais tarde.
Finalmente,
já todos sentados, a professora encarou-nos a todos. Segurava também um
ponteiro, como a prima Marcolina. Passeou-se pelos corredores, passada larga,
larga de mais para as suas curtas pernas (éramos quase do mesmo tamanho!). Ia
falando, devagar. “Isto é uma sala de aula”, “Os meninos aqui só falam para
responder às minhas perguntas”, “ Aquele que se portar mal, já sabe,
habilita-se a umas palmatoadas”, “Aqui não há paizinhos nem mãezinhas”, “Quem
precisar de fazer as necessidades, levanta a mão e pede “Senhora professora,
posso ir lá fora?””.
Estávamos a
ficar um pouco assustados, enquanto os da terceira faziam sorrisinhos parvos.
- Calados! O
menino Zé Luís vai ao quadro escrever a data: 6 de Outubro. – Dirigia-se a um
dos da terceira classe.
A professora
fez revisões (que eu não sabia o que era) com os da terceira, e nós ficámos a
fazer desenhos na pedra até à hora do almoço. Ao meio dia houve ordem para
sair, e toca a correr a caminho da manja, que à uma e um quarto tínhamos de
estar de volta. Alguns dos meninos do campo ficaram na escola e atacaram os
seus farnéis nos cestinhos de vime. Depois brincavam o resto do tempo no
recreio. Invejei-os e insisti com a minha mãe para que me preparasse também um
farnel.
– Pensas que
isso é uma coisa boa, mas não é! Bom é vires a casa e comeres a comida da
família. – Tinha razão, como sempre.
O almoço foi
muito rápido e depressa integrei o grupo do pessoal da vila que regressava à
escola. Ainda tivemos tempo para correrias e brincadeiras antes de formar para
a entrada, agora cada um com o seu companheiro de carteira. O meu era o Zé
Francisco, que vinha do Moinho da Várzea.
Este dia
marcou-nos a todos… o primeiro dia de escola. Pessoal da vila e pessoal que
vinha dos montes à roda, de sítios que só eles pareciam conhecer, Corte daqui,
Vale de lá… todos sabendo coisas que outros não sabiam, generosamente
partilhando esse conhecimento e prometendo novidades nos dias seguintes:
“Trago-te uma forca nova para o teu atirador!”, “Tá bem, e eu dou-te um
berlinde de pirolito!”. Logo ali nasceram as mais firmes amizades que
amadureceram ao longo da vida, e duram até hoje, já noutro século…
(*) Fotografia retirada do site da Junta de Freguesia de Aljezur em http://jf-aljezur.pt
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