segunda-feira, dezembro 23, 2013

O Nosso Castelo na Bandeira Nacional


Desde sempre, nos círculos familiares, havia alguém que conhecia coisas e coisas e nos fascinava com tantas histórias, nos intermináveis serões das noites de inverno. Na minha família era a Tia. A Tia sabia de tudo, opinava sobre todos os temas que vinham à baila, fazia recomendações, sempre para levar a sério, e contava-nos histórias, muitas delas passavam para as noites seguintes, longas e complicadas que eram. Uma das vertentes que era frequentemente abordada era a da valentia dos portugueses, e particularmente dos aljezurenses, nas lutas travadas contra os Mouros e a integração do Reino dos Algarves nas posses de Sancho II e Afonso III e, consequentemente, no cognome deste. E aqui vinha sempre a explicação da Bandeira Nacional, enaltecendo que o Castelo de Aljezur era um dos sete que figuram naquele pendão, o que para nós nos enchia de orgulho patriótico e regional.
Esta minha Tia juntamente com tantas outras Tias contadoras de histórias a gerações de aljezurenses, foram assim responsáveis por termos crescido com este mito, alimentando-o e veiculando-o orgulhosamente aos nossos descendentes e divulgando-o junto da nossa rede de relações.

Uma obra literária muito interessante que já neste blogue divulgámos, “Aljezur, Terra Mimosa” de Manuel Garcia (1938) e que constitui motivo de orgulho para muitos aljezurenses (apesar da Senhora D. Câmara o continuar a ignorar esquecendo-se uma reedição) refere também esta situação (vide http://barlaventino.blogspot.pt/2011/04/o-brasao-de-aljezur.html).

Também em nosso modesto entender não passa de mais um mito, possivelmente motivado por um desejo de reivindicar importância para a nossa terra (e para as outras seis), cuja justificação histórica ainda jaz adormecida nalguma recôndita prateleira da Torre do Tombo.

Conta-se então que os sete castelos da Bandeira Nacional dizem respeito às últimas conquistas algarvias, e que foram Albufeira, Aljezur, Cacela, Castro Marim, Estômbar, Paderne e Sagres.
Nem sempre foram sete os castelos da Bandeira, tendo mesmo o painel de D. Afonso III 16 castelos em dois desenhos diferentes; como foi feita a sua selecção também não se sabe.

Aqui deixo alguns exemplos das armas nacionais ao longo dos tempos para melhor podermos apreciar essa evolução.

D. Afonso III - 16 castelos
D. Afonso III (diferente disposição, 12 castelos)

D. João I (ainda os 12 castelos)
D. João II (7 castelos)


D. Manuel II (8 castelos)

Bandeira Actual (7 castelos)
O nosso objectivo é apenas o levantar duma questão que subsiste sem resposta: trata-se apenas de um mito, histórico, ou nele está contida alguma verdade para além do simples desejo que assim fosse?

Fica a dúvida sobre o tema e fica também o desafio:

Desmitifica-se ou passa à História?

segunda-feira, dezembro 09, 2013

Estórias Barlaventinas - Doutrina ou Jogar à Bola?


Não percebia, na altura, por que razão havia de ir para a “doutrina” na Igreja da Misericórdia ‑ catequese é uma palavra que só aprendi alguns anos mais tarde, noutros ambientes já longe deste Algarve serrano e marinheiro. Com os meus nove aninhos, tinha nos joelhos escanzelados as marcas do que me divertia: a rua, as correrias, a bola, as guerrinhas. “Sempre na vadiagem com a moçada!”, clamava a avó. Correr pelo Caminho das Piteiras até ao Degoladoiro e descer a rua da Ti Bia até à estrada, ou voar até ao Cerro do Forte, fugir pelas Cabeças e descer para “abanhar” na Ponte-Pedra, culminando com uns mergulhos na confluência das águas límpidas (naquele tempo) da ribeira do Areeiro, sem vergonha de mostrar as vergonhas às lavadeiras. Pois não percebia. A “doutrina” era uma espécie de prisão, e eu, um pintassilgo na gaiola a piar pela liberdade; irrequieto, não correspondia nem com a atenção nem com a compostura que aquelas meninas aburguesadas exigiam para a salvação e purificação do “Pelo Sinal”.

Lá em casa não éramos de santos nem de benzeduras. A minha mãe tinha a família e o campo para cuidar, não lhe sobrando tempo para mais do que um “Valha-me Dés”, e o meu pai preocupava-se mais com a Terra do que com os Céus, guardando o pouco tempo das noites para Banda Filarmónica e para a escola de Esperanto, a seguir à cafezada.
O senhor padre Domingos apreciava mais a Banda do que a aprendizagem daquele linguajar pouco católico do Zamenhof e mandava-lhe umas indirectas nos cafés da vila, a ele e aos outros “pobres ignorantes” que se distraíam com a conversa sem se aperceberem que os homens da santas sacristoas estavam por perto. O café dos Rolos ou o café Silva, este mais popular e aqueloutro mais aristocrático, eram naqueles tempos a alternativa às vendas e por ambos passava a patrulha da guarda a pôr o visto e para ser vista. Algumas mesas tinham clientela certa, ninguém se atrevendo a ocupá-las: o senhor presidente da Câmara e o padre Domingos eram geralmente os primeiros a chegar, depois o doutor notário e, lá para mais tarde, um ou outro lavrador. Liam “O Século” e comentavam as diatribes do Pandita Nehru atrás das nossas Índias, com um olhar perscrutador através das nuvens de fumaça, das reacções dos outros homens. Nas noites de cinema, trocavam palavras de entendidos sobre os filmes anunciados no prospecto do “Aljezur Sonoro Cine”, que alguns já conheciam de Lagos.

Por causa disto tudo, que eu só vim a perceber uns anos mais tarde, é que o padre me perguntou se os meus pais sabiam que eu andava na doutrina.
–“…dos nossos inimigos” – interrompi ‑ foi a Madrinha que me mandou vir ter com a menina Mariazinha.
‑ Ah! A Madrinha, aquela santa senhora. Então porta-te como deve ser.
‑ Sim senhor, eu cá porto-me sempre bem. – Saiu-me a resposta, pronta.
O padre e a menina Mariazinha recolheram-se ao canto do altar e, pela maneira como alternadamente me olhavam, esconfique tavam a falar de mim. Mas eu porto-me sempre bem, consolei-me, e fiz bem em lhes dizer, que era para eles não pensarem coisas. Quando a Madrinha mandava era para se fazer, senão acabavam-se aqueles lanches de encher a barriguinha: fatias de pão de canto a canto com o coalho do leite e açúcar, estrelinhas de figos torrados e docinhos de casamento, que só lá…. E ela tinha prometido à minha mãe dar-me um terço especial, benzido pelo Bispo. Se me portasse mal, lá se iam estes convidados e eu ficava era a ver os outros afilhados no brequefesta, se outro castigo não me acabedasse.

Quem já soubesse persignar-se, que nós chamávamos o “P’lo-sinal” e o “Nome-do-Pai”, ia fazê-los em frente da menina Mariazinha e podia sair mais cedo. Eu fui o primeiro a pôr-me na frente dela mas só me despachou a seguir à MariJoão e à Marizabel. Não me apoquentava a demora, mas elas ficaram para fazer-me arrenegas à saída da igreja. Já lá dentro tinham levado o tempo todo a fazer caretas e deitar-me a língua de fora, coisas que a menina Mariazinha nunca via; ela só via quando era eu a fazer qualquer coisa. Então tive que me impor. Fomos brincar ao Senhor Barqueiro no pátio do hospital, logo por trás da igreja. Quando chegou a vez da Marijoão, respondi-lhe o “passará, passará, mas algum ficará” e desmanchei-lhe o laço do vestido, e à Marizabel, “passará, passará, mas a bandelete ficará” e tirei-a e transpuze-a por cima do paredão, para o meio da estrumeira do hospital. A seguir fugi e elas ficaram as duas a chorar.

Fui a correr até à da minha tia para lanchar uma fatia de pão com manteiga encarnada e ainda cheguei a tempo de entrar no jogo da bola que ia começar no Cemitério Velho. Cinco de cada lado, seleccionados alternadamente pelos chefes de equipa, o Inaice Zé e o Joanito, que antes tinham saltado na direcção um do outro e coberto a distância restante com os pés, o esquerdo depois o direito, e assim, até tocarem no do adversário, para decidirem qual seria o primeiro a escolher. Fiquei com o Inaice. O jogo durou até ao sol-pôr, quando a mãe dele se fez ouvir num chamado que chegava a todos os cantos da vila onde houvesse a miudagem. Ganhámos 2-0 e ficou logo marcada a desforra para o dia seguinte. Alguns ficámos ainda por ali, discutindo os golos e os falhanços.
‑ Viste o chuto qu’ê ca di? – gritava o Luís, ‑ Eh pá, aquilo nam tinha mesmo defesa, nem o Costa Pereira a apanhava.

*

Quando cheguei a casa já se sabia das minhas bolaretas com as moças. O meu avô disse-me logo que tinha vindo a vizinha Zabel a queixar-se da bandelete da filha.
- Chico, anda cá! – a minha mãe chamou-me à cozinha assim que me sentiu em casa. – O que é que andaste a fazer? Não posso estar descansada contigo!
‑ Mãe… ê cá nam fiz nada! – respondi assim a ver se pegava. – Elas é que levaram a doutrina inteira a meterem-se comigo! – funguei – E a menina Mariazinha nunca as vê a elas. Ê cá nam fiz nada! – e só para mim, remordendo,  ‑ Moças dum raio, ai quando as apanhar!
A minha mãe nem levantou os olhos do tacho das papas que ia mexendo com o colherão, enquanto deixava cair a farinha de milho lentamente, por entre os dedos. Ainda me disse:
‑ O teu pai vai saber e não te vais safar, já sabes…
O meu avô passando o seu braço sobre os meus ombros, solidário, disse-me baixinho naquele seu tom calmo e terno:
‑ Deixa lá, menine, na há-de ser nada. O que é preciso é levares a doutrina até ao fim e a senhora Madrinha na se zangar. Às mecinhas nada de mal lhes faças… que é tudo a brincar.
O meu pai não tardou. Já sabia, é claro.
‑ Anda cá, ‑ e apertou-me no meio das suas pernas, ‑ andas então a pregar peças às moças! Isto agora é todos os dias? Pára com isso. Ouve bem o que eu te digo: ou entras nos eixos, ou temos o burro nas couves!
E ficou assim. Não era para brincadeiras nem me batia, mas castigava-me doutra forma que me doía ainda mais. No domingo passava um filme que eu queria ver, “O Pirata Vermelho”, cujos cartazes já me faziam imaginar aventuras de viagens e batalhas nas caravelas das descobertas. O rapaz era o Burt Lancaster.
‑ Querias ir, não querias?
Olhei-o com os olhos já a quererem chorar. Se ele não me levasse, como é que eu iria viver aquelas aventuras com a malta?
‑ Paiiii… Ò pai, leve-me lá… Ò pai, leve-me lá que eu porto-me bem! Ò pai… a minha travessura foi pequena… e eu até gosto delas… Leva-me?
Foi um grande filme… cinemascope e a cores!

No Sábado a seguir lá tive que voltar à Igreja, mesmo contrariado. Não gostava mas passei para a lição das Avé-marias. As moças não passaram, ficaram tufadas e cansaram-se das carantonhas e eu, de peito inchado, consegui um “muito bem” da menina Mariazinha.
Como o meu pai me explicara a seguir ao cinema, cada um tinha o seu trabalho e a obrigação de o fazer como devia de ser; a escola e a doutrina eram o meu trabalho, tinha que o fazer bem. E fazia-o.


‑ Foi um ganda filme, na foi mê pai?

quarta-feira, setembro 18, 2013

Estórias Barlaventinas - O primeiro dia de Escola


Levei quase um ano com a Zulmirinha. Ensinou-me a ler e a escrevinhar qualquer coisita, sempre com incentivos de figuinhos secos ou torrões de açúcar pela lição sabida ou cópia sem erros. Lá estagiei e ganhei confiança e lá conheci a minha professora (a que viria a ser) que morava mais abaixo e que dava sempre vaia. “Francisquinho, lá te espero para Outubro”. “Sim minha senhora”.
A Escola Primária de Aljezur (*)
 
E esse Outubro finalmente chegou de céu embrulhado, ansiosamente esperado. A escola começando na primeira semana ‑ no meu ano foi a 6, logo a seguir ao dia da República (fosse lá o que isto fosse, só compreendido alguns anos mais tarde). Um dia diferente de todos os outros, um primeiro dia. Preparara tudo de véspera: uma mala castanha de papelão, brilhante nas suas cantoneiras de lata, e lá dentro, a pedra com o respectivo lápis-de-pedra e o indispensável trapinho para apagar, um caderno de duas linhas, lápis de carvão e caneta de aparo, e o Livro, esse que acabei por saber de cor e salteado. Pouca coisa que saltitava dentro da mala à medida que eu voava pela ladeira abaixo, nas minhas sandálias novas de sola de pneu, como dizia o mestre Manel Gil, que as fizera: “Com estas até voas! Levam sola de avião”.
…que acabei por saber de cor…

Ia orgulhoso, no meu bibe branco, a estrear, com abotoadura ao lado esquerdo e um cinto para apertar e franzir.
‑ Vai pela beira da estrada, cautela com os carros!
Éramos muitos, de branco, pela berma da estrada a caminho da Escola. Moços e moças. Uns já conhecidos, outros a conhecerem-se. Os mais velhos a fazerem já as suas filistrias ou a defenderem os seus amigos. “Este é o Chico, é meu primo, vejam lá, hem?!”
Eu nunca tinha visto tanta moçada junta. Reunimo-nos no pátio. Os mais novos pareciam identificar-se mutuamente e ficávamos juntos, à espera.
‑ Práqui os da primeira e práli os da terceira, – a voz autoritária da prima Marcolina que com o seu ponteiro de cana-da-índia tocava as novas ovelhas para junto da parede, numa formatura dois a dois.
Ficámos quietos e inquietos durante uns segundos que pareceram horas. A “contina” mantinha os rapazes alinhados até que se ouviu lá de dentro um “mande-os entrar”.
Entrámos para a sala, grande, cheia de carteiras em quatro filas. “Ninguém se senta sem eu dizer”. A professora começou a chamar-nos pelos nomes, indicando o lugar onde cada um devia ficar. Os da primeira classe nas primeiras filas, e os da terceira nas filas de trás. “Menino Francisco, a seguir.”
O meu olhar percorreu toda a sala. À nossa frente, sentada a uma mesa de tampo preto, a senhora professora. Sobre a mesa alguns papéis, um estojo de vidro com dois tinteiros, um azul e outro encarnado, e uma tabuinha estreita, com dois dedos de altura. “Será a régua?” perguntei-me, arrepiado. Por trás da professora um crucifixo como o que a Madrinha tinha por cima da cama. Mais para o lado, o quadro, preto, tão preto, estranho, com um estrado por baixo. Ao longo da parede estavam uns armários, duas fotografias em moldura, cada uma com um velho penteadinho, e ainda uma janela fechada com a bandeira a fazer de cortinado, que afinal não era nem uma coisa nem outra: era uma caixa que se chamava vitrine, e a cortina não era cortina, mas sim a verdadeira bandeira nacional como aprendemos mais tarde.
Finalmente, já todos sentados, a professora encarou-nos a todos. Segurava também um ponteiro, como a prima Marcolina. Passeou-se pelos corredores, passada larga, larga de mais para as suas curtas pernas (éramos quase do mesmo tamanho!). Ia falando, devagar. “Isto é uma sala de aula”, “Os meninos aqui só falam para responder às minhas perguntas”, “ Aquele que se portar mal, já sabe, habilita-se a umas palmatoadas”, “Aqui não há paizinhos nem mãezinhas”, “Quem precisar de fazer as necessidades, levanta a mão e pede “Senhora professora, posso ir lá fora?””.
Estávamos a ficar um pouco assustados, enquanto os da terceira faziam sorrisinhos parvos.
- Calados! O menino Zé Luís vai ao quadro escrever a data: 6 de Outubro. – Dirigia-se a um dos da terceira classe.
A professora fez revisões (que eu não sabia o que era) com os da terceira, e nós ficámos a fazer desenhos na pedra até à hora do almoço. Ao meio dia houve ordem para sair, e toca a correr a caminho da manja, que à uma e um quarto tínhamos de estar de volta. Alguns dos meninos do campo ficaram na escola e atacaram os seus farnéis nos cestinhos de vime. Depois brincavam o resto do tempo no recreio. Invejei-os e insisti com a minha mãe para que me preparasse também um farnel.
– Pensas que isso é uma coisa boa, mas não é! Bom é vires a casa e comeres a comida da família. – Tinha razão, como sempre.
O almoço foi muito rápido e depressa integrei o grupo do pessoal da vila que regressava à escola. Ainda tivemos tempo para correrias e brincadeiras antes de formar para a entrada, agora cada um com o seu companheiro de carteira. O meu era o Zé Francisco, que vinha do Moinho da Várzea.
Este dia marcou-nos a todos… o primeiro dia de escola. Pessoal da vila e pessoal que vinha dos montes à roda, de sítios que só eles pareciam conhecer, Corte daqui, Vale de lá… todos sabendo coisas que outros não sabiam, generosamente partilhando esse conhecimento e prometendo novidades nos dias seguintes: “Trago-te uma forca nova para o teu atirador!”, “Tá bem, e eu dou-te um berlinde de pirolito!”. Logo ali nasceram as mais firmes amizades que amadureceram ao longo da vida, e duram até hoje, já noutro século…
(*) Fotografia retirada do site da Junta de Freguesia de Aljezur em http://jf-aljezur.pt

Estórias Barlaventinas - Queres ir à praia?


Domingo de finais de Junho, quente e sem escola. O meu pai saíra cedo para o mar. Ouvi-o conversar com a minha mãe: ia fazer a maré e depois dar uma ajuda no Casino. O Costa e o Zé da Luz tinham-lhe pedido essa ajuda para fazerem o terraço do Sargo e ele não podia dizer que não. “Ajudar os primos não é favor.”
A cozinha cheirava aos ovos com chouriça do farnel do meu pai. Salivei e levantei-me num salto para ir passar um pedaço de pão na frigimenta, petisco fino antes do café.
Salpiquei os olhos no lavatório da cozinha, enfiei as calças curtas e as sandálias (de sola de pneu fabricadas pelo Sr. Manel Gil, da Igreja Nova) e saí a correr a desafiar o Zé Rogério.
– Queres ir à praia? – sussurrei pelo postigo – Vamos ao Monte Clérigo, vamos ver o Casino.
Não demorou nada e o Zé Rogério saltou pela janela.
– Anda – e começou a subir a ladeira para o Castelo.
– Espera Zé Rogério. Vamos pelo Castelo? Direito aos Montes Galegos? Por ali é mais perto – e apontei lá para trás, o caminho das hortas e da ribeira. – Vamos ter ao Vale Palheiro e subimos por lá. Eu sei o caminho.
 
E assim fomos saltitando, caminho abaixo, abrindo o peito ao ar da manhã. Passámos ao largo da Fonte das Mentiras, atentos e receosos, não fosse o Viva-à-Rússia estar lá ao pé, e seguimos os contornos do cerro a caminho do Vale Palheiro. Não havia que enganar, era caminho à vista. A vila por trás e o monte dos lavradores pela frente. O casqueiro na cabeça protegia do sol mas a sede já apertava. Ao nos aproximarmos do monte os cães começaram a ladrar e apareceu a senhora Joaquina, surpreendida.
– Por aqui a esta hora! Onde é que vão vocemecês, mecinhos?
– Vamos ao Monte Clérigo ter com o meu pai! – resposta pronta, convincente – temos é um bocadinho de sede…
Ela foi buscar um púcaro e deu-nos água da bilha, fresca. Os nossos olhos fixaram-se no pão sobre a mesa.
 – É carne frita, – murmurei para o Zé Rogério, e insisti – é carne frita!
A senhora Joaquina não ouviu, mas até pareceu que tinha ouvido. A sua mão grossa segurou o pão e a faca e partiu duas fatias. Untou-as com a gordura do tacho e aplicou-lhe dois piques de carne.
– Vá comam. Os moços têm sempre vontade. E se vão para tão longe…
– Ainda é muito longe? – O Zé Rogério, receoso. – Vê-se daqui?
– Quando chegarem lá em cima, estão a meio do caminho, – explicou a senhora Joaquina, – as mães sabem de vocês? – Acenámos afirmativamente. – De certeza?
– Sim, sim, vamos ter com o meu pai. Vamos Zé. Obrigado. Té má logue!
Subimos a ladeira e levámos algum tempo a chegar ao caminho da praia. Aí sentámo-nos na berma da estrada. Não se via ninguém. Estrada para a frente e estrada para trás. Escondida pelas curvas, voltava a aparecer lá longe, muito longe. É verdade que já nos doíam as pernas, estávamos cansados e de novo cheios de sede. Ficámos ali parados.
– Para que lado fica o mar?
– Olha Zé, acho que é… além, tás a ver?
– Na tou a ver nada. – fungou o Zé Rogério. Já não sei para onde é.
– Olha! – gritei, apontando na direcção do velho celeiro. Um carro de mula! Estamos com sorte.
Era o senhor Manel Zé, do Palazim, que naquele tempo alugava o seu carrinho para pequenos fretes. Carregava mobília para uma família de veraneantes. Esticou as rédeas da mula e com um “Aí, Boneca, aííí!” parou o carro junto da gente.
‑ Eh! Vocês! Que andam por aqui a fazer, sozinhos? Vadiando?
‑ Não senhor, somos da vila e vamos à praia ter com o meu pai que está a trabalhar no Casino.
‑ E têm pernas para tanto? É mais longe do que pensam. Vá, cá pra riba.
Ficou mais curta a nossa viagem e mais agradável, de carro e com companhia. Pela minha parte já não podia com as pernas e o Zé estava na mesma. A Boneca era ligeira e depressa chegámos à curva da altura com o Sr. Manel a dar à manivela do travão, que o carro não podia embalar. Íamos felizes, eu e o Zé Rogério. O mar estendia-se até perder de vista, sereno e imenso, encandeando-nos com o reflexo do sol.
‑ Onde é o fim do mar? O que haverá para lá?
‑ És curioso! – o Sr. Manel Zé parecia adivinhar os meus pensamentos, ‑ Perguntas aos teus tios que te explicam. Eles que são homens do mar, e já correram este mundo e o outro. Para além, lá muito longe, muito longe, fica a América. Já ouviste falar?
Não, ainda não ouvira falar. Só do Américo, da Igreja Nova, ajudante do Sr. Bertolino caldeireiro; será a mulher dele? Que não, não era nenhuma pessoa. América era uma terra, com muita gente rica. Todos os miúdos têm bicicletas e toda a gente tem carro. Quando era mais novo teve uma carta de chamada, mas não pôde ir por mor dumas sezões que apanhou. Tinha pena…
Então os meus tios da marinha é que conhecem a América. Devem ser o Tio João e o Tio Eugénio que mandam aqueles postais ilustrados com fotografias de navios e de cidades desconhecidas. Ora fosse eu marinheiro e iria conhecer essa América.
‑ Zé Rogério, quando a gente crescer não queres ir para a marinha? Os meus tios arranjam lugar prá gente, certezinha.
 
Chegados ao fim da estrada, lá estava o Casino. O Casino! Nunca tinha visto um casino e não me pareceu lá grande coisa. Era uma barraca de tabuinhas pintadas de branco e azul e telhado de braceja, uma casa como as outras naquela rua de areia onde custava a andar. Dizem que foi o Negus que a fez, mas disso não tenho a certeza. Negus, o rei da Praia do Monte Clérigo, um rei sem reino nem reinado, tão queimado do sol que parecia um africano, e se calhar até era… da Abissínia.
Estavam uns homens trabalhando no terraço ao som da gaita do Sidónio, mas do meu pai nem a sombra. Comecei a ficar aflito. Descobri o parente Costa e perguntei-lhe. O meu pai já partira para a Amoreira.
Foi assim uma espécie de dor de barriga, e o Zé Rogério que nem menos. Cansados e sem comida, a situação não tinha grandes saídas.
‑ E agora Xico, o que é que a gente vai fazer?
‑ Deixa, ‑ que decidido eu era! ‑ Vamos ter com o Sr. Manel Zé e ele leva a gente prá vila outra vez.

Chegámos à vila pela tardinha e desembarcámos ao pé da Praça. Tínhamos faltado ao almoço e agora era preciso explicar. A minha mãe tinha ido para as ceifas do meu avô e eu havia de ter ido comer à da minha tia da vila. Por aí a coisa resolvia-se. O pior era o Zé Rogério.
‑ Dizes que vieste comigo à da minha tia da Igreja Nova.
E disse. 
 
 

Não faltava imaginação aos nossos oito anos de idade. Foi a nossa grande aventura. Sozinhos a caminho do Monte Clérigo, regressando com um sonho de marinheiros descobridores das terras distantes do além, do outro lado do mar…

quarta-feira, junho 26, 2013

Estórias Barlaventinas - Os contratos da Páscoa

Tenho esta espécie de contrato (unilateral!) com o Algarzur de só publicar no blog novidades depois de saídas no jornal. Isto faz com que alguns textos acabem por sair aqui um pouco a destempo, mas não faz mal, acho eu que não faz mal. Prioridades são prioridades e o que é inédito é para ser inédito. Mas estes "Contratos da Páscoa" já por aqui andaram, noutras Páscoas, perdendo assim esse ineditismo. Olhem, paciência... rebusquei no meu scriptorium, escovei a poeira dos pergaminhos e aqui estão eles de novo, para reler e relembrar as "Estórias Barlaventinas" da nossa infância e juventude.


OS CONTRATOS DA PÁSCOA

 “Contrato, contrato, contrato fazemos” e enganchávamos os dedos mindinhos da mão direita, sacudindo os respetivos braços num sobe e desce ao ritmo da ladainha, e continuávamos “Sábado de Aleluia desmancharemos e Domingo de Páscoa nos pagaremos!”, se não me falha a memória, logo depois dos sinos anunciarem a Aleluia e arrumadas que ficavam as matracas até ao próximo ano, num excitante esconde e busca. Era assim na Semana Santa, uma tradição que cumpríamos desde pequeninos, começando os contratos com os adultos da casa ou da vizinhança, passando aos colegas da escola e por fim, praticando (reminiscências) com as namoradinhas ou com aquelas que gostaríamos que viessem a ser.

Li num destes dias que o prémio era um saco de amêndoas. Admirei-me, pois saco de amêndoas (que nunca foi saco, mas pacotinho…) era uma coisa que, se aparecesse lá por casa, era único e maternalmente administrado para chegar para toda a família. Os nossos eram apenas confeitos, uns pequenitos que tinham um pinhão dentro que, com o seu justo ou exagerado aumento de valor, tem vindo a ser substituído por um grãozinho de alcagoita.

As procissões, com sermão obrigatório no Largo da Câmara (antiga), quase sempre da sacada da Casa Mimo, levavam ao êxtase a população religiosa da vila. Eram sobretudo mulheres e crianças; os poucos homens pareciam estar presentes apenas por dever ou imposição, funcionários ou “forças vivas”, sem faltar o representante da Legião Portuguesa, vestiam as opas e transportavam os andores, exibindo as suas melhores fatiotas, também por cá chamadas “de ver a Deus”. Mas apesar de não participarem nas celebrações religiosas, os homens não deixavam de afunilar as pernas em cotim novo, e as botas, brilhando com uma vela de sebo de Holanda e com fileiras de brochas novas, batiam a cadência nas calçadas.

Há memórias neste texto que só vim a compreender uns anos depois dos “contratos”, quando a minha mãe, mais uma vez não resistindo às minhas insistências, teve de me costurar umas calças novas, com bolsos cortados e tudo, para eu estrear na feira do Rogil, ou melhor dizendo, no baile da feira do Rogil, para onde me desloquei... a pé, claro!

Isto é uma espécie de fé no profano. Coisas do pensamento que não se controla… e a cena do baile da feira ainda outras lembranças me trouxe, pelo que fica já aqui a recordação e homenagem ao velho companheiro Leonel, que em muitas andanças pedalava por nós dois a sua ginga, levando-nos por montes e eiras atrás das desfolhadas ou outras adiafas – que também não são na Páscoa, mas que terminavam sempre em bailarico com música de batipum e batipum ‑ joga papas à parede ‑ de um qualquer fole de duas escalas.

Mas voltando à Páscoa e à costura da minha mãe… A razão destas memórias é que eu me tinha aventurado pelo sótão da casa, de lente na mão, para recolher as ratoeiras, e fora encalhar em duas velhas matracas que há anos descansavam naquele canto sem luz. Pareciam duas pequenas portas de postigo, madeira carunchosa, com umas argolas de ferro penduradas de cada lado e uma espécie de asa como pega. Era fácil de “tocar” tal instrumento. “Seguras nas asas e sacodes”, ensinou-me a minha mãe, “serviam para chamar as pessoas para a igreja, na Quaresma, pois não se tocavam sinos nessa altura… já se não usa”. Mas eu ainda me lembrava de ver a vizinha Marianita, no Adro, agitando aqueles objetos numa chinfraneira esquisita. Coisas da Páscoa que me trouxeram de volta esses tempos da infância, dos confeitos, dos brindeiros e dos folares.

Quem se lembra de ir partir o folar ao campo? Na segunda-feira, quase sempre naquele lugar designado por “Ao Caminho da Praia”; não por falta de outros sítios (imagine-se!) mas simplesmente porque sim, ou porque tinha bom piso para as senhoras e era mais fácil controlar a pequenada.

Os homens mais uma vez, natural e tradicionalmente, mantinham-se alheios a esta atividade meio santa, importada doutras crenças, preferindo a semeadura de prosa pelas vendas.

Nós éramos uns quantos putos, mesmo putos, moçada da mesma idade com oito ou nove anitos, tínhamos o nosso grupo. Fazíamos a guerra dos assaltos ao castelo, ou do “camoniesse” e do “manzuar”, verdadeiros Cisco Kids de pistolas de pau. Meninas à parte, que o faroeste era só para homens e o nosso jogo não tinha “saloon”.

A Coca-Cola era proibida e os pacotinhos de sumo ainda não tinham sido inventados. Quanto muito uns pirolitos, para os mais abonados, ou umas limonadas (caseiras) para os mais finos. Nós, os menos, desembaçávamos com aguinha da ribeira, ainda bebível, colhida de mãos em concha na corrente acima das pedras de lavar roupa.

Se não chovesse, era uma tarde daquelas. Regressávamos esgotados e sujos, transbordando de alegria, comentando as cenas dos filmes que criáramos, em que “o rapaz” chegava sempre na hora de libertar os outros “cabois” e prender os malfeitores.

Éramos os maiores do nosso tempo e representávamos à vez o Audie Murphy, o Alan Ladd ou o Randolph Scott, cujos nomes pronunciávamos muito à nossa maneira.

‑ Camoniesse! Iupi!

 

sexta-feira, março 15, 2013

Quem são os três cavaleiros?


Há vários dias que vinham ensaiando. Vínhamos ensaiando. Um pequeno grupo de três mulheres, dois homens e dois miúdos, um era eu e o outro o Zé Rogério. Juntávamo-nos à da vizinha Júlia, bem perto da minha casa, na pequena divisão mágica que servia de entrada, cozinha e casa de comer, geralmente designada por “casa de fora”. Sentávamo-nos ao pé do fogo, sempre a crepitar, aquecendo a eterna panela de ferro com água. Eu e o Zé Rogério partilhávamos um pequeno banco de corcha, a um dos cantos da lareira, éramos os responsáveis por preparar um brasido para a chouricinha do costume.
A prima Adélia Rosado tinha ditado as quadras que eu e o Zé Rogério vínhamos copiando com lápis de tinta, daqueles de molhar na boca, para umas folhas de papel pardo que fomos pedir à mercearia do senhor Joaquim. Uma folha para cada elemento do grupo, em letra que se lesse bem.

– Ò Zé, quem são os três cavaleiros?
– É pá, não sei!
– Pergunta lá, – insistia eu – a tua avó há de saber.

E escrevíamos, uma folha por cada ensaio, bem limpinhas e sem erros. O que era preciso é que na noite dos Reis já estivessem todas copiadas, e cada cantor tivesse a sua.

– Não pode haver enganos, mecinhos, senão não ganhamos nada! – recomendava o pai do Zé Rogério.
– Vizinho, quem são os três cavaleiros? – a minha curiosidade.
– Então não percebes os versos, Xico?! – e explicava, – são os Reis Magos. É pra eles que vamos cantar na noite dos Homens Bons.


Sim, eu percebia os versos, o que eu não percebia era aquela coisa de fazer sombra no mar. Pra mim, só as nuvens é que fazem sombra no mar; bem, as nuvens e a Rocha Treme-treme. Apurei a caligrafia e terminei a última folha. Mostrei orgulhoso à vizinha Júlia e levei uma festa na cabeça, com um “muito bem menino”. O mesmo para o Zé Rogério.

– Vá lá, agora o ponto. Então ò ponto, vamos lá. – o vizinho impunha a disciplina e o ritmo, que nem um maestro, – É como na banda, olhem a minha mão. Vá lá que a chouriça tá quase pronta!

Corriam assim os ensaios, noite após noite, até que chegou a tal noite dos Homens Bons. Era um sábado naquele ano, calhava bem aos homens pois no domingo podiam dormir mais um poucachinho.

Saímos todos a caminho da Cruz. Diz que na Cruz recebem bem, é gente mais chegada à Igreja. Era um pouco longe e fazia um frio de janeiro. Eu e o Zé Rogério, de calçanitos, sem direito a calças compridas, sentíamos esse ventinho a cortar nos joelhos… e nas orelhas.

– Agora amigos, nada de apoquentações nem pressas, que é para isto sair bem.
– E batemos à porta ou começamos logo a música?
– Não se bate. Dou com a cortiça na boca da enfusa três vezes, e logo a seguir o mestre Pedro ataca com a gaita de beiços. Uma voltinha, como se fosse um verso e olhem para o meu sinal. Avança logo o ponto e a seguir o coro. Os miúdos vão dizendo os versos baixinho para lembrar, pois uma lanterna é pouco para todos lerem. Vamos lá, um, dois e três.

Aí está. Era a minha primeira saída a cantar os Reis. Comecei a dizer os versos, baixinho como o vizinho mandara. Sabia-os todos de cor e salteado.

“Venho-lhes dar os Bons Reis,
Que as Boas Festas não pude.
Venho a fim de saber,
Novas da sua saúde.”

“Quem são os três cavaleiros,
Que fazem sombra no mar?
São os três do oriente,
Que Jesus vão adorar.”

“Não perguntam por pousada,
Nem por quem a possa dar,
Perguntam pelo Deus Menino,
Onde o irão achar?”

Estava a correr bem. Cantámos os versos todos e agora há que pedir:

“Ora dai senhora dai,
Que esta noite todos dão,
Que de Deus terá o pago
E da Virgem a salvação.”
A porta já se tinha aberto há um bocado e via-se a mesa posta com filhoses e pastéis de bata doce, e mais um bolo de família. Crescia a água na boca. Ao Zé Rogério e a mim até nos luzia o olho, como se costuma dizer. A filha dos donos da casa trouxe uma medida com feijão e duas chouriças que guardámos nas “talêgas”. Os homens molharam as bocas com um calicezinho da rija e a seguir terminámos, com o agradecimento.

“Quem tão boa esmola deu,
Dada de tão boamente,
Deus lhe dê muita saúde,
A si e à sua gente.”

“Fiquem-se com Deus senhores,
Que eu com Deus me vou andando,
Que a Virgem Nossa Senhora,
Cá nos vai acompanhando.” 

E com esta companhia corremos seis casas. Vieram figos, chouriças, feijão e milho, umas batatinhas doces e umas filhosinhas.
Quando regressámos as mulheres fizeram café de cevada e petiscámos até tarde. Eu e o Zé Rogério deixámo-nos adormecer ao pé do fogo e era já quase manhã quando fomos para a cama. Era domingo e Dia de Reis. Os homens foram pró mar, que a maré não espera, e a vizinha Júlia juntou-se às mulheres para a missa ali mesmo, na Igreja da Misericórdia, que o padre Oliveira tinha feito esse favor por mor dumas certas senhoras que tão boas esmolas davam.

* * *

sábado, janeiro 05, 2013

Já não cora a Maribia...


Nos anos sessenta e poucos, Maribia fora entregue aos cuidados da menina Geninha como aprendiza de modista, sem qualquer alternativa. “Vais e vais mesmo, eu é que sei!”

Ao fim de dois meses, Maribia tratava das brasas para o ferro de passar, desalinhavava o dia inteiro e no final, por ser a mais nova, varria o chão da casa de costura, cumprindo à risca, sempre à risca, que a menina Geninha não era para brincadeiras: “Moça, linhas para um lado e alfinetes para o outro!”

Mais lhe apetecia brincar do que estar ali naquela prisão, de manhã até à tarde. Ela, ainda a começar, e as outras duas, a Fernanda e a Conceição, já ajudantas e com direito a soldo variado, consoante o serviço. Ouviam rádio só aos bocadinhos, e baixinho, para não gastar muito a bateria: o folhetim e os Parodiantes, mas música nada, cantavam elas e alternavam com conversetas e anedotas picantes que a faziam corar. Corava sempre, e então quando as outras mangavam com ela por não perceber os contornos das historietas sussurradas entre dentes, ainda mais vermelha ficava. Aqui, a menina Geninha vinha em sua salvação com um daqueles “Chiu meninas! Deixem a mecinha em paz, que tem tempo!”

Havia sempre visitas, freguesas para medidas ou provas ou apenas visitas, que se demoravam num traz-e-leva e diz-que-disse. “É como no João Barbeiro! Há por aí munta gente a falazar!”, contestava o pai dela, o Joaquim Borrego, trabalhador à jorna e sempre contra tudo. No dia 5 chegava o Figurino com os novos modelos, juntamente com a coleção das amostras dos Armazéns do Norte, o que atraía mais senhoras. Entre suspiros de “ai que lindo!” ou de “não me ficava tão bem?” entravam e saíam as madamas, não antes de se inteirarem ou deixarem o caso do dia, ou da semana, ou mais algum episódio do Dr. Rodrigo que dava traques pela rua, ou da sua Mariazinha, uma oferecida, e que andava no coisital com o Luís da farmácia. Maribia, na inocência dos seus treze anitos, não percebia muito bem o que era e não lhe queriam explicar, mas aquilo era falar mal, com certeza.

– Maribia, vais à loja e trazes quatro metros de fita estrafor preta. – mandava a menina Geninha. Perguntas à Leninha se as minhas meias já estão prontas. Dizes que eu depois mando pagar.

— E volta depressa que ainda tens de ir ao despacho entregar uma encomenda para a Joanita das Alfambras.

E logo as outras duas lhe atiraram, entre dentes: – Vais ver o Ruizinho lá na loja. – Vê lá, não te distraias e não te enganes na fita. Olha o catrapisco, hem!

O Rui era filho da dona da loja. Tinham andado juntos na escola e nessa altura eram vizinhos. Às vezes brincavam juntos, mas agora ele estava em casa das tias em Portimão, a estudar, e só se viam nas férias. Toda a gente dizia que eles se namoravam, coisas de miúdos, mas era mais uma daquelas coisas que a faziam corar, sentia logo o calor nas faces. A menina Geninha já lhe tinha dito que não se apoquentasse, que com a idade ia passar, que afinal não era assim tão mau, pois a Conceição e a Fernanda, na hora de saírem, davam beliscões na cara só para ficarem com umas corzinhas.

Saltitando ladeira abaixo e depois pelas escadas do mestre Pedro Afonso, chegou à loja das meninas Margaridas. Estavam pessoas a ser atendidas e teve de esperar. Reparou que o Rui estava ao canto do balcão a ler um livro de quadradinhos, já com o olhar fixo nela. Corou outra vez e ficou com o coração acelerado. Disse-lhe um “Olá!” tão sumido que mais ninguém ouviu, a que ele respondeu da mesma maneira. Ficaram se olhando assim, tão embevecidos, que nem ouvia a menina Margarida a chamá-la.

– MariaBia, então hoje o que é que temos? O que é?

Quando retomou as escadinhas, logo na primeira travessa, saiu-lhe o Rui ao caminho e, sem aviso nem conlicenças ali lhe deu um beijo fugidio na face vermelha. Fixaram-se por uns segundos, uma eternidade, até que ela desatou a correr pelas escadas acima.

*

É dia de procissão da Nª. Srª. D’Alva. As festas são no largo da Igreja Nova, com quermesse, um palco para espetáculo e esplanada para petiscos, com mesas e cadeiras para se assistir às variedades. Os prospetos diziam que vinham uns artistas de Lagos e o Joãozinho do Rogil com o seu acordeão, para o baile do costume.

Maribia era agora a ajudanta principal e que já tomava conta da oficina, aliás atelier, como dizia o anúncio que a menina Geninha mandara pendurar na janela. Revelara-se com um jeito especial para o corte, cujo diploma tirado em Lagos, na Singer, estava emoldurado na parede, e duma perfeição, que as madamas só queriam que o toque final fosse dado por ela.

– Olá Maribia! – uma espécie de murmúrio tão perto do seu ouvido. – Dás-me sorte com os teus bilhetinhos? Quero vinte e cinco tostões deles.

Hoje, nas festas, fazia um turno na quermesse. Olhava de frente, quase desafiando, os rapazes que faziam bicha para comprarem os bilhetes a ela. Já não costumava corar tanto… mas corou.

– Olá Rui! Podes crer, se comprares do meu cestinho vais ter um prémio. Estendeu-lhe o cesto com o coração acelerado e as pernas a tremerem.

O Rui tirou os bilhetinhos e desenrolou-os, lentamente, gozando o momento – Tinhas razão, saiu-me o 20! O que será?

Era uma moldura, brilhante, com uma daquelas fotografias.

O Rui ofereceu-lha. – Fica para ti, acho que lhe vais dar melhor uso que eu. É uma coisa mais… feminina. Faz de conta que esses… somos nós os dois. O que é que achas?

Lá estava ela a corar outra vez, mas encheu-se de coragem e olhou-o nos olhos. – Obrigada, aceito. Vou pôr uma fotografia minha e…– hesitou e desafiou-o – fico à espera da tua, para lhe juntar.

– Está bem, vou-ta mandar. – E pousando a sua mão sobre a dela, deixou-lhe um “espera por mim”, e desapareceu com os seus amigos.

*

Ele foi para os Fuzileiros na camioneta da manhã seguinte. A fotografia, a preto e branco, chegou três meses depois. Estava fardado e segurava numa das mãos um cachimbo. Ficava-lhe tão bem o cachimbo… ”Com a amizade do Rui” lia-se na parte da frente e, na parte de trás, um comprometedor “Espera por mim” dentro de um coração.

*

O Rui embarcara para a Guiné. Escreviam-se, ela era a sua madrinha de guerra. Era o que dizia, mas na verdade o que sentia era diferente. E ele também. As cartas começavam sempre por “Minha querida Maribia” ao que ela respondia com “Meu querido afilhado”. Na verdade, ambos achavam que já se namoravam. Faziam planos para quando ele voltasse, iriam morar para a Cruz de Pau, ou para o Feijó, e ela abriria em sua própria casa um atelier de costura para outras madamas, e teria as suas aprendizas e ajudantas.

Ficou-se o futuro no sonho. O Rui desaparecera em combate. O não aparecimento do corpo ainda lhe alimentou esperanças, que o fim da guerra fez renascerem. Mas em vão os meses se tornaram anos, e estes quase uma vida.

A Maribia ainda espera o Rui. O seu Ruizinho de olhar sereno, segurando o cachimbo que lhe dava um ar tão fino…