domingo, maio 02, 2010

Cronicando: Sete anos de pastor... na Margem Esquerda

- Olhe lá, primo, já o mê Ibrahîm me escreveu outra vez. Disse-me o Emanuel carteiro que vem do Alentejo. Veja-me lá o que ele diz, se precisará dalguma coisa? Dá-me cá uma tremedeira, só de segurar a carta. Veja lá, primo, veja lá.
E abrindo-a ali, à minha frente, estendeu-me as três ou quatro folhas da carta, com aquela caligrafia certinha e bem arrumada que era o cartão de apresentação do Ibrahîm.
Pigarreei para limpar a voz, e comecei...

Tia Fatima,
Vieram-me à memória aqueles longos serões, no frio do inverno, à luz do candeeiro a petróleo, em que no seu colo aprendi as histórias fantásticas que povoaram os sonhos da minha infância e… ainda os de hoje.
Enquanto a vizinha Luzia trauteava uma espécie de fado que aprendia num daqueles papéis que o cauteleiro lhe trazia, a tia sussurrava-me ao ouvido a maravilhosa história de Jacob e de Raquel, até eu adormecer. Enchia o meu sonho com esses personagens que levavam as ovelhas a beber a um poço tapado com uma pedra. E eu ficava assim, meio adormecido, a imaginar o que seria um poço com uma pedra em cima… não sei quanto tempo, até a vizinha Luzia elevar a voz para mais uma tirada de “Eszé e Maria, inda mal se via, gordando sê gado…”
Conheci melhor o Jacob e a Raquel quando a lírica do Luís Vaz me entrou pelo quinto ano adentro. Tive de decorar o soneto e ainda hoje sou capaz de o dizer:



“Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.”

E continua, continua, por mais uns tantos versos…

Nessa altura a curiosidade levou-me de Camões até ao Livro dos Livros, Génesis, onde a história é contada com mais pormenor, aliás, com todos os pormenores e personagens, percebendo-se melhor as relações, o parentesco, os bons e os maus.
Como saber se a vida real reflecte a Bíblia, ou se as histórias que a Bíblia conta são verdadeiros excertos da vida real? Os especialistas conseguem explicar as metáforas do Grande Livro e encontrar, para os diversos acontecimentos reais, independentemente da época, uma história semelhante vivida pelo povo de Deus.
Quando o Alexandre, médico e meu companheiro da hospedaria, me contou há umas semanas o caso do Chico das Cortes e da sua Luciana, nem imaginei que aqui, nesta terra do fim do mundo, uma história destas se viria a revelar caber direitinha no Grande Livro: o Jacob, o Labão e a Raquel, na região semi-desértica da Margem Esquerda… com os seus poços e as suas ovelhas.
Recordo cada uma das palavras do relato do Alexandre:
“No outro domingo conheci o Chico das Cortes no Centro Republicano. Entrei no estabelecimento atabernado e escuro e pedi uma mini. O Chico estava à ponta do balcão. Olhava a sua garrafa vazia e ofereci-lhe “- Vai mais uma?”. Ele sacudia a cabeça, num gesto de inconformismo mais do que de recusa, e a um sinal meu o Sô Zé pôs-lhe uma nova cerveja na frente. O Chico levantou-a olhando na minha direcção, e tomou um longo golo. Arrotou um gracias e acabou com a bebida. Continuou com o olhar fixo na garrafa, abanando a cabeça numa constante negação, reprimindo-se a ele próprio ou inconformando-se com o seu fado. Cuspia um palavrão de quando em quando para cortar o silêncio do seu desespero.
- É moiral lá prá serra, doutor, na herdade das Cortes Altas do menino Joanito Rendas, - era o Sô Zé aproveitando a hora morta para carregar o frigorífico com cervejas para a tarde quente que aí vinha, - Ora aí tá um bom moço, com o coração despedaçado…”
A dor do amor…- lembrei-me das palavras do Alexandre. Numa terra destas, com tão poucas pessoas, era impossível manter em segredo uma história de amor. Desde a barbearia ao Centro Republicano, desde o paredão da Tapada à porta da Igreja, o esgravatar permanente de novos temas para a conversa descobria qualquer segredo. Bastavam alguns sinais, que os muitos especialistas a quem nada escapava, logo reconheciam e relacionavam e, ali mesmo, se tecia a história de cada um.
- São as línguas tecedêras… costuma comentar o senhor Cipriano, enfermeiro reformado e nosso parceiro da sueca, descansando as mãos entrelaçadas sobre a barrigada de sopas do costume. Sabe o qu’é, amigo doutor? Na têm nada que fazeri! É uma entretenga passajar na vida alheia.
Mas voltando ao Alexandre, a querer animar o moço:
“- Ah! A dor do amor chega a toda a gente! Deita-se um gajo a afogar numas cervejitas, e pronto, é deixá-las fazer o trabalho delas! Um tipo esquece e adormece…”
Mas como o Chico não mostrava qualquer reacção à conversa ligeira, o Alexandre tomou um ar mais sério, e ofereceu ajuda.
“- Passe lá no consultório para agente conversar um bocadinho, amanhã de manhã. Pode ser que se arranje uma solução… fico à sua espera.
Foi o silêncio depois do Alexandre se calar, até que:
- Ele na ouvi! – era a voz do velho João Inácio que vinha da penumbra da casa. Ninguém tinha dado por ele, no seu canto escuro. - Tá cego e surdo! Hádes aprender à tua custa!
- Teja calado, Ti João, sabe lá da minha vida! – Rosnou o Chico, sem se virar.
-Atã na sê! Veja lá o senhor doutor, se na sê: foi lá pró monte das Cortes Altas servir há uns sete anos. Sete anos a comer a poêra das ovelhas, só pra tar ó pé dela… à espera que ela crescesse. E ela também se enrabichou. Mas o mal é que o patrão a quer pró sê sobrinho, e o pai dela, o Manel, interessa-lhe é juntar os rebanhos. É tudo ganância! Prometeu a Luciana ao Chico e agora vai dá-la ao outro. E quer que este se junte com a mais velha!
O Chico agitava-se - Ó Ti João, já chega!
Ai já?! – Continuava o Ti João. E tu vais ficar com a irmã dela? É o que o Manel quer, é dar-te a outra filha. E tu? Se calhar pensas é que vais ficar com as duas! Parvalhão! Tás à espera do quê pra fugires com a moça? Na te disse já que tens a minha casa?!
É assim, não? – Questionava o Chico, já com outra cerveja. Vou prá sua casa e o Ti João dá-me as sopas, a mim, a ela e ao borracho que vem aí! E mais a espingarda pra me defender do Manel? E o sobrinho do patrão, que é só o sargento da guarda, inda vem por aí fora com a cavalaria!
Calou-se o Chico e o Ti João deu duas assopradelas, inchando as bochechas. Fez-se silêncio. Havias de ter assistido, Ibrahîm. Até o Sô Zé suspendeu a arrumação das cervejas para não quebrar o sossego.”
*
O Chico não apareceu no consultório e nem o Alexandre voltou a ouvir notícia dele, até hoje.
Estávamos nós os dois no Centro Republicano, bebericando umas minis, quando o Sô Zé nos vem puxar para o canto do balcão e, num sussurro, – Dr. Alexandre, lembra-se do Chico das Cortes?
O Alexandre acenou, cúmplice.
- Pois o Chico teve de se juntar com a Florinda, a mais velha! – E ficou à espera da reacção do Alexandre.
Reacção que não se fez esperar – Coitado do moço… O seu grande amor não era a outra, a Luciana? Foi a ganância do pai delas, como se dizia, não foi?
-Era a ganância do Manel! Era! – Excitava-se o Sô Zé. - Mas a coisa deu pró torto, sabe? O Chico, - e chegou-se mais à cara do Alexandre, - diz-se por aí, que eu não sou de intrigas, o Chico nunca confirmou a coisa… quer dizer, nunca se deitou com ela, e ela… não teve para aturar isso e fugiu para Paymogo com um fandanguista qualquer! Eh! Eh!
- E o Chico, coitado?! – Indaguei.
O Sô Zé exibiu o ar mais matreirão e rematou – Coitado?! Qual coitado, nem meio coitado! O Chico ficou com a Luciana. O sargento não lhe pegou ao saber que estava de barriga, e o Manel não teve outro remédio senão estender a sociedade ao Chico… pelo menos por outros sete anos.

...

Assim fez Jacob;
e, terminada a semana de núpcias de Lia,
Labão deu-lhe Raquel, sua filha, por mulher.
Génesis, 29-28

...

- Oh Sô Zé! – O Alexandre elevou a voz, - Traga lá mais uma rodada e junte-se aqui à gente. Afinal não há só histórias tristes, como as que aqui o meu amigo Ibrahîm costuma contar.
E voltando-se para mim – Vá, manda lá esta para a tua tia, para ela não pensar que aqui só há desgraças!



E assim é, tia, aqui lhe mando para o barlavento algarvio mais uma história do “sotavento alentejano”, verdadeira e bíblica(!), que dará um belo conto para os serões de inverno, fazendo malha ou britando azeitonas, como era antigamente, ou usando as modernices de agora… num computador qualquer à roda do aquecedor eléctrico.

Beijinhos do seu sobrinho, e mais um abraço para o primo.
Ibrahîm

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