sexta-feira, março 15, 2013

Quem são os três cavaleiros?


Há vários dias que vinham ensaiando. Vínhamos ensaiando. Um pequeno grupo de três mulheres, dois homens e dois miúdos, um era eu e o outro o Zé Rogério. Juntávamo-nos à da vizinha Júlia, bem perto da minha casa, na pequena divisão mágica que servia de entrada, cozinha e casa de comer, geralmente designada por “casa de fora”. Sentávamo-nos ao pé do fogo, sempre a crepitar, aquecendo a eterna panela de ferro com água. Eu e o Zé Rogério partilhávamos um pequeno banco de corcha, a um dos cantos da lareira, éramos os responsáveis por preparar um brasido para a chouricinha do costume.
A prima Adélia Rosado tinha ditado as quadras que eu e o Zé Rogério vínhamos copiando com lápis de tinta, daqueles de molhar na boca, para umas folhas de papel pardo que fomos pedir à mercearia do senhor Joaquim. Uma folha para cada elemento do grupo, em letra que se lesse bem.

– Ò Zé, quem são os três cavaleiros?
– É pá, não sei!
– Pergunta lá, – insistia eu – a tua avó há de saber.

E escrevíamos, uma folha por cada ensaio, bem limpinhas e sem erros. O que era preciso é que na noite dos Reis já estivessem todas copiadas, e cada cantor tivesse a sua.

– Não pode haver enganos, mecinhos, senão não ganhamos nada! – recomendava o pai do Zé Rogério.
– Vizinho, quem são os três cavaleiros? – a minha curiosidade.
– Então não percebes os versos, Xico?! – e explicava, – são os Reis Magos. É pra eles que vamos cantar na noite dos Homens Bons.


Sim, eu percebia os versos, o que eu não percebia era aquela coisa de fazer sombra no mar. Pra mim, só as nuvens é que fazem sombra no mar; bem, as nuvens e a Rocha Treme-treme. Apurei a caligrafia e terminei a última folha. Mostrei orgulhoso à vizinha Júlia e levei uma festa na cabeça, com um “muito bem menino”. O mesmo para o Zé Rogério.

– Vá lá, agora o ponto. Então ò ponto, vamos lá. – o vizinho impunha a disciplina e o ritmo, que nem um maestro, – É como na banda, olhem a minha mão. Vá lá que a chouriça tá quase pronta!

Corriam assim os ensaios, noite após noite, até que chegou a tal noite dos Homens Bons. Era um sábado naquele ano, calhava bem aos homens pois no domingo podiam dormir mais um poucachinho.

Saímos todos a caminho da Cruz. Diz que na Cruz recebem bem, é gente mais chegada à Igreja. Era um pouco longe e fazia um frio de janeiro. Eu e o Zé Rogério, de calçanitos, sem direito a calças compridas, sentíamos esse ventinho a cortar nos joelhos… e nas orelhas.

– Agora amigos, nada de apoquentações nem pressas, que é para isto sair bem.
– E batemos à porta ou começamos logo a música?
– Não se bate. Dou com a cortiça na boca da enfusa três vezes, e logo a seguir o mestre Pedro ataca com a gaita de beiços. Uma voltinha, como se fosse um verso e olhem para o meu sinal. Avança logo o ponto e a seguir o coro. Os miúdos vão dizendo os versos baixinho para lembrar, pois uma lanterna é pouco para todos lerem. Vamos lá, um, dois e três.

Aí está. Era a minha primeira saída a cantar os Reis. Comecei a dizer os versos, baixinho como o vizinho mandara. Sabia-os todos de cor e salteado.

“Venho-lhes dar os Bons Reis,
Que as Boas Festas não pude.
Venho a fim de saber,
Novas da sua saúde.”

“Quem são os três cavaleiros,
Que fazem sombra no mar?
São os três do oriente,
Que Jesus vão adorar.”

“Não perguntam por pousada,
Nem por quem a possa dar,
Perguntam pelo Deus Menino,
Onde o irão achar?”

Estava a correr bem. Cantámos os versos todos e agora há que pedir:

“Ora dai senhora dai,
Que esta noite todos dão,
Que de Deus terá o pago
E da Virgem a salvação.”
A porta já se tinha aberto há um bocado e via-se a mesa posta com filhoses e pastéis de bata doce, e mais um bolo de família. Crescia a água na boca. Ao Zé Rogério e a mim até nos luzia o olho, como se costuma dizer. A filha dos donos da casa trouxe uma medida com feijão e duas chouriças que guardámos nas “talêgas”. Os homens molharam as bocas com um calicezinho da rija e a seguir terminámos, com o agradecimento.

“Quem tão boa esmola deu,
Dada de tão boamente,
Deus lhe dê muita saúde,
A si e à sua gente.”

“Fiquem-se com Deus senhores,
Que eu com Deus me vou andando,
Que a Virgem Nossa Senhora,
Cá nos vai acompanhando.” 

E com esta companhia corremos seis casas. Vieram figos, chouriças, feijão e milho, umas batatinhas doces e umas filhosinhas.
Quando regressámos as mulheres fizeram café de cevada e petiscámos até tarde. Eu e o Zé Rogério deixámo-nos adormecer ao pé do fogo e era já quase manhã quando fomos para a cama. Era domingo e Dia de Reis. Os homens foram pró mar, que a maré não espera, e a vizinha Júlia juntou-se às mulheres para a missa ali mesmo, na Igreja da Misericórdia, que o padre Oliveira tinha feito esse favor por mor dumas certas senhoras que tão boas esmolas davam.

* * *