domingo, novembro 27, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (11)

 



LUÍSA - RAINHA DO VIDIGAL

“In nómine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti.” — Era o padre a iniciar ritual, provocando em uníssono um grande “Amen”.

Esta parte inicial, até o Zé a percebia, desde criança, mas quanto à continuação, apanhava uma palavra aqui, outra ali, mas sem perceber o significado. Por que cargas d’água é que haveriam as missas de ser celebradas em latim, se o povo falava era o português. Até o padre tinha de ler por aquele livro grande, pois se não tinha ninguém com quem falar aquela língua, já morta como se dizia, como é que ele haveria de a praticar. Era só pregação! Mas o sermão, esse era em bom algraveo, percebido por todos! “Irmãos, podeis dar, então dai aos necessitados e dai à vossa Igreja, porque quem dá aos pobres…”.

“Dominus vobiscum”…

“Ite, missa est.” — O padre anunciava o fim do santo sacrifício. Quem conhecia o ritual murmurava um “Deo grátias”.

Terminava a missa, o que se percebia pelo farfalhar das roupas e pelo ruído dos passos. As pessoas encaminhavam-se para a porta. Os poucos homens foram os primeiros a sair, mas Zé manteve-se até ela passar. Ela mandou-lhe um olhar de cumprimento ou de desafio, ou de convite, ele que lhe desse o sentido que quisesse, mas ele respondeu-lhe com um picar de olho. Já no adro, ela despediu-se das amigas e esperou por ele. Um “Olá” mútuo foi mais do que suficiente e, como se tivesse sido combinado, dirigiram-se para a lateral do edifício onde estavam os animais.

Ela procurou no alforge as sandálias do campo e trocou de calçado, e ele esperando ao lado dela, perguntou-lhe se ia já para casa, ela que sim e convidou-o a acompanhá-la.

— Não queres ir até lá? Faço uma frigimenta de chouriça com ovos.

— Ora aí está uma coisa qu’a mim me cai no goto! Atão vou contigo. Vá que t’ajudo a montar.

— N’é preciso. — Com a leveza do seu corpo pequeno e a agilidade que a caracterizava, deu um balanço e saltou; com meia volta no ar ficou sentada de lado na albarda. — Olha, já estou.

— Segura-te ao cabeço da albarda, que eu levo a areata.

O caminho fizeram-no devagar, sem pressas. Era cedo. A conversa fluía entre eles. Ela, que tomava conta da casa e do irmão desde que os pais sucumbiram ao febrão das sezões que apanharam no Alentejo quando foram para as mondas. Ela e o irmão escaparam porque tinham ficado com familiares em Maria Vinagre.

— E tu? Os teus pais? A tua mãe já sei que é quem toma conta de ti, mas e o pai? Marujo, não era?

— Sim, era marujo. Andava numa traineira da Fortaleza. Um dia um par de roazes prendeu-se nas redes quando fizeram o cerco e ele saiu na chata para tentar salvar a faina da sardinha. Dizem que os roazes viraram a chata e ele ficou debaixo e deve ter levado uma pancada na cabeça. Quando o tiraram já estava sem vida. Eu era ainda pequeno. Daí, fiquei com esta alcunha de Zé Marujo, mas é só alcunha, o meu apelido e Santos. Sou José Alberto dos Santos.

— Pois é claro! Marujo não é nome de ninguém. Bem, sei lá, se calhar até podia ser, não achas.

Chegaram ao monte e o Zé dispôs-se a desalbardar o burro e prendê-lo na courela do pasto por detrás da casa.

— Sim, obrigada. Eu vou mudar de roupa. — E sentindo que lhe provocara um certo ar matreiro, antecipou-se ela. — Não te atrevas a ir lá a casa antes de eu aparecer cá fora, hem? Nem penses!

— Tá bem, fica descansada. O qu’é que pensas?

Pouco depois já estavam à mesa com a frigimenta na frente. Pão, vinho e boa disposição.

— O Manel? Inda o vi.

— O irmão foi de manhã cedo à pesca para a Carriagem com o vizinho ali de cima. Só vêm lá para a noitinha e, como é costume, não há-de trazer peixe nenhum!

Conversaram. Iam-se conhecendo, ambos entusiasmados com a presença do outro, sentindo-se confortáveis, tranquilos. Ela ruborizada e abanando-se com a mão, sugeriu irem-se sentar no poial à porta e apanharem um pouco de ar mais fresco, e comerem lá fora as laranjas. E foram.

— Queres que experimente outra vez fazer-te os óculos? — Zé abrindo a sua faquinha de bolso.

— Claro que não, aquilo foi apenas uma brincadeira.

A ocasião e as suas posições ao lado um do outro propiciavam inevitavelmente alguns toques com as mãos. Ela limpou as dele com uma rodilha molhada e seguraram-se mutuamente durante uns segundos.

— Tens as mãos frias. — Comentou ela.

— Mas tenho o coração quente. Não é assim que se diz? — Ele agora segurando as dela. — Mas as tuas estão quentinhas. No teu caso é o calor do teu coração, ou estou enganado?

— ‘Tás-me a fazer corar! Sei lá se é o calor do meu coração! Ele está dentro do meu peito, e lá há calor suficiente para ele bater.

— E esse calor não transborda, como o meu?

Mantinham-se de mãos nas mãos. Ele apertou-as ligeiramente e ela correspondeu com idêntico aperto.

— Gosto de ‘tar aqui contigo. Aqui ao pé de ti. Fazes-me sentir bem. E tu, o que sentes?

— Fazes-me corar outra vez. — Hesitante, baixando os olhos. — Sim, também gosto.

— Então gostamos os dois. — E arriscou. — Gostamos um do outro, é?

Bêque-me…

Bêque-me quê? Atão a gente acerta-se. — O qu’é que dizes? Vá, diz lá!

— Mas digo o quê? Se a gente se acerta? Pode ser…

— Pode ser, ou queres mesmo? — Zé aproximando-se, tentando dar-lhe um beijo na face.

— Sim... Também quero. — Ela permitiu o beijo e retribuiu beijando a face dele.

Para ela já chegava por hoje e disse-lhe isso. Que se fosse já. Tinha a cabeça numa grande baralhação e precisava de pensar. Ele concordou, mas puxando-a mais para si, beijou-lhe os lábios. Implorou só mais um bocadinho e trocaram outro beijo. A hora da partida ia-se alongando na tarde. Tanto para um como para o outro a novidade dos beijos era maravilhosa. Ele sempre segurando as mãos dela fê-la pôr-se de pé. Ficaram frente a frente e beijaram-se de novo e desta vez com um abraço, primeiro tímido, mas depois apertado e desinibido. Excitados os dois, ela defendeu-se, afastando-se murmurou-lhe que deviam ficar por ali.

— Só mais um abraço para a despedida. — Pediu ele.

E com esse derradeiro abraço se despediram. Combinaram que ela o visitaria na oficina já na Segunda-feira, e depois combinavam como se veriam. Ele encostou-lhe a boca ao ouvido e disse-lhe baixinho “Inda há-des ser a m’nha rainha!”

 


sábado, outubro 22, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (10)

 

10. Agostinho – Fuzileiro


Aquele Domingo tinha sido a sua despedida da vida civil. A caminhada até à Avenida de Roma e o regresso servira de verdadeiro tranquilizante e cedo adormeceu, confiante no hábito madrugador da tia.

Na manhã seguinte, ou melhor, na madrugada seguinte, levantou-se às seis horas, ainda antes da tia o acordar. Despachou-se depressa, higiene tratada e barba feita, pouca barba, mas enfim, a cara foi devidamente escanhoada. Agarrou o seu pequeno saco com o indispensável e saiu. Antes de começar a descer a escada voltou atrás para um beijo à tia.

Apanhou o eléctrico, quase vazio àquela hora. Já sabia que aquela carreira ia passar na Rua da Conceição, onde devia sair e caminhar para a Doca da Marinha. Era perto e em dez minutos chegou ao portão. Não viu campainha, abanou-o para anunciar a sua presença. Apareceu-lhe um marinheiro armado, com espingarda em bandoleira e baioneta no cinturão, a perguntar-lhe: “O que é que queres a esta hora, pá?”

Agostinho, um pouco intimidado, gaguejando lá explicou que se vinha apresentar como voluntário para a Marinha.

O marinheiro, percebendo a hesitação e a timidez dele, quis aproveitar para se divertir, pois ali não era ele a autoridade? portanto o outro teria que dançar com a sua música.

— E quem te disse para vires para aqui? A apresentação é no Alfeite, não é o que diz a tua guia? Ora mostra lá.

— Sim. Mas também me disseram que aqui eu posso apanhar a vedeta H para atravessar o rio, ou não?

Entretanto um Cabo saiu da casa-da-guarda e atalhou para o marinheiro.

— Estás armado em quê, pá? Então não te disseram que iam aparecer alguns candidatos à recruta para apanharem a vedeta? Verifica a guia e deixa-te de merdas.

— OK. — E para o Agostinho, entre dentes. — Tás com sorte. Entra lá e vai para além, para o pé daquele banco. É de lá que parte a vedeta.

Agostinho lá foi e sentou-se no banco grande, azul. Esteve sozinho durante muito pouco tempo, outros candidatos começaram a chegar.

Às sete e vinte, aproximou-se um pequeno barco cujo nome não conseguiu ler, escondido que estava por um pneu pendurado à proa.

— Este barco é que é a vedeta? — Perguntou um, mal disfarçando o nervosismo.

— Deve ser, não aparece mais nenhum. — Avançou outro, de cabelo ruivo.

Por fim o tipo das manobras saltou para o cais para amarrar o cabo. Ao vê-los exclamou: — Vá, toca para bordo e acomodem-se, que isto hoje é capaz de encher.

Recolheu-se e foi para a cabine. Soaram três toques na sirene e ele gritou: — Vamos sair às sete e meia. Quem não estiver fica em terra.

Do portão surgiu mais um grupinho de rapazes apressando o passo. Afinal a vedeta hoje não ia encher, mas quase! Novo toque da sirene e soltou a amarra. Partiram. O das manobras gritou: — Esta embarcação é um verdadeiro calhordas e com a maré a vazar vamos demorar aí uns três quartos de hora. E aviso já: ninguém vai chamar pelo gregório aqui dentro do meu barco. Se almarearem vão para a popa vomitar pela borda fora, olha ó caraças!

Era cedo e estava fresco. Os mais inseguros instalaram-se perto das janelas. Abriram-nas para entrar o ar, mas juntamente com o ar, entravam imensos salpicos que por vezes eram uma autêntica chuveirada que molhava mais do que aliviavam o enjoo, embora o rio estivesse calmo. A viagem decorreu sem incidentes. Durante parte do percurso tiveram a companhia de alguns golfinhos que pareciam disputar uma corrida com a vedeta. Demoraram mesmo os três quartos de hora anunciados.

Quando atracaram foram encaminhados para o Grupo Número 2 onde estavam preparadas três mesas de recepção, cada uma com um cabo escriturário a fazer o atendimento que constava de um pequeno questionário, findo o qual eram encaminhados para outra fila onde esperavam pela inspecção médica: uma breve auscultação, observação da planta dos pés e das partes íntimas e um elementar teste à visão. Finalmente tinham de cumprir os mínimos de desempenho físico numa corrida de aproximadamente 100 metros e avaliar a capacidade de recuperação. Obtida a “aprovação” nesta inspecção, passavam então à recolha de sangue para análise.

Havia perto duma centena de candidatos, voluntários, com elevada taxa de aprovação. Este processo levou muito tempo e depressa se esgotou a manhã. Foi atribuído a cada um uma guia com a sua identificação e um número. O almoço foi servido num grande refeitório. Antes de comerem, o mesmo cabo instruiu que havia autocarros à espera deles. Tinham o destino indicado num papel no vidro da frente, Vila Franca de Xira e Escola de Fuzileiros em Vale de Zebro.

— Alguém tem dúvidas? — Pausa. — Muito bem!

O grupo do Agostinho chegou à Escola de Fuzileiros pelas quatro da tarde onde os esperava a praxe do corte de cabelo modelo recruta, a habitual carecada. Após uma passagem pela arrecadação para receberem toda a palamenta, foram encaminhados para a caserna onde foram distribuídos pelos respectivos lugares.

— Amanhã apresentem-se na parada às sete e meia da manhã. — Instruiu o cabo. — A caserna tem de ficar arrumada, com todas as camas bem feitas. Bem feitas ouviram? As mãezinhas não vêm cá arrumar o quartinho dos meninos!!! Ok?

— Hoje vão jantar às 19 horas no refeitório do rés-do-chão, ainda sem formatura nem lugar marcado. Recolhem aqui até às 21 horas e pelas 22 será apagada a luz e é o silêncio.

A vida de fuzileiro começava assim, com dureza. Nas primeiras duas semanas não havia autorização para sair. Em boa verdade, nem apetecia: os dias eram cansativos com tanta actividade. Era a ginástica, era a aplicação militar, eram as operações nocturnas. A exigência era sobretudo física, sempre pondo à prova a resistência. Na segunda semana já houve eliminações por incapacidade.

Finalmente, na sexta-feira durante o almoço, o sargento da instrução informou que quem quisesse ir de fim de semana podia pedir um “passaporte” ao comandante do seu pelotão e apanhar o autocarro para Cacilhas ou para o Barreiro que saíam às quatro e meia da tarde.

Agostinho foi dos primeiros a chegar junto do comandante do seu pelotão. Com o dito passaporte para justificar à PM ou à PA se fosse interceptado, envergou a sua farda de sair, a precisar de um arranjo, poliu as botas, e foi instalar-se no autocarro. Estava ansioso. Não tinha conseguido telefonar aos tios e muito menos à Vitoriana.

 

 

CASAS NO FORTE - Folhetim (9)

 

9. Paris, Paris!

 

Ia adiantada a Primavera em Paris naquele ano de 1994; a canícula já batia nos 27 e podiam-se ver alguns franceses mais acalorados a tomarem banhos de sol pelos parques da cidade, com destaque para os Jardins das Tulherias e do Luxemburgo, ou ainda nas margens do Sena.

No seu intervalo para almoçar, Francisco juntara-se ao seu amigo Édouard Henri na esplanada do Café des Phares, na Praça da Bastilha. Debicavam sem pressa as salades niçoises, enquanto discutiam o trabalho sobre a língua portuguesa que Édouard preparava para a apresentação na aula de Português que frequentava na Sorbonne.

Estava animada a conversa quando tocou o telemóvel de Francisco. Retirou-o da bolsa de cintura. Era a Alice.

— Alô querida Alice! Ça va?

— Alô Chico, estou em crise. Preciso da tua ajuda para um problema da minha amiga de Lisboa, a Teresa. Estamos junto à Nôtre Damme e roubaram-lhe a carteira com os documentos; lembrei-me que talvez tu…

— Ok! Eu estou no Café des Phares, na Bastilha e ainda demoro uns minutos. E se vocês viessem até cá? Tomaríamos um refresco. Apanhem um táxi, d’accord?

Desligou com um à bientôt e voltou a dar atenção a Édou. Comentou o texto, a descendência do Latim, como o Francês, alguns vocábulos semelhantes e algumas declinações verbais. Recomendou que não deixasse de referir o Galego e o Galaico-Português. Não era uma especialidade sua, mas no seu curso ainda teve de se confrontar com o Latim em que, afinal, até fora muito bom aluno, e adorava a linguística.

— Acho que ficará melhor se desenvolveres um pouco mais estas questões — e apontou as frases já sublinhadas — e se incluíres um ou outro poema do Cancioneiro de Garcia de Resende, do século XVI, ou de três séculos antes, uma das Cantigas de Amigo de D. Dinis? “Ai Deus, e u é?”

— Achas que ficará bem? Os outros colegas vão incidir mais sobre Camões: a biografia, a lírica, os Lusíadas.

— Então e tu avanças com um estudo anterior ao Renascimento, — aconselhou Chico. — Acabas por apresentar uma língua bastante diferente da de Camões e, por maioria de razão, da actual. É um desafio, n’est ce pas?

Et bien, se mais ninguém atacar este tema, ainda sou capaz de tirar uma boa nota!

— Claro! Sûrement si j'étais ton profe…

Édou arrumou os papéis e despediram-se com um “tchau”, quando as três raparigas se aproximaram. Francisco e a Alice beijaram-se à moda dos franceses, com três beijos.

— Esta é a minha amiga Maria Teresa, e a sua colega…

Enchanté! — Disse para a Maria Teresa, trocando dois beijos.

Em seguida olhou fixamente para a colega cujo nome tinha ficado em suspenso. Havia qualquer coisa de familiar naquela cara. Os olhos e o modo de olhar… Os óculos de sol e um penteado à Mireille Mathieu não lhe transformavam suficientemente o rosto, o ar. A comissura dos lábios, o nariz inconfundível, ligeiramente adunco… Mas que coincidência! A parte do seu cérebro que se ocupava das coisas antigas executava um varrimento de conteúdos à mais alta velocidade. Será caso?

— Peço desculpa, mas não entendi bem o seu nome.

— Então! É a Vi…

— Sim, Vi. Os amigos costumam tratar-me assim. Mas na verdade o meu nome é…

— Vitoriana! — Atalhou Francisco para surpresa delas. — Vi, Vivi, Vita apenas para alguns.

— Ah! Mas que graça! Afinal conhecem-se! — Exclamou a Maria Alice.

Vitoriana ainda mais surpreendida, retirou os óculos revelando os olhos lindos e as sobrancelhas bem delineadas: “Desculpe, mas não estou a reconhecê-lo. Ora ajude-me lá.”

— Claro! É a coisa mais natural, há tantos anos… é a barba, faz-me parecer muito diferente. — Francisco, saboreando o momento com imensa satisfação.

— Hum… Não, não estou a ver. — Sorria. Já lhe parecera, mas não queria arriscar, desejava mais pistas.

— Imagina-me assim, de cara limpa. Ou melhor, vê a foto no meu BI. — Retirou o cartão da carteira e mostrou-lho, tapando o nome.

Ela olhou para o cartão e começou a corar. Continuava a evidenciar esse rubor sempre que se sentia surpreendida ou apanhada em falta, desde a infância.

— Chico?! Não posso acreditar! — Murmurou. — És mesmo tu?! — Caíram nos braços um do outro e assim ficaram num demorado abraço, perante a surpresa das duas amigas.

— Oh! Chico, que felicidade! Aqui, num sítio tão distante! — Vitoriana, ainda tremendo e muito corada, iniciava uma explicação, mas ambos acabaram por a proferir ao mesmo tempo.

— Somos amigos de infância!

— Tantos anos sem saber nada de ti… estás linda, aliás, estás ainda mais bonita!

— Pára de me envergonhar, por qualquer coisa continuo a ficar vermelha.

— Oh! Que saudades! Temos muito que falar, que recordar... Mais tarde? — E voltando-se para a Alice, — qu'est-ce qu'il y a? Oh! Desculpem lá, é o hábito, então qual é a aflição?

— Como te disse, roubaram a carteira da Teresa.

— É grande o prejuízo?

— Algum dinheiro, mas isso é o menos. Grave é terem-lhe levado o Bilhete de Identidade e elas têm o regresso marcado para amanhã ao fim do dia.

— E cartões de crédito?

— Felizmente mantinha-os à parte, numa carteira sob a blusa. — Explicou a Teresa.

— Bem. Não deve ser difícil recuperar o BI. Estes carteiristas pretendem sobretudo valores, o mais provável é colocarem o que não lhes interessa num marco dos PTT.

Parou um pouco, tornando a fixar os olhos da Vitoriana, o que lhe provocou novo rubor. Anunciou que tinha de regressar à embaixada, que estava na sua hora do almoço e tinha compromissos de tarde. Iria fazer uns contactos para a Police Nationale. Pediu os elementos de identificação à Teresa.

— Dá-me todos os teus dados e o número do BI, se te lembrares. E uma fotografia é fundamental.

— Fotografia… como vou arranjar uma? Onde haverá um fotógrafo?

— Tens de ir a uma máquina PhotoMaton… em qualquer estação du Métro. — Ajudava a Maria Alice.

— Sairei da embaixada perto das cinco da tarde. Entrarei em contacto com a Alice para nos encontramos à noite. Podemos… — de novo o seu olhar preso na Vitoriana — jantar juntos?

Ela disse que sim com naturalidade, mas interiormente pensava até num grande e repetido sim, sim. E de novo corou.

As outras anuíram. Despediram-se com um a tout a l'heur, quer dizer, até logo!

 

Em Praia de Buarcos, 2022


domingo, agosto 07, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (8)

 Zé Marujo - Carpinteiro e Abegão


“As ondas vão e vêm num eterno vaivém”. Era o que a avó lhe costumava dizer sempre que na conversa se falasse do mar. Dizia ela e ainda é o que se diz. Mas não, ele não tinha a mesma opinião, não era verdade. As ondas vêm, só vêm, não vão. Enrolam-se sempre na mesma direcção, ou seja, do mar para a terra, para as rochas, para as praias. Verdade até quando a maré vaza. E era nesta fase da maré vazia que José Alberto dos Santos, carpinteiro e abegão, com costela de pescador da Fortaleza que lhe influenciou a alcunha de Zé Marujo, instalado nas rochas perto da água, dava banho ao seu isco. Prendia uma pedrinha furada junto ao anzol para garantir um bom arremesso e fazê-lo afundar, pois sargos à tona d´água foi coisa que nunca vira. Iscava com minhoca da pedra que apanhava no laredo e que misturava com terra grossa. Segurava-as entre os dedos da mão esquerda para lhes enfiar o anzol com a direita. Era um petisco para o peixe, mas desta vez o pexinho tava bicoso, bicava com a ponta da beiçola e limpava o anzol sem se prender. Zé Marujo precisava de levar pelo menos um sargo ou uma dourada para o jantar, como prometera à mãe. Queria alternar às couves com toucinho. Mas as esperanças estavam a perder-se e o que ele previa era um chibato daqueles.

Resolvera ir à pesca para pensar na conversa que teria de ter com mestre Jacinto sobre a oficina. Assim que saíra da escola tinha ido aprender o mister da carpintaria e abegoaria com o mestre Jacinto e tornou-se o seu braço direito. Após o mestre ter tido aquele estúpido acidente que o deixara incapacitado, ele sozinho dava conta da oficina.

Dedicou-se com todo o afinco ao trabalho. Se fosse dele gostaria de modernizar o equipamento, comprar máquinas e um motor para mecanizar a serração e o aparelhamento da madeira. Mas a oficina não era sua…

Resolvera abordar o assunto com o mestre Jacinto.

Meste Jacinto, estando como está e com a sua idade, o que pensa fazer com a sua oficina?

— Não penso grande coisa. — Respondeu-lhe o patrão. — Quero é ficar sossegado, pois se já pouco posso fazer. Se aparecer alguém…

Ficaram-lhe no ouvido estas últimas palavras. O mestre Jacinto não se importaria de vender, mas o pior era o dinheiro. Nem sabia quanto e muito menos como o obter.

Fixava os olhos na bóia, mas o seu pensamento estava na oficina.

Zé mantinha o dedo indicador na sedela esticada à espera de sentir qualquer subtil esticanito antes da cana vergar. E se sentisse… puxava. Técnica do seu pai e que funcionava bem, mas não hoje, pois se os gajos nem picavam.

Para ele chegava, decidiu-se. Estava ali já há tempo de mais. Era assim, a sorte quando vem, nem sempre bafeja toda a gente, e muito menos por igual. Neste caso, a sorte não é como as ondas do mar. Vem e… não vem... Hoje não havia peixe no Penduradoiro de Baixo.

Arrumou os seus materiais no seirão. Queria aproveitar a maré baixa para ir ao laredo apanhar uns mexilhões, ou talvez algum polvinho distraído. Se não, seriam outra vez papas ao jantar.

Tocou a mulinha pelo areão abaixo e foi prendê-la numa pequena pedra em frente às Margaridas. Nas suas alpargatas de sola de corda, depressa caminhou pelas rochas rasteiras até onde as águas batiam. Por ali não andava mais ninguém. Com o peixeiro esgravatou uma pinha de mexilhões, e logo outra e mais outra. Que belos! Grandes e recheados! Num instante ficou com o seirão quase cheio, já bastavam. Ainda procurou numas frestas das rochas com o gancho do seu peixeiro, mas nem o trapinho branco os atraía nem os polvos estavam com disposição para o tacho. Não há peixe, não há polvo, mas vai haver uma arrozada de mexilhão que até já lhe fazia crescer água na boca. A sua mãe era uma artista na cozinha, tudo o que fazia lhe saía bem e então com uma copada daquele vinho que trouxe dos Vales em paga do conserto da janela. Regressou à praia e preparou a sua navalha para limpar as conchas. Era uma bela apanha.

Carregou o seirão num dos lados da gorpelha, prendeu o peixeiro no outro lado, junto à cana, e caminharam pela areia direito à ribeira do Monte Clérigo por mor da mula beber. O animal bebeu demoradamente e deixou de lhe cobiçar o barrilinho de barro.

A seguir marchou pela ribeira acima. Olhou a inclinação do sol, e pensou que chegaria à vila antes do fim do dia.

Não se enganara, mas já caía o sereno quando deixou a mula na cavalariça. A mãe assomou ao postigo e perguntou-lhe se trazia peixe para o jantar.

— Não ‘nha mãe trouxe mexilhões. Já estão raspados e prontos a saltar para o tacho do arroz.

Em pouco tempo já estava na mesa. A mãe ainda trabalhara na Casa Grande satisfazendo o fino paladar dos patrões e das muitas visitas, e por lá se manteve até à morte da senhora. Desde então remeteu-se à sua própria casa e, depois da morte do pai, dedicou-se completamente ao filho que ia agora nos seus vinte e dois. Ele cedo assumira o papel do homem da casa. Nada faltava. O rapaz era trabalhador e habilidoso.

Um dos filhos da Casa Grande, tenente do exército, intercedeu por ele e ficou isento do serviço militar alegando ser amparo de mãe, o que até era verdade.

Naquela noite, depois de despachada a arrozada de mexilhão, Zé Marujo partilhou com a mãe a sua ambição e a angústia que isso lhe fazia. Toda a tarde na rocha e no laredo não pensou noutra coisa. Fora à pesca para pensar e não concluiu nada.

— ‘Nha mãe, qu’é qu’eu faço? Não posso perder a oficina… E se for outra pessoa a comprar e eu ficar de fora?

— Amanhã é Segunda, é um bom dia para começar coisas. Fala com o meste Jacinto. Pergunta-lhe qual a ideia dele. Propõe-lhe pagares uma renda.

— Como se fosse uma courela onde um homem tem de largar a pele para pagar as meias!

— Mas é para começares, e depois logo vês! Quem sabe ele esteja de acordo. Não deixa de ser o dono e receberá uma paga, sem trabalhar. Tens de ser cauteloso, fazeres contas. Sabes quanto a casa cobra… oferece-lhe a terça parte.

Saiu e passou ainda na venda do Largo da Ponte e bebericou um copinho de aguardente. O Ti João preparava-se para fechar e já não estava ninguém para conversar. Era áspera a medronheira e arrepiou-se. O homem disse-lhe, como a inspirar-lhe confiança, que viera do Mourão, e que até o Presidente Carmona a tinha bebido aquando da eleição em Fevereiro, mas o Zé não estava disposto a repetir a dose. Despediu-se e pôs-se rua acima. Amanhã era Segunda-Feira, dia de começar coisas como dissera a mãe, e o Carmona não havia de perceber grande coisa destas bebidas dos alambiques da serra.

 


CASAS NO FORTE - Folhetim (7)

 Na Obra de Santa Zita - OSZ


O táxi parou em frente ao número 35 da Rua de Santo António à Estrela, eram sete e meia da tarde. Ao lado da porta uma placa metálica indicava OSZ. Agostinho pediu ao motorista que esperasse um pouco, até que abriram a porta e a Vitoriana entrou.

Assim que passou a porta da entrada ela sentiu o maior alívio da sua vida. Seria o início duma nova etapa. Mais um início, outro, o verdadeiro. Encarou mulher que a atendera com alguma surpresa, estava vestida duma maneira um pouco estranha: de cinzento-azulado, usava um avental com peitilho e alças e na cabeça um lenço da mesma cor, rente à testa que lhe tapava completamente o cabelo. Era seguramente uma farda. Seria uma empregada, uma freira, uma irmã? Vitoriana explicou-lhe que vinha do Algarve, que vivia em casa duma senhora idosa cujos filhos a tinham levado para Faro pelo que ficou sem um teto. Tinham-lhe dado o prazo de uma semana para deixar a casa e era por esta razão que ali estava. Precisava dum abrigo que pudesse servir de base para procurar trabalho. Explicou que a senhora Gertrudes contribuía para as Casas de Santa Zita e comprava sempre o calendário e o almanaque, por isso é que ela conhecia a instituição e se lhes dirigiu.

Ficou muito apreensiva face ao silêncio da mulher e, pior ainda, face às caras que ela fez. Como quem dizia que estava com pouca sorte, ou que a Casa estava cheia.

— Trazes alguma carta de recomendação dessa senhora, ou do padre da tua terra? É o costume, sabes?

— Não tenho nada… — Balbuciou com receio. — A vila está sem padre, só vai um de fora dar a missa aos Domingos. E a senhora Gertrudes, coitada, foi para o hospital depois de ter dado uma queda… Agora não tenho para onde ir…

— Senta-te aí e espera um pouco. Vou falar com a irmã Leonor que ela é que decide estas coisas.

Sentou-se com os cotovelos sobre a mesa e a cabeça apoiada nas mãos, numa atitude de quase desespero. Olhou o seu pequeno relógio, oferta da senhora Gertrudinhas, passavam já uns bons quinze minutos desde que entrara. Fez um rápido balanço daquele dia, o primeiro da sua nova vida. Teve sorte com o Agostinho. Sem ele como é que se teria desenvencilhado? No Terreiro do Paço ele agarrou logo um carro de praça. Ela hesitante e ele a dar-lhe confiança: “Anda, eu levo-te lá”. Ela encandeada com tanta luz na cidade, todas a passarem tão depressa. Parecia-lhe que os carros em sentido contrário vinham chocar com eles. Ele acalmando-a: “Vai correr tudo bem, vais ver”. Ele prometera-lhe vir no dia seguinte para saber com estavam as coisas. Tranquilizava-a. Até o motorista ajudou: “Conheço a irmandade, na rua não a vão deixar ficar”. Agostinho escreveu num papel a morada do tio, onde iria ficar até Segunda-feira, e o número do telefone. “Se houver algum problema ligas para este número”. Ainda tinha na mão esse papelinho, dobrado e redobrado. Ouviu um rumor e guardou-o apressadamente no seu taleiguinho.

Entrou uma mulher mais velha, com a mesma farda, seguida da outra que a tinha atendido.

— Boa tarde, sou a irmã Leonor. E tu és a Vitoriana!

— Sim, sou a Vitoriana, venho de Aljezur. — Respondeu quase gaguejando, não se sentia nada à vontade.

— Somos quase da mesma terra, eu sou de Lagos, muito perto, não é? — Tinha uma maneira doce de falar, o que a tranquilizou. E o facto de ser do Algarve deu-lhe mais confiança.

— E hoje não tens onde ficar… Qual é a tua idade? Não tens por cá família? Porque é que vieste ter connosco?

Começava o interrogatório…

— Faço hoje 18 anos — mentiu. — Vim aqui porque a senhora que me adoptou comprava sempre os calendários e os almanaques. Ela tinha uma grande admiração pela Obra e eu fiquei conhecendo e sabendo a morada.

— Ah! Foste adoptada?

— Não foi bem uma adopção. A minha mãe morreu e eu fiquei sem ninguém. A senhora Gertrudinhas, que era viúva, chamou-me para a sua companhia. — Vitoriana ia-se descontraindo. — Estive com ela três anos, até ela ir para o hospital e os filhos não me quererem na casa…

— Eras criada dela. Sabes ler, ou não fizeste a escola?

— Sim, sei ler e escrever, fiz a escola completa. E não era criada dela, era a sua companhia, como se fosse da família. É claro que fazia as tarefas domésticas com ela, era uma ajuda. — E acrescentou, com o objectivo de fazer valer as suas competências. — Sei fazer tudo numa casa, limpar e cozinhar. E também sei costurar e bordar com bastidor.

— Hum! Estou a ver… Ficas connosco esta noite e amanhã veremos o que se pode fazer. A tua situação é pouco vulgar e tenho que pensar melhor. Vais com a irmã Francisca que te vai indicar uma cama. Aqui jantamos pelas 7 da tarde, já passa da hora mas deve haver alguma coisa na cozinha. Até amanhã, se Deus quiser.

Levantou-se a irmã Leonor e logo de seguida a irmã Francisca que lhe fez um sinal para que se levantasse também.

Bem, pelo menos na rua não ficava. Seguiu a irmã Francisca pelo comprido corredor até uma porta que por cima tinha uma chapa de esmalte indicando “Camarata 3”. Era uma divisão quadrada, com seis camas, seis mesinhas de cabeceira e seis armários, tudo de ferro pintado de branco, três de cada lado. A irmã abriu uma fresta na janela dizendo que era para arejar, pois a camarata não era ocupada já há umas semanas.

— Ficas aqui, sozinha por enquanto. Como disse a irmã Leonor, amanhã se verá. Agora vem comigo à cozinha.

O jantar tinha sido canja de galinha com bastante arroz e carne. Mais parecia um arroz de frango do que uma sopa. Estava delicioso! Era uma boa maneira de terminar um dos dias mais desgastantes da sua vida.

Recolheu-se e dormiu profundamente. Acordou às seis da manhã. Era outro dia…



CASAS NO FORTE - Folhetim (6)


 ANA ROSA DOS VALES


Aos primeiros sinais da alva o Manel Carrapato já estava nos Vales. Tratou de prender o burro numa parte do terreno para pasto e aparelhou a mula ao carro. Pouco depois apareceu a Ana Rosa amparando o pai. Concluíram que o meste Zé ia melhor deitado, que sofria menos com os saltos das rodas no caminho irregular. Ambos ajudaram o homem a subir para a caixa de carga onde se estendeu sobre umas sacas e com um travesseiro. Puseram-se a caminho, devagar, Manel, sentado no varal quase encostado ao animal, contendo a vivacidade da mula. Ana Rosa sentada no banco à frente, virada para trás, vigiava o pai ajeitando-o de vez em quando para que se mantivesse mais confortável. Na grande descida, Manel passou para o banco para controlar a travagem. Era o mais perto que já alguma vez estivera da Ana Rosa. Ela ainda virada para trás. Num solavanco foi inevitável um toque, ao de leve, mascarado de ocasional. Ele diz “desculpe” e ela corando de novo “meste Manel” e o pai, “ó home, nâ me deixe cair a moça” e ele de novo “ê cá tomo conta, meste Zé”. Esta parte do caminho estava em muito mau estado pelo efeito das chuvas que lavravam grandes regos cheios de rabolos. A cena repetiu-se. Desta vez o solavanco provocou um ressalto na Ana que, assustada, se agarrou ao braço do Manel, que ele reforçou com a sua mão sobre a dela. Foram escassos segundos até ela retirar a sua. Manel sentia que a viagem estava a aproximá-los e era preciso manter uma atitude respeitosa, mas de proximidade e não de afastamento.

No fim da ladeira do Vale da Maia o caminho da Fortaleza entroncava no caminho de Lagos. Este, de maior importância, estava em melhores condições e o carro já não solavancava tanto. No entanto ambos continuaram ocupando a mesma posição na tábua atravessada que fazia de banco, tocando-se ao de leve, ele vigiando o animal, ela com atenção ao pai que entretanto parecia ter adormecido.

— M’na Ana Rosa, tá gostando da viaja? — Manel arriscava.

Meste Manel, tou sâ senhora, já há munte tempe qu’ê na saía do monte. Mas tenhe muntes cuidades com o mê pai. S’ele fecasse bom, ai s’ele fecasse bom…

Ana Rosa estava a ficar ansiosa, e não era apenas pela expectativa relativamente ao pai, era também pela presença do Manel. Sentia que havia qualquer coisa que ele lhe queria comunicar, sensibilizá-la, e receava o que fosse. Não por medo, mas porque, intimamente, também esperava que sim, que alguma coisa acontecesse. Já por mais de uma vez ele lhe aparecia nos seus sonhos, perturbando-lhe o sono o que lhe marcava olheiras profundas, que à mãe não passavam despercebidas. “Ana Rosa, Ana Rosa, qu’olhêras som essas?” “Tou dormindo mal, minha mãe, à noite faço um chazinho de bela-luísa”, “Fazes bem…”.

Na venda à beira do caminho perguntaram pela benzedeira. “Além, naquela curva, sai uma vereda à direita. Vão por ela e chegarão lá.”

*

— N’hora Zabel! N’hora Zabel! — Chamou o Manel, batendo as palmas.

— Lá vou, lá vou. — A resposta veio do fundo da casa, anunciando um homem de grande estatura que apareceu com uma tenaz na mão; era o Simplício. — Qu’é que se passa?

— Temos aqui o meu pai com umas grandes dores nas cruzes que mal se mexe. — Ana Rosa explicou. — A gente vem da Costa do Mar, dó pé da Fortaleza.

O Simplício foi buscar uma cadeira que pousou junto à traseira do carro e mandou sentá-lo nela para se transportar para dentro de casa, “…que aqui, à luz do dia, nada se faz.”

— Vá lá, um, doje e três, força! — Os dois homens levaram o meste Zé para dentro. — Vossemecês ficam lá fora. Isto agora é comigo e mais a minha Zabel.

Manel libertou a mula do carro, deu-lhe de beber e enfiou-lhe uma cevadeira para a manter entretida. Sentou-se no bordo do poço e a Ana Rosa a seu lado.

— O qu’é que sará qu’eles vom fazer ó mê pai?

— M’na Ana Rosa teja sessegada! Ele vai sair de lá como novo!

Ana Rosa deixou escapar uma lágrima pela face e ele condoeu-se. Ela precisava de apoio. Manel aproximou-se dela e, com o seu polegar, limpou-lhe a lágrima. Ela recuou bruscamente. Ambos pensaram que podia aquele gesto ser um abuso de confiança. Ele, que desculpasse; ela, que não tinha dúvida. Ele, que não chorasse; ela fungando, que não conseguia. Ele experimentando o seu braço no ombro dela; ela consentindo. Ele dando palmadinhas; ela ainda a consentir. Ele chegando-se mais; ela sem se mexer. Ele puxando-a; ela, deixando-se ir.

— Nhor Manel, atão qu’é isso? — Mas sem se afastar.

— M’na Ana é o coração…

Olhou-a fixamente, procurando-lhe um olhar de aquiescência, mas ela, cheia de rubor, baixou os olhos.

— É o meu coração. Vomecê sabe qu’eu vivo num casinhoto de empréstimo do Vitorino e comemos juntos. Preciso de dar uma volta na minha vida, preciso de companhia. O sê pai precisa de ajuda. Quer dizer, a sua famila precisa dum par de braços e eu tou aqui. E eu, eu preciso duma famila minha. A gente, eu e menina, dá-se bem, a gente podia-se entender. Diga-me lá…

— Oh! Nhor Manel. — Ana Rosa ainda mais corada. — esperava nada…

— O home tá pronte! — Gritou o Simplício da entrada da casa, na pior altura.

— Ai, se fosse ele! — Resmungou o Manel, silenciosamente. — Se fosse ele inda lhe dava um beijo e ficava o caso arrumado.


segunda-feira, maio 23, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (5)

 


5.  Uma Vida Nova

Estendeu o olhar até ao fundo à procura de um lugar. Preferia à janela, para se distrair com as vistas. A camioneta vinha quase cheia, apenas o banco de trás satisfazia a sua preferência e para lá se dirigiu. Sentia a curiosidade dos passageiros enquanto percorria o estreito corredor até ao fundo. Ajeitou-se à ponta do banco, encostada à janela, colocou a pequena maleta de viagem sobre as pernas e, na mão, uma bolsinha de retalhos. Os seus parcos pertences.

Ali ia ela a caminho do futuro, tão incerto…

Não teve despedidas. Apenas a Graziana, no outro lado da estrada, lhe acenou e lhe fez um gesto de felicidades, com a mão no coração. Não lhe tinha revelado, nem a ninguém, a sua intenção de partir, e muito menos a decisão de o fazer neste final de Setembro de 1965, dia 29, data que no início do ano a senhora Gertrudinhas marcara no Almanaque de Santa Zita, assinalando o seu aniversário. Era uma forma diferente de celebrar os seus dezassete anos. Mas à Graziana não lhe escapou a sua intenção.

O seu passado era para esquecer. A sua mãe agonizara no hospital da Misericórdia, para onde a levaram. O pai partira para as franças e despediu-se num postal ilustrado com “esquece-me para sempre que eu não volto” e a mãe encolhera os ombros quando lhe entregaram o correio. Murmurando um “maganão” entre dentes abraçou-se a ela suspirando, talvez com alívio “Já sabes que somos só a gente”. Era finalmente uma mulher livre, mas a sua liberdade durou tão pouco. Ao cabo de meio ano foi encontrada caída e inconsciente na margem da ribeira, à Ponte Pedra, sobre o caixote da roupa que se preparava para lavar. Acudiram-lhe outras lavadeiras mas a partir daí nunca mais foi gente. Que tinha sido uma trombose, braço e perna mortos, e nunca mais recuperou o tino. Livre do marido, ficava agora talvez, com liberdade acrescida, ao deixar este mundo onde tão castigada tinha sido.

Vitoriana procurava também a sua liberdade. Libertar-se da maldade da tia-madrinha, que assim que a mãe adoeceu a pusera como criada de casa e das filhas, umas inúteis preguiçosas e más. Não queria voltar para o canto da despensa, onde a esperava a escuridão, o mofo da enxerga velha, as alpergatas de sola de corda fosse Verão ou Inverno.

Tinha-lhe valido a boa alma da senhora Gertrudinhas que, conhecendo as suas necessidades e os maus tratos a que era sujeita, conseguiu levá-la para sua casa a troco dalgumas notas para a tronga da tia, responsabilizando-se pela roupa e comida. Até então, aos doze anos, fora a melhor coisa que lhe acontecera. A senhora Gertrudinhas precisava mais da sua companhia do que de outros serviços.

Esteve com ela três anos que passaram tão depressa. Até que a senhora dera uma queda e o filho a levou para Faro. Mas o sol põe-se todos os dias… e deu-lhe um mês para deixar a casa. Mas sair para onde? De novo para a casa da bruxa da sua tia? Não. Nunca mais. Mesmo que a Guarda a obrigasse, haveria sempre de fugir. Portanto, era o tempo de cortar com essa vivência e arrumar a sua história num rol para esquecimento.

Começava assim uma nova vida, na camioneta dos Belos a caminho de Lisboa. Esta Quarta-feira era o dia de cortar com o passado, assim lhe ajudasse o Santo Antoninho, graças a Deus.

Uma apitadela e um solavanco marcaram o momento do arranque. Alguns que ainda estavam de pé sentaram-se rapidamente. A camioneta fez a curva, — um último olhar para a tabuleta assinalando Lisboa a 238 Km —, rodou na ponte sobre a ribeira e lançou-se pela estrada da várzea, ou melhor, pela estrada de Lisboa. Ia nervosa com a aventura… as suas únicas saídas da vila tinham sido até Lagos, e sabia que Lisboa, a capital, não tinha nada a ver com a cidade algarvia. A Graziana, que visitava quase diariamente na Central dos Despachos, é que lhe dera as informações com que foi alinhavando o seu plano secreto, quando em conversas triviais lhe punha as suas dúvidas “A última paragem da camioneta não tem nada que enganar: é mesmo ao lado do embarque no vapor; e depois são só três quartos de hora até chegar ao Terreiro do Paço”.

No Rogil entraram três rapazes, despedindo-se das famílias com alarido, acenavam para a rua à medida que se deslocavam até ao fundo da camioneta. Atiraram-se para o banco traseiro, brincando uns com os outros. Não lhe tocaram sequer, mas sentiu-se incomodada. Além disso as caras não lhe eram estranhas. Talvez das festas da Senhora D’Alva ou talvez da escola, pois havia moços da Charneca que iam à escola da vila. Sim, devia ser da escola. Não se aquietaram antes de Odeceixe. A camioneta parara e havia sempre movimento de passageiros pelo que eles aproveitaram para sair. Pediram-lhe que desse um olho nas coisas que deixaram a marcar os lugares. E ficou a vê-los na taberna a bebericarem uns copinhos de anis. Continuou ela a vaguear pelo seu plano, extraído direitinho de “Uma Vida Nova”, um folhetim que ela lia e relia para a senhora Gertrudinhas, rindo-se ou comovendo-se, consoante, tsche, tsche...

Foi sobressaltada com o regresso dos rapazes. “Brigado” murmurou-lhe um enquanto se sentava, desta vez com maneiras e mais próximo dela.

Deu-lhe um toque de cotovelo e perguntou-lhe – Conheço-te da escola, não é verdade? Andámos juntos com a menina Zabelinha, não te lembras?

Ela acenou apenas, afirmativamente. Já se tinha lembrado dele.

— Eu sou o Agostinho. E Tu? Ana? Não, qualquer coisa a acabar em ana, não é? És a Viviana, do cerro do Forte.

— Não. Vitoriana. Sou a Vitoriana, — respondeu, sem desviar o olhar, rematando a conversa desejosa de retomar a solidão dos seus pensamentos... Não estava disposta a grandes revelações, nem sequer ia permitir a este Agostinho, um paspalhão que lhe aparecera de repente, nem a quem quer que fosse, lhe entrasse pela alma a dentro.

 

Praia de Buarcos, Nov 2021


CASAS NO FORTE - Folhetim (4)

 

4. Já bateu!

 Francisco tinha estado a almoçar na Vila do Bispo com o Joaquim Marreiros, seu velho amigo e colega de faculdade, com quem se encontrava sempre que vinha até Aljezur. Invariavelmente atacavam uns percebes e terminavam com uma massinha de peixe, comida leve porque era preciso manter a forma. Aqueles almoços eram sempre um acontecimento, cabendo ao Joaquim a escolha do peixe a confeccionar com a massa, especialidade da casa, caprichada pela Tia Arminda. Reviviam episódios dos tempos de estudantes e também de trabalho, pois ambos tinham entrado para o Ministério dos Negócios Estrangeiros no mesmo dia. Joaquim saíra mais cedo e tinha-se estabelecido na sua terra natal como advogado e solicitador, enquanto Francisco se tinha transferido para o corpo das embaixadas e sido colocado em Paris.

Apressaram o café e a continha que dividiram, hábito que lhes ficara de tempos mais magros. Despediram-se com um abraço e um “até qualquer dia”.

Eram duas e um quarto da tarde; Francisco tinha de estar no notário em Aljezur para uma escritura marcada para as quatro. Estava com tempo.

Pôs-se a caminho no seu jipe UMM, carro que mantinha em boa forma, apesar dos muitos quilómetros já percorridos. O pouco conforto era compensado pelo prazer de circular em todo o terreno. Quase sem dar por isso, já a Carrapateira lhe aparecia a seguir à curva. Faltavam cerca de vinte quilómetros para a vila. Era um sítio simpático este, e sempre que por ali passava vinham-lhe à memória as férias dos seus oito e nove anos. Uns dias inesquecíveis em casa dos tios, sempre disponíveis para o receber, tanto quanto a sua mãe o autorizava a ir. Quando um dos tios aparecia na vila, pedia-lhe que o levasse… para a casa do outro! O “programa” era sempre aliciante, fosse em que casa fosse. No tio da aldeia, era frequente o levantar de manhã cedo, consoante a maré, para ir à Praia do Amado fisgar uns linguados na rebentação.

Noutras ocasiões ficava no Casal do Bem Formoso, mais conhecido por À dos Torres, propriedade dos outros tios. Lá as actividades eram diferentes, cavalgar a mula em pelo — só com uma saca pelo lombo —, ou dar comida aos bacorinhos e à criação, regar o milho e ainda abanhar no tanque de regas.

Divagando com ia, já a Bordeira ficara para trás. Nas curvas da subida, estavam meia dúzia de carros parados atrás de um camião carregado de cortiça. A carga precisava de ser aconchegada porque as cordas tinham afrouxado. Cautelosamente os carros iam à vez ultrapassando o camião. À sua frente estava um velho Mercedes 180 que arrancou lentamente com uma fumaceira negra. A vinda de outro carro em sentido contrário fê-lo suspender a ultrapassagem e recuar para o ponto donde arrancara. O condutor não conseguiu controlar a manobra e acabou por bater com a traseira na frente do UMM.

— Já bateu! — Exclamou o Francisco, mais interiormente do que em voz alta.

O jipe estava equipado com um guincho pelo que o embate, justamente no gancho, fez saltar a tampa da mala do Mercedes que lentamente se entreabriu, deixando ver o conteúdo: um carregamento de pacotes de cigarros Marlboro. O condutor do Mercedes, baixinho e barrigudo, apressou-se num saltinho para baixar a tampa da mala, mas esta não se prendia. Não conseguindo evitar a revelação da suspeitosa carga, gritou ao seu acompanhante que lhe trouxesse um cobertor do banco traseiro e com ele tapou atabalhoadamente a mercadoria.

— Vai lá ao camião pedir uma corda. — Gritou para o seu acompanhante; e para o Francisco: — O senhor já viu bem o que fez? Se tivesse mantido a distância nada disto tinha acontecido.

— Desculpe lá, mas eu estive sempre parado. O senhor é que recuou para cima de mim. Portanto, não me venha com essa conversa.

Entretanto pararam duas motorizadas. Os dois homens cumprimentaram os outros dois, perguntando se havia azar e se era preciso alguma coisa que eles até tinham visto tudo.

— Não é preciso nada, isto resolve-se já. Tou com pressa; tenho pessoal à espera na vila.

— E eu tenho uma escritura em Aljezur daqui a meia hora… — impacientava-se o Francisco.

O do Mercedes percebendo que ao Francisco também lhe interessava sair da situação rapidamente, propôs-lhe encontrarem-se no Primavera ao fim da tarde.

Anotaram-se nomes e matrículas e assim fizeram um intervalo no problema.

*

A papelada estava toda em ordem e a escritura resolveu-se rapidamente. Conhecia o vendedor desde sempre, João Maria, filho da Ti Amélia, e acabaram no Primavera para fechar a transacção com uma cerveja.

Bebericavam e conversavam até que , à porta apareceu o do Mercedes.

— Ah! Já cá está! – E dirigindo-se ao João Maria, — e tu, conheces este senhor! Sabes que ele me amachucou o carro?

— Espere lá! Eu estava parado e o senhor é que recuou para cima de mim. Pensei que isso tinha ficado claro.

O do Mercedes sentou-se à mesa, sem cerimónia, e pediu uma Sagres.

— Conheço este senhor, e tu também. Andámos juntos na escola. Não te lembras do Chico Marujinho?

— O Chico Marujinho?! — Surpreendeu-se o do Mercedes. — Eh pá! Estás tão diferente, e a barba…

— E tu, quem és? José Moreira — recordando a anotação — não me lembro.

— Pois calculo que não, que não te lembres. Morava aqui, no Degoladoiro… — Apontou para a colina; e passando o lenço de mão pela cabeça lisa, acrescentou em desabafo que, noutro tempo, tinha mais cabelo. Zé da Moleira.

— Ah, sim, olhando-te melhor… O Zé da Moleira!

Na estrada tinha-lhe ficado aquela impressão que, mais cedo ou mais tarde, nos invade a todos. “Parece-me uma cara conhecida. De onde é que o conheço? Será da tropa?”

— Sim, sem dúvida. Imaginando-te naquele tempo. Então o que fazes agora, moras por cá?

— Olha, cá e lá! Tenho por aqui uns frigoríficos e compro percebes e lagostas para umas cervejarias de Lisboa.

— E quanto ao toque no carro? Estive a ver o teu jipe e não se nota nada! O que ficou pior foi o meu Mercedes que tenho de mandar arranjar.

— Mas foi um acidente? Como? — O João Maria esperando pormenores.

Ao que o Zé da Moleira respondeu: “Foi aqui o Chico que me deu cabo do fecho da mala”.

— Outra vez! — Interrompeu o Chico. — Eu estava parado. Se quiseres fazer a Participação Amigável, faz-se.

— Eh! Deixa, ficamos assim. Cada um paga o seu e pronto. — E aproximando-se do ouvido do Chico — E tu também não viste nada, não é? Quero dizer, não tiveste tempo de ver nada.

— Tu viste que eu vi e eu sei bem o que vi. Portanto…— Chico, encolhendo os ombros, mas querendo deixar claro que a situação poderia trazer complicações para o outro.

O João Maria virava a cabeça ora para um ora para o outro, sem perceber bem o que se estava a passar.

— Bem… Então ficamos quites ou não? Olha, gostei de te voltar a ver. Pagas a minha cerveja. Vou à minha vida.

Chico viu com alívio o afastamento da melga do Zé da Moleira. “Ficamos quites!”. Lata não lhe faltava. Por ele estava bem. Acabava-se de vez com aquele assunto que até se podia complicar… para o “exportador de marisco”, claro. No entanto não quis fazer grandes adiantamentos ao João.

— Queres mais uma? Ah não? Então vamos andando? Olha, arranja-me lá os contactos desses amigos, pode ser que me façam a obra.

Praia de Buarcos, OUT 2021 

CASAS NO FORTE - Folhetim (3)

 


3. Da Zimbreirinha à Praia da Fortaleza 

O sol ia-se aproximando da linha do horizonte, pintando à superfície das águas a longa estrada que em sonhos nos levaria até ele, senhor da luz… e do seu contrário, já que as trevas só existem quando ele adormece. A estrada dourada morria na praia. Esta, por sua vez, não era mais do que uma estreita faixa de areia estendendo-se entre os rochedos que entrando pelo mar, fechavam a baía, ornada a sul pela sentinela gigante que é a Pedra da Agulha. Do cimo da falésia, dominava-se toda aquela imensidade de água verde-azulada que acariciava a areia e beijava as rochas com uma doçura pueril. Pela encosta abaixo ficavam os casebres disformes dos pescadores; casas que haviam primeiramente sido construídas de braceja seca, colhida no barranco que, em tempos de invernia, corria para a praia do Monte Clérigo. Posteriormente, à custa de muito esforço e ajudas, foram lentamente levantadas as paredes, tabiques de barro e pedras, um tipo de taipa mais estreita e rudimentar. Desprezavam qualquer embelezamento e até alinhamento com casas vizinhas e distribuíam-se em socalcos que os pescadores foram escavando e murando, transformando veredas em dois metros de rua.

As crianças, poucas, costumavam brincar na praia. Corpos nus, inocentes, rebolavam-se na areia e na espuma da babugem; os mais crescidotes já desafiando o mar, cortavam as ondas com agilidade. Depressa adquiriram a destreza que lhes viria a ser indispensável quando, maiorzinhos, integrassem a companha do bote familiar. Exibiam a sua pele escura, curtida pelo sol e pelo salitre, mais vezes molhada com água salgada do que com água doce, tão escassa e trabalhosa.

Os homens trabalhavam de dia ou de noite, conforme as marés e o tempo. Firmes mesmo quando o mar os fazia dançar, deitavam as redes ou os aparelhos presos a bocados de cortiça amarrados uns aos outros, com uma cana que às vezes tinha um trapo colorido para ajudar a localização e a propriedade, honestamente respeitadas.

As mulheres, na sua maioria, ocupavam-se das casas e da família. Tinham a seu cargo preparar as refeições, incluindo o farnel, e o abastecimento da água, recolhida em enfusa na rocha-sul. Era sua a responsabilidade por escalar e secar para conserva as moreias, os polvos, as lulas e as arraias.

Os mais velhos, quando já não iam ao mar, ajudavam na feitura e no conserto das redes, ou empatando os anzóis nos terminais da sedela para a preparação dos aparelhos.

A vida era monótona na Fortaleza. Meia dúzia de casebres para uma dúzia de famílias. Muitos gatos e muitas galinhas e, numa zona mais afastada, a fila de pocilgos onde algumas das famílias criavam o seu cevão para o Inverno. Havia também a venda do Vítaro, que afectara ao negócio a cabana que tinha sido do burro, mobilando-a com dois bancos junto à parede e um tosco balcão de tábuas que o mar lhe trouxera. O Vítaro teve de deixar o mar quando naufragou durante um temporal. Era um homem muito precavido e quando o mar ficou mais agitado enrolou à volta da barriga um largo cinturão que tinha preparado com cordas e bocados de cortiça. Naufragou e foi um milagre o seu salvamento. O mar foi depositá-lo, inconsciente, na Boca da Barra, levando-o pelo rio acima até aos Salgados onde foi recolhido pelo lavrador do Bertual. Com um ombro escangalhado nunca mais recuperou a força no braço, nem voltou à faina.

Pouco antes, no ano de 1840, ali desembarcou o Manuel Francisco, também conhecido por Manel Carrapato. Natural da Carrapateira dedicava-se à pesca no portinho da Zimbreirinha, num bote a meias com o seu irmão. Em dia de mar cão, não conseguiram controlar o bote e este despedaçou-se contra o rochedo. O irmão morreu e ele ficou por lá, sem barco nem trabalho. Os da Fortaleza passavam pela Zimbreirinha de vez em quando e um dia em que ajudou o Vítaro com os covos, seguiu com ele e mudou o poiso, mendigando a subsistência em troca de pequenos trabalhos. Acabou por ser a ajuda do Vítaro quando este ficou incapacitado: habilidoso de mãos foi ele quem lhe preparou uma nova cabana para o burro e lhe amanhou os bancos e o balcão para abrir a venda. Era com a sua força que o taberneiro contava e acompanhava-o nas suas deslocações semanais à Azia, para ajudar a carregar o burro: dois barris de 50 litros de vinho tinto e branco e mais dois pequenos com a medronheira.

Com estas práticas acabou por propor ao amigo uma sociedade: o Vítaro entrava com o burro e ele garantiria o abastecimento do vinho, ao mesmo tempo que levava peixe para vender na vila e se encarregava de outros mandados.

Saía de madrugada para chegar à vila ainda manhã cedo. Fazia uma paragem no Monte dos Vales, como toda a gente que por ali passasse, para uma sede de água, desta que tinha fama e que tirava do poço com o caldeiro de folha que partilhava com o burrico. A sua venda começava ali. A patroa ou a filha, a Ana Rosa de olhar doce, esperavam já por ele para um gudião ou um safio para as batatas de caldo.

Fosse qual fosse o tempo, chuva ou sol, com uma saca enfiada pela cabeça ou apenas com um gorro, seguia pelas veredas até à encosta do Castelo e descia pelo rua do Degoladoiro. Levava consigo um grande búzio que tocava a anunciar a sua chegada.

— Mest’e Manel, o qué que traz hoje? O mê home só me pede moreia. Arranje lá uma.

Praia de Buarcos, Abr2021