quarta-feira, setembro 18, 2013

Estórias Barlaventinas - O primeiro dia de Escola


Levei quase um ano com a Zulmirinha. Ensinou-me a ler e a escrevinhar qualquer coisita, sempre com incentivos de figuinhos secos ou torrões de açúcar pela lição sabida ou cópia sem erros. Lá estagiei e ganhei confiança e lá conheci a minha professora (a que viria a ser) que morava mais abaixo e que dava sempre vaia. “Francisquinho, lá te espero para Outubro”. “Sim minha senhora”.
A Escola Primária de Aljezur (*)
 
E esse Outubro finalmente chegou de céu embrulhado, ansiosamente esperado. A escola começando na primeira semana ‑ no meu ano foi a 6, logo a seguir ao dia da República (fosse lá o que isto fosse, só compreendido alguns anos mais tarde). Um dia diferente de todos os outros, um primeiro dia. Preparara tudo de véspera: uma mala castanha de papelão, brilhante nas suas cantoneiras de lata, e lá dentro, a pedra com o respectivo lápis-de-pedra e o indispensável trapinho para apagar, um caderno de duas linhas, lápis de carvão e caneta de aparo, e o Livro, esse que acabei por saber de cor e salteado. Pouca coisa que saltitava dentro da mala à medida que eu voava pela ladeira abaixo, nas minhas sandálias novas de sola de pneu, como dizia o mestre Manel Gil, que as fizera: “Com estas até voas! Levam sola de avião”.
…que acabei por saber de cor…

Ia orgulhoso, no meu bibe branco, a estrear, com abotoadura ao lado esquerdo e um cinto para apertar e franzir.
‑ Vai pela beira da estrada, cautela com os carros!
Éramos muitos, de branco, pela berma da estrada a caminho da Escola. Moços e moças. Uns já conhecidos, outros a conhecerem-se. Os mais velhos a fazerem já as suas filistrias ou a defenderem os seus amigos. “Este é o Chico, é meu primo, vejam lá, hem?!”
Eu nunca tinha visto tanta moçada junta. Reunimo-nos no pátio. Os mais novos pareciam identificar-se mutuamente e ficávamos juntos, à espera.
‑ Práqui os da primeira e práli os da terceira, – a voz autoritária da prima Marcolina que com o seu ponteiro de cana-da-índia tocava as novas ovelhas para junto da parede, numa formatura dois a dois.
Ficámos quietos e inquietos durante uns segundos que pareceram horas. A “contina” mantinha os rapazes alinhados até que se ouviu lá de dentro um “mande-os entrar”.
Entrámos para a sala, grande, cheia de carteiras em quatro filas. “Ninguém se senta sem eu dizer”. A professora começou a chamar-nos pelos nomes, indicando o lugar onde cada um devia ficar. Os da primeira classe nas primeiras filas, e os da terceira nas filas de trás. “Menino Francisco, a seguir.”
O meu olhar percorreu toda a sala. À nossa frente, sentada a uma mesa de tampo preto, a senhora professora. Sobre a mesa alguns papéis, um estojo de vidro com dois tinteiros, um azul e outro encarnado, e uma tabuinha estreita, com dois dedos de altura. “Será a régua?” perguntei-me, arrepiado. Por trás da professora um crucifixo como o que a Madrinha tinha por cima da cama. Mais para o lado, o quadro, preto, tão preto, estranho, com um estrado por baixo. Ao longo da parede estavam uns armários, duas fotografias em moldura, cada uma com um velho penteadinho, e ainda uma janela fechada com a bandeira a fazer de cortinado, que afinal não era nem uma coisa nem outra: era uma caixa que se chamava vitrine, e a cortina não era cortina, mas sim a verdadeira bandeira nacional como aprendemos mais tarde.
Finalmente, já todos sentados, a professora encarou-nos a todos. Segurava também um ponteiro, como a prima Marcolina. Passeou-se pelos corredores, passada larga, larga de mais para as suas curtas pernas (éramos quase do mesmo tamanho!). Ia falando, devagar. “Isto é uma sala de aula”, “Os meninos aqui só falam para responder às minhas perguntas”, “ Aquele que se portar mal, já sabe, habilita-se a umas palmatoadas”, “Aqui não há paizinhos nem mãezinhas”, “Quem precisar de fazer as necessidades, levanta a mão e pede “Senhora professora, posso ir lá fora?””.
Estávamos a ficar um pouco assustados, enquanto os da terceira faziam sorrisinhos parvos.
- Calados! O menino Zé Luís vai ao quadro escrever a data: 6 de Outubro. – Dirigia-se a um dos da terceira classe.
A professora fez revisões (que eu não sabia o que era) com os da terceira, e nós ficámos a fazer desenhos na pedra até à hora do almoço. Ao meio dia houve ordem para sair, e toca a correr a caminho da manja, que à uma e um quarto tínhamos de estar de volta. Alguns dos meninos do campo ficaram na escola e atacaram os seus farnéis nos cestinhos de vime. Depois brincavam o resto do tempo no recreio. Invejei-os e insisti com a minha mãe para que me preparasse também um farnel.
– Pensas que isso é uma coisa boa, mas não é! Bom é vires a casa e comeres a comida da família. – Tinha razão, como sempre.
O almoço foi muito rápido e depressa integrei o grupo do pessoal da vila que regressava à escola. Ainda tivemos tempo para correrias e brincadeiras antes de formar para a entrada, agora cada um com o seu companheiro de carteira. O meu era o Zé Francisco, que vinha do Moinho da Várzea.
Este dia marcou-nos a todos… o primeiro dia de escola. Pessoal da vila e pessoal que vinha dos montes à roda, de sítios que só eles pareciam conhecer, Corte daqui, Vale de lá… todos sabendo coisas que outros não sabiam, generosamente partilhando esse conhecimento e prometendo novidades nos dias seguintes: “Trago-te uma forca nova para o teu atirador!”, “Tá bem, e eu dou-te um berlinde de pirolito!”. Logo ali nasceram as mais firmes amizades que amadureceram ao longo da vida, e duram até hoje, já noutro século…
(*) Fotografia retirada do site da Junta de Freguesia de Aljezur em http://jf-aljezur.pt

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