sexta-feira, novembro 05, 2010

Lenda de Aljezur


Passam as lendas de geração em geração de diversas formas; muitas delas, pela facilidade de imaginação, memorização e transmissão, constituem-se em autênticos rimances versejados, quiçá cantados em festas e feiras... como foi hábito antigo, antes do advento tecnológico-globalizador que associou o "conhecimento" ao clique.

Numa noite de navegante insónia, conheci esta no sítio do Arquivo Português de Lendas (APL) (uma base de dados relativa a um projecto liderado pelo CEAO da Universidade do Algarve), que por seu turno a recolheu de LOPES, Morais, Algarve: as Moiras Encantadas, s/l, Edição do Autor, 1995 , p.158-165. (in http://www.lendarium.org/narrative/lenda-de-aljezur).
Canta assim:

Lenda de Aljezur

Daquelas lendas antigas
Que o Tempo nos vem contar
Uma das mais esquecidas
Quero agora aqui lembrar.
É uma tão triste história,
Tão difícil de narrar,
Que só a lembrança dela
Nos leva, certo, a chorar.
O que nos faz mais sofrer
E o que é mais de arripiar,
É nada se ter passado
Com qualquer filha de Aghar.
Mas vamos de vez ao conto...
— Em outro tempo ant’rior
À vinda dos muçulmanos
Em tumultos de agressor,
Havia aqui, nesta terra,
Tanta paz e tanto amor,
Que até a lua brilhava
De noite com mais fulgor.
Os frutos que as árv’res davam
Tinham tão outro sabor,
Que par’ciam mais do céu
Que desta terra em redor
As aves?.., essas cantavam
Com tão refinados trilos,
Que eram só acompanhadas
Da voz exímia dos grilos.
E as limpas fontes brotavam
Em harmonia tamanha,
Quer de noite, quer de dia,
Pelas faldas da montanha.
Eram as gentes tão dadas,
Tão irmãs do coração,
Que se via serem todas
Filhas de povo cristão.
Foi assim por muitos séculos,
Hora a hora, dia a dia,
E houve até quem lhe chamasse
Terra de Santa Maria.
Foi assim!... Ai!... mas um ano,
- Há que tempo? não sei bem! –
Gente de guerra invadiu
Mar, rios, terras também.
Ali foi tudo passado
A pente de ferro e fogo;
Ai do ser que não fugisse,
Que a morte o tragava logo!
Foram dias de martírio,
Horas negras de tormento,
E dava-se a Jesus Cristo,
Com a vida, o pensamento.
E os feros mouros brutais,
Com sanha de más lembranças,
Matavam homens cristãos,
As mulheres e as crianças.
Foi, como em vulgar se diz,
Uma tão grande razia,
Que ninguém ficou com vida,
Dada à morte a primazia.
Os jardins também morreram,
As fontes, os rouxinóis,
E ficaram cor de sangue
Os ouros dos longos sóis.
Foi aos poucos serenando
A terra convulsionada,
E até as ervas humildes
Nasceram dum outro nada.
Tímidas aves vieram
De novo soltar a voz,
Para que as manhãs e as tardes
Se sentissem menos sós.
Mas uma vez... uma vez,
A brisa da noite trouxe
Um murmúrio tão brando,
Tão magoado, tão doce,
Que a lua, no alto céu,
Ouviu, ouviu e chorou
Choro assim tão melindrado,
Que em chuva se transformou.
Mas a voz?.., essa se ouvia
Mais bela aos pés duma cruz;
Fala que assim murmurava:
“Ai Jesus!”, só... “Ai Jesus!”
Que desconhecida voz
Era aquela, Santo Deus?...
Que não nascia da terra,
Porque até vinha dos céus?
Que mistério era aquele?
E o mouro pensava nisto:
Se havia voz de cristão
Falando inda em Jesus Cristo?
Mas um dia, à hora triste
Dos trovões e vendavais,
A voz potente de Allah,
Dominando os temporais,
Por sobre a terra do Gharb,
Se ouviu grave e formidanda:
— “Essa voz que vós ouvis
“Murmurar, assim tão branda,
“É a voz do encantamento
“Que lancei numa manhã
Sobre uma Princesa linda,
“Filha de gente cristã,
“Que escapou então com vida,
“Da feroz luta tremenda
“Que enterrou em pó e nada
“A derrota da contenda.
“E, se ela viva ficou,
“É tão só para pensar
“Por cinco séc’los sem fim,
“Sempre a chorar, a chorar.
“Depois do tempo passado,
“Se o Cristão força tiver,
“Acaba-se o encantamento,
“Voltará a ser Mulher.
“Mas, jamais, não o creio,
“À Fé deste Deus que eu sou!”
Nunca mais Allah se ouviu
E o temporal amainou.
Fora certo, cinco séculos,
Depois do que foi narrado,
Ainda essa voz se ouvia
Da Princesa, em tom chorado.
Era sempre ao pôr do sol,
À hora de menos luz,
Que o choro mais magoava,
Com “Ai Jesus!”, “Ai Jesus!”...
Entretanto, os agarenos,
Má gente, sem coração,
Levantaram fortes muros
Contra a força do Cristão.
Mas a Fé move montanhas,
Quanto mais muros de pedra,
E não teme a força estranha
Onde só peçonha medra.
E foi assim... certo dia,
Quando El-Rei dos Portugueses,
Acometeu o castelo
Uma vez e tantas vezes,
Que as portas ali se abriram
Em acto de redenção,
À força tão desmedida
Daquele Povo Cristão.
Matavam-se os agarenos,
Mortos pelas próprias mãos,
Nas águas do mar Atlântico,
Perseguidos p’los cristãos.
Logo na manhã seguinte,
Na rasa planície calva,
Se rezou a Santa Missa
A Nossa Senhora de Alva.
Foi quando, perto, se ouviu,
Como saída da Cruz,
A voz sempre entristecida
Dos “Ai Jesus!”, “Ai Jesus!”
Delegou El-Rei saber
Que som magoado era,
Mas logo uma voz soou
Do mais alto duma Esfera:
“Eu te quebro o encantamento,
“Filha de gente cristã,
‘Volta assim a ser Mulher,
“É tua a doce manhã”.
Como por encanto viu
Rei Afonso uma Princesa
Que aos pés do altar ficou
Numa fervorosa reza.
Deu-a o Rei, como Esposa,
A um fidalgo galante,
Que p’ra sempre ali deixou
Dos muros por comandante.
El-Rei Afonso Terceiro,
À memória dando jus,
Quis que o lugar se chamasse,
Daí em frente, “AI-JESUS”.
Que o Povo, por corruptela,
P’ra que ainda o nome dure,
Foi, a pouco, assim mudando
Até ao nosso ALJEZUR.


terça-feira, novembro 02, 2010

A lenda da batata-doce!


Perdem-se nos tempos as origens das lendas e, nalguns casos, das tradições; nalguns casos porque muitas vezes estas são “construídas”, conquistando na modernidade esse estatuto de tradição, como é o caso de alguns festivais gastronómicos que apresentam pratos tradicionais que muitos nativos ignoram!
Passar-se-á o mesmo com as lendas?
Antigo já eu sou e muita coisa bebi em fontes ainda mais antigas… naquele tempo…
A moçada estava em constante aprendizagem e, qualquer pessoa mais velha fazia questão de ensinar, mesmo que se limitasse a deixar-se observar. O velho Avô Manel e as velhas tias e primas, as da Vila, as do Odeceixe e as da Azia, para não falar da inesgotável fonte que a D. Adelaide e a D. Maria Inácia constituíam: com aquele hábito de nos fazer decorar a lição, aplicado quer ao livro de Significados quer ao livro de Ciências e outros, nos transmitiram saberes que por cá ficaram e de fácil alembradura.
Foram muitos os mestres! E deles me alembra...
  • Da impressionante lenda da Fonte das Mentiras, (impressionante porque sempre que por lá passava em criança, sentia um arrepio na espinhaço, não fosse aparecer algum guerreiro mouro com corninhos de diabo e adaga em punho);
  • Da Lenda da Conquista do Castelo e nunca me esquecendo da criança a perguntar: “Avó, as moitas andam?”. Essa lenda que tanto alimentou a nossa imaginação, sendo tema para as nossas pelejas no próprio castelo, conquistando com espadas de pau e setas de chapéu-de-chuva o tecto da cisterna, transformada em fortificação.

Mas a batata-doce?! Nunca a ligámos às nossas conquistas!
Recentemente, a batata-doce tem sido associada à conquista do Castelo sob a forma de uma “Poção Mágica” (gaulesa!?) que Dom Paio distribuía como reforço da janta e que, em dialecto local, seria o equivalente ao prato de feijão com batata-doce, comida forte, para quando a força e o vigor se tornam necessários, e que durante tantos anos constituíram a base da alimentação destes marujos serranos, esta sim, uma verdadeira tradição gastronómica.

DESAFIO a quem sabe destas coisas:
  • Conte lá como é que é?
  • Como é que este tubérculo entra na história ainda antes da descoberta das Américas, donde supostamente é originária?

    domingo, outubro 10, 2010

    Aljezur, Terra Mimosa



    Muito falavam os antigos deste livro que glorificava a sua terra, coisa pouco vista, fosse na imprensa escrita ou, mais difícil ainda, na rádio telefonia, e sem quaisquer referências nos ficheiros das Bertrands, Portugais ou Sás da Costa, as mais conhecidas da grande cidade.
    Por mero acaso, há uns dez ou quinze anos, na cavaqueira com a Zulmirinha (quem a conheceu seguramente lhe reconheceria um grande orgulho na sua terra e um profundo conhecimento da história da vila, sobretudo da contemporânea), vem à baila o livrinho.
    A tia Zulmira levantou e, após uma curta espera, regressou trazendo nas mãos um velho exemplar desta obra. Com um sorrizinho orgulhoso colocou o livro sobre a mesa, à minha frente, sublinhando o seu gesto com um “Querias vê-lo, aqui o tens!”
    Folheei-o apaixonadamente e com todo o cuidado, pois estava a desfazer-se, enquanto a tia Zulmira recitava, de cor, um dos hinos de louvor


             “Aos Homens da minha terra”

    “Aljezur, de fidalgas e nobres tradições,
    Tem tido filhos dilectos bem ilustrados
    Como os Sintras, os Marreiros, os Furtados,
    Os Mendonças, os Correias e os Serrões.

    E os Duartes, também nas suas funções.
    Teem desempenhado bem os seus mandados
    Pois todos se guiam p’los seus antepassados,
    Homens impolutos de firmes convicções.

    Os tempos são outros, outro é o caminho
    Aos homens de Aljezur, porque o destino
    Também vai caminhando p’ras realidades.

    Lembrai-vos conterrâneos que chegou a hora
    De vermos ressurgir uma nova aurora,
    Ao nosso torrão natal, com prosperidades!”

    clamando com o ênfase que a chave-d’ouro impunha, e soltando uma lagriminha de nostalgia pelos tempos em que ela o fizera nas récitas da sua juventude.

    Pois do livrinho se fizeram as cópias que agora permitem recordá-lo, já que destas publicações tão antigas (1938) e em número reduzido, não nos “garante” a Pitonisa reedições.



    Com a devida vénia ao seu autor, Manuel Garcia, serão publicados n‘O Barlaventino alguns excertos d’ [este livrinho, de propaganda de Aljezur], como ele próprio o classificou.



    segunda-feira, junho 28, 2010

    A Lenda da Moura de Mariares

    1.
    Maira sobe a falésia da Carriagem. As saias não são mais do que uns trapos, molhados, presos entre as pernas nuas, para facilitar a escalada. Nus também os seus pés, e como se de outras mãos se tratassem, galga um após outro aquela espécie de degraus escavados na rocha negra e xistosa. Com mais um trapo improvisara uma sacola que enchera de mexilhões e lapas e transportava-a às costas, as pontas traçadas entre os seios. Era o precioso almoço para ela e para Nagib, o irmão mais novo ainda à sua guarda.



    Nagib esperava-a deitado no chão, cabeça pendurada, gritando e agitando os braços para a apressar a subir.
    - Sobe Maira, sobe depressa! – mas o rugido do mar não deixava que o som chegasse a Maira.
    Diferente era o que parecia a Nagib. Adivinhava-lhe a respiração ofegante, e com um pouco de esforço até era capaz de a ouvir, mas ela nem lhe respondia. Há muito que Nagib suspeitava que o som não desce a falésia, apenas a sobe. Sempre que iam ao mar, ele nunca conseguia comunicar com ela; fazia a experiência e ela nunca lhe respondia... O som não desce. Sai da boca e é como um bafo quente em tempo frio. Não desce.
    Mas ainda assim, insistia no seu “Sobe Maira, sobe depressa!”
    Finalmente Maira assomava ao nível de Nagib e este fez-lhe sinal para parar antes que se erguesse no topo da falésia, tão facilmente visível!
    - Pára! Ouves mana? Estás a ouvir-me, ou não? Vão por além uns cavaleiros. Vinham dos lados do sul. Eram muitos, mais de duas mãos.
    Gatinhou para junto duma camarinheira e puxou a irmã para que se deslocasse abaixada.
    -Acalma-te lá Nagib. Allah Akbar!
    - Mas eram muitos, mana, e traziam aquela cruz nos escudos. São os mesmos que estiveram lá na casa.
    Instintivamente apoiou-se nos cotovelos e levantou a cabeça. Já se haviam afastado e não avistava ninguém. Mas Maira sabia muito bem o que eles queriam, os espatários de Dom Paio, que já nos dias anteriores a vinham buscando. Escoltavam o seu comandante que dela se enfeitiçara, e a enfeitiçara a ela também. Esse oficial, garboso cavaleiro de fino trato, barbas curtas e lindos olhos negros, que sempre que com os castanhos dela se cruzavam, lhe provocavam aquela agradável e nunca antes experimentada sensação de tremura e doce bem-estar. Esse comandante já não lhe saía do pensamento e era ele o responsável pelas noites de vigília que, desde que estivera nos seus braços, só lhe permitiam adormecer pela madrugada .
    - Sossega Nagib, não há razão para arreceios. Alá é grande. - ergueu-se, soltou as saias e alinhou o resto dos trapos. - Vem, eles não nos farão mal.
    E tomaram o caminho do Monte dos Ares, cantarolando descontraídos.




    2.
    Quando se aproximaram do monte perceberam que a picota estava a ser usada. Os cavaleiros tiravam água do poço para saciarem os cavalos.
    - Eis-te finalmente! - era o oficial. Quero falar-te. Pode ser aí dentro?
    Entraram e fecharam os panejamentos, mantendo-se a casa numa ténue claridade. Logo ali ele a agarrou e lhe beijou os lábios. Maira, sem qualquer resistência, como habitualmente, abandonou-se ao galante cavaleiro. Ele era o senhor do seu coração. Não havia como se lhe opor, nem isso desejava Maira. Duas semanas se passaram desde que se conheceram e logo nesse primeiro encontro ela se lhe entregara. Mal se cruzavam os seus olhares e o cristão e a moura esqueciam o mundo à sua volta.
    - Quero que fiquemos juntos, - lhe disse o cavaleiro, mas o Mestre, Dom Paio, quer-me sempre a seu lado. Vem tu comigo, acompanharás a deslocação das tropas.
    - Não. Tenho o meu irmão. Eu fico na minha casa; aqui esperarei por vossa mercê. Virá o meu senhor quando quiser.
    O oficial reforçou o pedido com um novo beijo. Alegou a necessidade do exército se movimentar, o que não poderia acontecer enquanto não conquistassem a fortaleza da povoação. Os mouros eram guerreiros destemidos e nem sequer permitiam a aproximação das muralhas. As duas tentativas que fizeram haviam sido rechaçadas, com várias baixas nos de Sant’Iago.
    Maira regozijou-se com estas lamentações. Por Alá! Os seus eram valentes. Não conheciam a palavra rendição e iriam resistir até ao último homem. Estes cavaleiros bem podiam desistir, poupar as suas vidas e desaparecerem desta parte do Gharb.
    - O senhor Dom Paio tem pressa com esta missão. A Ordem quer a praça antes do dia do maior Sol. Isto dá-nos pouco tempo para estarmos juntos. Vem comigo e nada te faltará.
    Maira oscilava entre dois desejos. Nunca tinha estado tão perto dum homem e isso descontrolava-a. E logo aquele cavaleiro de mãos de seda e maneiras de príncipe… Mas era um infiel. Alá e esse Deus que ele venerava eram inimigos... Mas o seu coração apressado não a deixava pesar as diferenças. Efectivamente Alá não estava a ajudá-la. Ela queria servir o seu Deus, no céu, e o seu senhor, na terra.
    - Pensa melhor… - disse o cavaleiro de Sant’Iago. – Tornarei amanhã. Se me esperares, então irás comigo e passarás a viver na minha tenda.
    Colocou o elmo e saiu com grandes passadas. Tomou as rédeas das mãos do estribeiro e galopou numa nuvem de poeira, descendo para o vale. Seguido pelos seus, depressa desapareceram, embrenhando-se na floresta.

    3.
    Maira estendeu a sua esteira à porta da casa de taipa e aí passou a noite, perscrutando as estrelas e a lua. Amanhã esperaria o seu senhor. Que grandes mangas teria o gibão de Mohammad para nelas guardar a metade da lua! Nagib iria para casa do tio Youssuf. Logo que o seu cavaleiro chegar, (de manhã?), iria com ele sem hesitar. A claridade da noite revelava os contornos da serra, na direcção de Meca. A serra que Nagib cria ter ido ao encontro de Mohammad! Nagib era ainda uma criança, mas já estava recenseado para as tropas do emir ibn Mahfuz. A sorte dele poderia mudar se o seu gentil cavaleiro o protegesse. O seu coração já escolhera e esse, ela não o contrariava, nem tão pouco o controlava. Com ou sem o seu irmão, iria para o acampamento dos espatários.
    Ao raiar da manhã, ainda madrugada, Maira banhara-se com água do poço e perfumara-se com as essências que guardava na caixa de madeira que a sua avó lhe oferecera. Preparou uma pequena trouxa de roupa e sentou-se no tronco, à entrada da cabana. Aí assistiu ao nascer do dia, os olhos fixos no bosque, para o lado do mar…

    4.
    Dom Paio conhecia bem os amores do seu capitão Gonçalo de Ega com a moura Maira e, naquelas vésperas de S. João, foi visitar a sua tenda. Maira, que penteava os seus longos cabelos, levantou-se dum salto e, de olhos no chão, ficou imóvel perante o grande guerreiro.
    - Eu sei quem tu és. És a Maira. Eras a Maira, aqui terás um nome cristão, serás Maria. Sabes quem eu sou?
    Maira limitou-se a um ligeiro aceno afirmativo.
    - Muito bem. Gostas do meu capitão? E de que tamanho é esse amor? O que és capaz de fazer por ele? Sabes o que lhe pode acontecer se não tomarmos esta praça? Vamos travar uma dura batalha e dela só os vencedores sairão vivos, todos os outros serão mortos. Nós, os cavaleiros da cruz, ou os da tua crença. A tua sorte não vai ser muito diferente. Os teus não te vão perdoar teres-te juntado às minhas forças. Com as coisas que tu sabes, podes ajudar o exército de El-Rei e, ao mesmo tempo, ajudares o teu amado. Se a conquista tiver lugar dentro de pouco tempo, nomeio D. Gonçalo meu representante e aqui ficará com uma guarnição. Tu podes ficar com ele… Pensa como nos poderás ajudar. Qual é a tua escolha?
    - Senhor Dom Paio, às ordens de vossa mercê. Era Gonçalo que chegava, armado e coberto de pó. – Fizemos mais uma batida… a fortaleza continua bem defendida... são inúmeros os mouros lá dentro.
    - El-Rei e a Ordem querem esta fortaleza! Só sairemos daqui vivos se a conquistarmos, senão… - e saiu Dom Paio nas suas largas passadas, mão crispada na cruz da sua enorme espada.
    Mais tarde, enquanto dava banho ao seu amante.
    - Amanhã, - murmurou Maira, amanhã todos vão ao mar. É o dia maior do ano e todos os homens se vão purificar nas águas da Amoreira, antes do sol nascer. É um velho costume. Só os velhos e as crianças vão ficar na fortaleza.
    Saiu Dom Gonçalo de Ega a contar a novidade a Dom Paio e logo se reuniram todos os oficiais na tenda do comandante. Traçados foram os planos. Com a intenção de dar confiança aos infiéis para à vontade continuarem a prática dos banhos anuais no maior dia solar, levantariam já o acampamento simulando a partida e ficariam escondidos na floresta ao norte da povoação. Na madrugada seguinte se concretizaria o assalto.



    5.
    Mal raiava o dia de S. João, solstício de verão dum gracioso ano da década dos quarenta em tempos do rei Capelo, as tropas de Dom Paio esperaram a saída dos mouros para as praias. Escondidos atrás de moitas que tinham arrancado para se camuflarem, fizeram a sua aproximação sem que a fraca claridade matutina denunciasse o seu movimento.
    Um par de velhos mouros que fazia a vigilância naquela madrugada, conversavam para combater o sono. No colo da mulher uma criança, ensonada, com o olhar perdido pela encosta, esfregava os olhos e, inocentemente, perguntava à avó:
    - Avó, as moitas andam?
    - É o vento. Vá, dorme que ainda é noite. – murmurou a avó Sarifa, enquanto aconchegava a criança com o xaile.
    - Mas estão a andar. Eu vejo-as a mexer. Olha ali aquelas! E apontava uma meia dúzia que estavam mais próximo.
    Já a velha não foi a tempo de vê-las, uma seta certeira a atingiu no peito. Sarifa caiu, com um ai suspirado, arrastando o neto. Ainda o seu companheiro, Azize, gritou antes de tombar. Mas de pouco serviu o alarme, desguarnecida que estava a fortificação. Sem resistência, as tropas de Dom Paio tomaram a fortaleza.
    Foram os mouros intencionalmente informados do acontecido e levados a uma aproximação pelo sul da fortaleza, local onde as tropas portuguesas se haviam emboscado. Ali os aniquilaram.
    Não lhes poupou as vidas Dom Paio, nem os corpos. A todos mandou decapitar, provocando um rio de sangue que corria pela encosta abaixo. Enterrados ficaram os corpos a sul da fortaleza, e foram as cabeças levadas para serem enterradas ao norte da povoação.
    Os duas colinas ainda hoje são conhecidas por nomes lembram essa chacina. Ao sul, Degoladouro, e ao norte, Cabeças.

    6.
    Não conta a História mas reza a lenda que Dom Paio constituiu uma guarnição para a fortaleza de Aljezur e deu o comando a Dom Gonçalo, e que este, no final da sua vida, mandou construir uma nova casa no Monte dos Ares, para onde foi viver os últimos dias na companhia de uma moura, Maria, que o servia.
    Nas noites de luar sentavam-se num tronco, no varandim, olhando a serra na direcção de Meca. Às vezes Maira perguntava-lhe porque é que Mohammad metia a lua na manga do gibão, e ele sorria, sem responder...

    A Descoberta da Lenda de Mariares

    Num velho baú da arrecadação da Casa Grande, dando voltas a coisas antigas, passou-me pelas mãos uma bolsinha de pano-cru que continha um manuscrito amarelado e ressequido, dobrado e redobrado.
    Quase a desfazer-se ainda permitiu perceber a caligrafia antiga, certa, em linhas traçadas à régua, como era costume naquele tempo. Podiam ler-se quase todas as palavras. O nome de Francisco Inácio escrito numa das margens do papel, parecia querer identificar o autor do texto, ou o copista, assim como a data de 24 de Junho de 1844.

    Já não era o primeiro texto de Francisco Inácio que eu encontrava naquelas velharias, pelo que já me tinha familiarizado com a sua caligrafia e também com a forma como ele exprimia a sua visão da História, temperando-a em prosas a seu jeito. Tratava-se um antigo oficial da Marinha de Guerra que se recolhera a Aljezur depois de aposentado. Homem de cultura, foi muito admirado na sua época pelos serões que promovia na sua Casa Grande, e também por ter ensinado a ler e escrever toda a sua criadagem.
    Desta vez, o texto reproduzia a Lenda da Conquista de Aljezur aos mouros, também conhecida pela Lenda da Moura de Mariares, que adaptei (nas partes de mais difícil percepção) e passo a transcrever, para que conste...

    domingo, maio 02, 2010

    Cronicando: Sete anos de pastor... na Margem Esquerda

    - Olhe lá, primo, já o mê Ibrahîm me escreveu outra vez. Disse-me o Emanuel carteiro que vem do Alentejo. Veja-me lá o que ele diz, se precisará dalguma coisa? Dá-me cá uma tremedeira, só de segurar a carta. Veja lá, primo, veja lá.
    E abrindo-a ali, à minha frente, estendeu-me as três ou quatro folhas da carta, com aquela caligrafia certinha e bem arrumada que era o cartão de apresentação do Ibrahîm.
    Pigarreei para limpar a voz, e comecei...

    Tia Fatima,
    Vieram-me à memória aqueles longos serões, no frio do inverno, à luz do candeeiro a petróleo, em que no seu colo aprendi as histórias fantásticas que povoaram os sonhos da minha infância e… ainda os de hoje.
    Enquanto a vizinha Luzia trauteava uma espécie de fado que aprendia num daqueles papéis que o cauteleiro lhe trazia, a tia sussurrava-me ao ouvido a maravilhosa história de Jacob e de Raquel, até eu adormecer. Enchia o meu sonho com esses personagens que levavam as ovelhas a beber a um poço tapado com uma pedra. E eu ficava assim, meio adormecido, a imaginar o que seria um poço com uma pedra em cima… não sei quanto tempo, até a vizinha Luzia elevar a voz para mais uma tirada de “Eszé e Maria, inda mal se via, gordando sê gado…”
    Conheci melhor o Jacob e a Raquel quando a lírica do Luís Vaz me entrou pelo quinto ano adentro. Tive de decorar o soneto e ainda hoje sou capaz de o dizer:



    “Sete anos de pastor Jacob servia
    Labão, pai de Raquel, serrana bela;
    Mas não servia ao pai, servia a ela,
    E a ela só por prémio pretendia.”

    E continua, continua, por mais uns tantos versos…

    Nessa altura a curiosidade levou-me de Camões até ao Livro dos Livros, Génesis, onde a história é contada com mais pormenor, aliás, com todos os pormenores e personagens, percebendo-se melhor as relações, o parentesco, os bons e os maus.
    Como saber se a vida real reflecte a Bíblia, ou se as histórias que a Bíblia conta são verdadeiros excertos da vida real? Os especialistas conseguem explicar as metáforas do Grande Livro e encontrar, para os diversos acontecimentos reais, independentemente da época, uma história semelhante vivida pelo povo de Deus.
    Quando o Alexandre, médico e meu companheiro da hospedaria, me contou há umas semanas o caso do Chico das Cortes e da sua Luciana, nem imaginei que aqui, nesta terra do fim do mundo, uma história destas se viria a revelar caber direitinha no Grande Livro: o Jacob, o Labão e a Raquel, na região semi-desértica da Margem Esquerda… com os seus poços e as suas ovelhas.
    Recordo cada uma das palavras do relato do Alexandre:
    “No outro domingo conheci o Chico das Cortes no Centro Republicano. Entrei no estabelecimento atabernado e escuro e pedi uma mini. O Chico estava à ponta do balcão. Olhava a sua garrafa vazia e ofereci-lhe “- Vai mais uma?”. Ele sacudia a cabeça, num gesto de inconformismo mais do que de recusa, e a um sinal meu o Sô Zé pôs-lhe uma nova cerveja na frente. O Chico levantou-a olhando na minha direcção, e tomou um longo golo. Arrotou um gracias e acabou com a bebida. Continuou com o olhar fixo na garrafa, abanando a cabeça numa constante negação, reprimindo-se a ele próprio ou inconformando-se com o seu fado. Cuspia um palavrão de quando em quando para cortar o silêncio do seu desespero.
    - É moiral lá prá serra, doutor, na herdade das Cortes Altas do menino Joanito Rendas, - era o Sô Zé aproveitando a hora morta para carregar o frigorífico com cervejas para a tarde quente que aí vinha, - Ora aí tá um bom moço, com o coração despedaçado…”
    A dor do amor…- lembrei-me das palavras do Alexandre. Numa terra destas, com tão poucas pessoas, era impossível manter em segredo uma história de amor. Desde a barbearia ao Centro Republicano, desde o paredão da Tapada à porta da Igreja, o esgravatar permanente de novos temas para a conversa descobria qualquer segredo. Bastavam alguns sinais, que os muitos especialistas a quem nada escapava, logo reconheciam e relacionavam e, ali mesmo, se tecia a história de cada um.
    - São as línguas tecedêras… costuma comentar o senhor Cipriano, enfermeiro reformado e nosso parceiro da sueca, descansando as mãos entrelaçadas sobre a barrigada de sopas do costume. Sabe o qu’é, amigo doutor? Na têm nada que fazeri! É uma entretenga passajar na vida alheia.
    Mas voltando ao Alexandre, a querer animar o moço:
    “- Ah! A dor do amor chega a toda a gente! Deita-se um gajo a afogar numas cervejitas, e pronto, é deixá-las fazer o trabalho delas! Um tipo esquece e adormece…”
    Mas como o Chico não mostrava qualquer reacção à conversa ligeira, o Alexandre tomou um ar mais sério, e ofereceu ajuda.
    “- Passe lá no consultório para agente conversar um bocadinho, amanhã de manhã. Pode ser que se arranje uma solução… fico à sua espera.
    Foi o silêncio depois do Alexandre se calar, até que:
    - Ele na ouvi! – era a voz do velho João Inácio que vinha da penumbra da casa. Ninguém tinha dado por ele, no seu canto escuro. - Tá cego e surdo! Hádes aprender à tua custa!
    - Teja calado, Ti João, sabe lá da minha vida! – Rosnou o Chico, sem se virar.
    -Atã na sê! Veja lá o senhor doutor, se na sê: foi lá pró monte das Cortes Altas servir há uns sete anos. Sete anos a comer a poêra das ovelhas, só pra tar ó pé dela… à espera que ela crescesse. E ela também se enrabichou. Mas o mal é que o patrão a quer pró sê sobrinho, e o pai dela, o Manel, interessa-lhe é juntar os rebanhos. É tudo ganância! Prometeu a Luciana ao Chico e agora vai dá-la ao outro. E quer que este se junte com a mais velha!
    O Chico agitava-se - Ó Ti João, já chega!
    Ai já?! – Continuava o Ti João. E tu vais ficar com a irmã dela? É o que o Manel quer, é dar-te a outra filha. E tu? Se calhar pensas é que vais ficar com as duas! Parvalhão! Tás à espera do quê pra fugires com a moça? Na te disse já que tens a minha casa?!
    É assim, não? – Questionava o Chico, já com outra cerveja. Vou prá sua casa e o Ti João dá-me as sopas, a mim, a ela e ao borracho que vem aí! E mais a espingarda pra me defender do Manel? E o sobrinho do patrão, que é só o sargento da guarda, inda vem por aí fora com a cavalaria!
    Calou-se o Chico e o Ti João deu duas assopradelas, inchando as bochechas. Fez-se silêncio. Havias de ter assistido, Ibrahîm. Até o Sô Zé suspendeu a arrumação das cervejas para não quebrar o sossego.”
    *
    O Chico não apareceu no consultório e nem o Alexandre voltou a ouvir notícia dele, até hoje.
    Estávamos nós os dois no Centro Republicano, bebericando umas minis, quando o Sô Zé nos vem puxar para o canto do balcão e, num sussurro, – Dr. Alexandre, lembra-se do Chico das Cortes?
    O Alexandre acenou, cúmplice.
    - Pois o Chico teve de se juntar com a Florinda, a mais velha! – E ficou à espera da reacção do Alexandre.
    Reacção que não se fez esperar – Coitado do moço… O seu grande amor não era a outra, a Luciana? Foi a ganância do pai delas, como se dizia, não foi?
    -Era a ganância do Manel! Era! – Excitava-se o Sô Zé. - Mas a coisa deu pró torto, sabe? O Chico, - e chegou-se mais à cara do Alexandre, - diz-se por aí, que eu não sou de intrigas, o Chico nunca confirmou a coisa… quer dizer, nunca se deitou com ela, e ela… não teve para aturar isso e fugiu para Paymogo com um fandanguista qualquer! Eh! Eh!
    - E o Chico, coitado?! – Indaguei.
    O Sô Zé exibiu o ar mais matreirão e rematou – Coitado?! Qual coitado, nem meio coitado! O Chico ficou com a Luciana. O sargento não lhe pegou ao saber que estava de barriga, e o Manel não teve outro remédio senão estender a sociedade ao Chico… pelo menos por outros sete anos.

    ...

    Assim fez Jacob;
    e, terminada a semana de núpcias de Lia,
    Labão deu-lhe Raquel, sua filha, por mulher.
    Génesis, 29-28

    ...

    - Oh Sô Zé! – O Alexandre elevou a voz, - Traga lá mais uma rodada e junte-se aqui à gente. Afinal não há só histórias tristes, como as que aqui o meu amigo Ibrahîm costuma contar.
    E voltando-se para mim – Vá, manda lá esta para a tua tia, para ela não pensar que aqui só há desgraças!



    E assim é, tia, aqui lhe mando para o barlavento algarvio mais uma história do “sotavento alentejano”, verdadeira e bíblica(!), que dará um belo conto para os serões de inverno, fazendo malha ou britando azeitonas, como era antigamente, ou usando as modernices de agora… num computador qualquer à roda do aquecedor eléctrico.

    Beijinhos do seu sobrinho, e mais um abraço para o primo.
    Ibrahîm

    quarta-feira, abril 14, 2010

    Tradicionalizando: Ainda a Páscoa


    Quem se lembra de ir partir o folar ao campo? Na segunda-feira a seguir à Páscoa, quase sempre naquele lugar designado por “Ao Caminho da Praia”; não por falta de outros sítios (imagine-se!) mas simplesmente porque sim, ou porque tinha bom piso para as senhoras e era mais fácil controlar a pequenada.
    Os homens, natural e tradicionalmente, mantinham-se alheios a esta actividade meio santa meio profana, preferindo a semeadura de prosa pelas vendas.
    Éramos uns quantos putos, mesmo putos, de oito ou nove anitos. Moçada da mesma idade, tínhamos o nosso grupo. Fazíamos a guerra dos assaltos ao castelo, ou do “camoniesse” e do “manzuar”, verdadeiros Cisco Kids de pistolas de pau.
    Meninas à parte, que o faroeste era só para homens, e o nosso jogo não tinha “saloon”.

    A Coca Cola era proibida e os pacotinhos de sumo ainda não tinham sido inventados. Quanto muito uns pirolitos, para os mais abonados, ou umas limonadas (caseiras) para os mais finos. Nós, os menos, desembaçávamos com aguinha da ribeira, ainda bebível, colhida nas mãos em concha na corrente acima das pedras de lavar roupa.

    Se não chovesse, era uma tarde daquelas. Regressávamos esgotados e sujos, transbordando de alegria, comentando as cenas dos filmes que criáramos, em que “o rapaz” chegava sempre na hora de libertar os outros “cobois” e prender os bandoleiros.



    Éramos os maiores do nosso tempo e representávamos à vez o Audie Murphy, o Alan Ladd ou o John Wayne. “Camoniesse”!

    sábado, abril 03, 2010

    Tradicionalizando: Contratos da Páscoa

    “Contrato, contrato, contrato fazemos” e enganchávamos os dedos mindinhos da mão direita, sacudindo os respectivos braços num sobe e desce ao ritmo da ladainha, e continuávamos “Sábado de Aleluia desmancharemos e Domingo de Páscoa nos pagaremos!”, se não me falha a memória, logo depois dos toques das matracas, numa excitante esconde e busca. Era assim na Semana Santa, uma tradição que cumpríamos desde pequeninos, começando com os adultos da casa ou da vizinhança, passando à fase dos colegas da escola e por fim, praticando (reminiscências) com as namoradinhas ou com aquelas que gostaríamos que viessem a ser.
    Li num destes dias que em algumas localidades o prémio era um saco de amêndoas. Admirei-me, pois saco de amêndoas era uma coisa que, se aparecesse lá por casa, era único e maternalmente administrado para chegar para toda a família. Os nossos eram apenas confeitos, uns pequenitos que tinham um pinhão dentro. Com o seu justo ou exagerado aumento de valor, tem vindo a ser substituído por um grãozinho de alcagoita.
    As procissões, com o respectivo sermão no Largo da Câmara (antiga), levavam ao êxtase a população religiosa da vila. Eram sobretudo mulheres, e alguns dos homens parecia estarem presentes apenas por dever ou imposição, funcionários ou “forças vivas”, vestiam as opas e transportavam os andores, exibindo as suas melhores fatiotas.
    Mas apesar de não participarem nas celebrações religiosas, os homens não deixavam de afunilar as pernas em cotim novo, e as botas, com fileiras de cardas novas, a bater a cadência nas calçadas.
    Há memórias neste texto que só vim a compreender uns anos depois dos “contratos”, quando a minha mãe, mais uma vez não resistindo às minhas insistências, teve de me costurar umas calças novas de cotim militar, com bolsos cortados e tudo, para eu estrear na feira do Rogil, ou melhor dizendo, no baile da feira do Rogil, para onde me desloquei... a pé, claro!
    Tinha aquela fé no profano, pois a feira do Rogil nem sequer é na Páscoa!

    sexta-feira, março 05, 2010

    Cronicando - “Morte em Sant’Ana”

    - Prima Fatima, venha, venha! Passou por cá o Emanuel e deixou-lhe mais esta. É do Ibrahîm. Vamos lê-la?

    -Oh! Primo Xico, inda bem, que já me tardavam as notícias desse sobrinho que anda lá por tão longe. Leia, leia!

    Eu próprio estava a apaixonar-me pelos casos do Ibrahîm, sempre duma imaginação que até pareciam inventados... ou seriam mesmo? Abri o sobrescrito com cuidado, e também curioso, comecei, com o habitual


    Querida Tia,

    Passaram já alguns meses desde a minha última carta, mas como o amigo Emanuel lhe tem levado notícias minhas, espero que não tenha ficado muito preocupada.
    Hoje gostava de partilhar consigo um achado, desencantado numa mala de porão que há muito não era aberta, em casa dos avós do meu amigo Matias. Veio-nos parar à mão uma pequena brochura, já sem capa, com meia dúzia de folhas ainda legíveis e outras tantas tão esburacadas pela traça, que não foi possível perceber o seu conteúdo.
    Trata-se de uma pequena história de cordel, de autor anónimo, mas de cuja veracidade a avó não duvida. Eu e o Matias achamos que essa veracidade se deve mais ao facto de ter sido tantas vezes contada...

    É assim um folhetim, em um episódio e dois títulos, publicado em edição única pela Tipografia da Graça, em Beja, no ano de 1946, e que se vendia na feira de Castro e na do Pereiro, e noutras por todo o Sul.

    “Morte em Sant’Ana”

    ou “O triste fim dos amores de Sebastião e Joanita”

    Há quanto tempo ele andava por cá? Há quantos anos? Mais de 25!
    Conhecia bem o povo e era capaz de reconstituir a imagem de cada uma das ruas, das suas embocaduras e desembocaduras, da praça, nem redonda nem comprida, mas um pouco de cada. Torta. Desenho sem arquitecto nem plano, sem régua nem esquadria. Geometria secular desenhada pelo tempo. Uma cerca de ontem, uma casa de hoje…
    Sim, Sebastião caminhava mentalmente por essas ruas. Uma escuridão de breu (Porque diabo não acendiam os candeeiros?!) Imaginava-se de passada segura, adivinhando cada pedra sob os seus pés: pedras que pareciam casadas, lajedo, gastas pelas botifarras cardadas dos cívicos ou pelas ferraduras dos seus cavalos, que alpargatas não alisam pedra, nem o fazem os burros desferrados.
    Revê a casa da Joanita, mais de meio metro recuada, criando um canto para o monturo, e outro onde a avó ficava horas esquecidas ao sol, na sua cadeirinha de buinho. Desvia-se do carro de mula do Gregório, invariavelmente repousando perto do palheiro, junto da sua tirante, a Boneca.
    Revê tudo isso. A última casa da rua, com as barras desalinhadas e de azuis diferentes, uma mais escura que a outra, resultante da deficiente mistura das anilinas, e do olho daltónico do dono, que só lhe deixa perceber a natureza em tons de cinzento.
    Porque lhe viriam à cabeça essas imagens coloridas, nesta medonha noite de lobos?
    Num turbilhão. Saltando de rua em rua a uma velocidade impossível, estonteante. Que vertigem! Sente-se tonto, enjoado, como se viajasse de pé na lancha do Zé Pinto. Agora devagar... mais devagar… ainda mais devagar… até… parar.
    Reconhecia, com toda a precisão, a pedra branca onde a sua cabeça descansava, sentindo-lhe o pequeno relevo na extremidade que encostava à outra pedra, mais amarelada Não, não era a pedra amarela, nem a branca. Era o colo da Joanita, da sua Joanita.
    Sebastião já pensara nela hoje? Já revira a sua imagem? Já lhe beijara os lábios hoje, à chegada… à despedida…
    — Por onde andam as tuas mãos? Joanita, que falta me fazes aqui… Segura a minha cabeça no teu colo. Sou eu, o teu Sebastião, não vês? Passa-me os dedos pelos cabelos, como gostavas… Joanita! Joanita! Joanita!
    Não ouvia os seus gritos, Sebastião. Nem a sua boca se abria. A sua respiração era um sopro ruidoso, um ronco.
    Sentia-se confuso.
    Mas já há mais de vinte e cinco anos. Eso es. Há mais de vinte e cinco anos que o tinham levado para a Finca de las Cruces, para as vacas de Don Pablo. El ganado de Don Pablo. Sim, no lado de lá do Chança.
    Acabara de o atravessar a vau, a carga à cabeça para não molhar o tabaco para o primo e a paletita de jamón serrano para unas copas.
    “Joanita!!! Oh! como me arde o peito…”
    Sebastião não percebia que a sua voz não ia além da sua mente. Os seus gritos não os ouvia Joanita… nem nenhuma outra pessoa naquele povo fantasma. Nem os lobos.
    Ou só os lobos ouviriam, misteriosos cúmplices da desgraça, distantes, uivando solitários.



    Um mastim farejava o bornal ao lado do corpo, com a alça ainda presa no pescoço de Sebastião. Rosnava. A trela esticada pelas mãos firmes do guarda Ferreira. O outro, o Marreiro, segurava ainda a caçadeira numa posição agressiva, arfando excitado, operacional.
    Foram dois cartuchos, dois tiros. Ecoaram na noite e na noite ficaram. A aldeia continuou no seu sono, impassível, habituada que estava a barulhos nocturnos. Mais um tiro, ou menos um tiro, não constituía novidade.
    Iam para uma noitada de veados e saíra-lhes o figurão pelo caminho. O dever é o dever, e uma autoridade é sempre uma autoridade, quer dizer, está sempre de serviço. E logo o contrabandista mor! O seu andar não deixava margem para dúvidas, a sua silhueta agigantava o Quadrilheiro. Perto da Rua Corrente que franqueava a entrada do povo a quem vinha dos lados de Espanha, àquela hora da madrugada, só poderia vir de um carrego. Os dois bornais pendendo nas ancas e o malote às costas. Um tiro certeiro e estava mais do que garantida a promoção. Ainda por cima durante as horas de descanso, dava direito a um louvor. E o jeito que faria, para limpar da folha o dia de prisão que a puta da sobrinha do sargento Pereira lhe aprontara, depois de o ter convidado para o meio do milho. A puta provocadora.
    Tinha-lhe atirado com zagalote. Ao segundo tiro o Quadrilheiro emborcara de imediato, a cara no chão, uma poça de sangue.
    “Busca!”, incitava o Ferreira, “Busca, Leão!”
    O Leão rosnava, encostando o nariz ao bornal, esgravatando com a pata.
    Marreiro avançou, virando o bornal com a coronha do fuzil, “É aqui, a carga!”, pensou. E para o companheiro, “Pequena, mas valiosa, hem! Puxa o raio do perro!”
    Abriu o bornal e retirou o embrulho, em papel de cera. Com um tremor nas mãos rasgou rapidamente o papel, revelando uma dúzia de maços de cigarros Ducados.
    Atirou-se sofregamente ao outro bornal e retirou um saco de pano com côdeas e um punhado de azeitonas e um pequeno piporro com um resto de vinho.
    “O malote, Marreiro, o malote”, murmurou-lhe o companheiro.
    Marreiro jogou-lhe os dedos e desatou rapidamente o atilho do malote. Enfiou-lhe as mãos, apalpando, na ânsia enorme de sentir neles a justificação do seu acto. Mas o que sentiu foi a sua promoção a fugir-lhe ao reconhecer, pelo tacto, uma pequena paleta de presunto.
    “Porra! Porra!” gritou o Marreiro, com contenção, continuando em voz mais baixa, “Um contrabandista sem contrabando! Seguramente foi uma manobra de diversão. Quis distrair a guarda enquanto a carga se fez por outras veredas. Era muito esperto este filho da puta! Mas já lerpaste e agora acabou-se. De toda a maneira, era procurado pela gente, não é, Ferreira?”
    Ferreira fez um encolher de ombros, desinteressado das motivações do Marreiro, pigarreou e murmurou um “por acaso…” quase inaudível.
    Marreiro tinha de assumir o controlo dos acontecimentos. Era o mais antigo, e isso dava-lhe autoridade sobre o Ferreira. Podia não ser promovido, mas o Sargento havia de gostar do feito. Até apostava que lhe iria pagar uns copos no Virgílio. Sempre era um bom serviço prestado pela Secção e o Tenente também havia de ficar satisfeito.
    “Vá Ferreira, vai lá buscar a burra e vamos levar o Quadrilheiro para o Posto.”
    Com os seus movimentos um tanto destrambelhados, o Marreiro desviou o chapéu do homem, revelando-lhe uma cabeleira farta.
    “Mas este gajo agora usava chinó!” Exclamou surpreendido. Toda a gente estava farta de saber que o Quadrilheiro era careca.
    Olhou com mais atenção. “Oh Ferreira! Eh pá, oh Ferreira, olha-me lá este gajo, pá!”
    “Mas o qu’é isto?! O que é que este homem andava a fazer por aqui a uma hora destas, pá?”



    Algumas horas depois, ao raiar do sol, o Ti Gregório passava por ali com o seu carrinho e a sua Boneca, a caminho das hortas. Gostava de regar pela fresca da manhã.
    A Boneca hesitou, mas com um toque da varinha avançou, embora se desviasse para não pisar o bornal.
    O Ti Gregório desceu do carro em andamento e apanhou-o. Estava praticamente novo, apesar duma mancha escura, sem importância. Dava-lhe jeito. Quem o teria perdido? Apressou o passo e saltou para a traseira do carro.
    “Sim senhor! Uma sacola em bom estado! Já dizia o meu avô que quem quer achar tem de sair cedo!”
    E enfiando a alça, pôs o bornal a tiracolo.

    *

    Até aqui foi tudo o que pudemos ler, Tia. A avó do Matias já não se conseguiu lembrar do final da história, e só repetia, “Bendito e louvado, está este conto acabado. Bendito e louvado, está este conto acabado.”

    Ah! É verdade, esta casa da avó do Matias é precisamente em Sant’Ana, a de Cambas é claro, terra de onde também toda a família é natural.

    Receba um grande abraço deste seu sobrinho,

    Ibrahîm

    P.S.: Vou ficar por estas terras mais uns meses, e se o Ministério não se lembrar mais de mim, ficarei para sempre, levantando-me cedo para achar qualquer coisa…

    Portanto (e isto é um anúncio)!

    Portanto, hoje é um dia especial.

    Corrijo: não, hoje não é nenhum dia especial, portanto, ponto.

    É, portanto, um dia perfeitamente normal.

    Portanto, é um bom dia para publicar a "Primeira Carta do primo Ibrahîm para a sua tia (a prima) Fatima".

    É portanto e também, um bom dia para prometer, pelo que, para não cair em situações de promessas não cumpridas, PROMETO que estas cartas serão publicadas... com a periodicidade que o primo Ibrahîm as enviar.

    A carta chegará hoje, portanto (porque eu já sei), na camioneta do correio que chega da Estação das Amoreiras, aí "por las cinco de la tarde".

    E portanto, tenho dito, isto é, anunciei!