No fim da ladeira do Vale da Maia o caminho da Fortaleza
entroncava no caminho de Lagos. Este, de maior importância, estava em melhores
condições e o carro já não solavancava tanto. No entanto ambos continuaram
ocupando a mesma posição na tábua atravessada que fazia de banco, tocando-se ao
de leve, ele vigiando o animal, ela com atenção ao pai que entretanto parecia
ter adormecido.
— M’na Ana Rosa, tá gostando da viaja? — Manel arriscava.
— Meste Manel, tou sâ senhora, já há munte
tempe qu’ê na saía do monte. Mas tenhe muntes cuidades com o mê pai.
S’ele fecasse bom, ai s’ele fecasse bom…
Ana Rosa estava a ficar ansiosa, e não era apenas pela
expectativa relativamente ao pai, era também pela presença do Manel. Sentia que
havia qualquer coisa que ele lhe queria comunicar, sensibilizá-la, e receava o
que fosse. Não por medo, mas porque, intimamente, também esperava que sim, que
alguma coisa acontecesse. Já por mais de uma vez ele lhe aparecia nos seus
sonhos, perturbando-lhe o sono o que lhe marcava olheiras profundas, que à mãe
não passavam despercebidas. “Ana Rosa, Ana Rosa, qu’olhêras som essas?”
“Tou dormindo mal, minha mãe, à noite faço um chazinho de bela-luísa”, “Fazes
bem…”.
Na venda à beira do caminho perguntaram pela benzedeira.
“Além, naquela curva, sai uma vereda à direita. Vão por ela e chegarão lá.”
*
— N’hora Zabel! N’hora Zabel! — Chamou o Manel, batendo as
palmas.
— Lá vou, lá vou. — A resposta veio do fundo da casa,
anunciando um homem de grande estatura que apareceu com uma tenaz na mão; era o
Simplício. — Qu’é que se passa?
— Temos aqui o meu pai com umas grandes dores nas cruzes que
mal se mexe. — Ana Rosa explicou. — A gente vem da Costa do Mar, dó pé da
Fortaleza.
O Simplício foi buscar uma cadeira que pousou junto à
traseira do carro e mandou sentá-lo nela para se transportar para dentro de
casa, “…que aqui, à luz do dia, nada se faz.”
— Vá lá, um, doje e três, força! — Os dois homens
levaram o meste Zé para dentro. — Vossemecês ficam lá fora. Isto agora é
comigo e mais a minha Zabel.
Manel libertou a mula do carro, deu-lhe de beber e
enfiou-lhe uma cevadeira para a manter entretida. Sentou-se no bordo do poço e
a Ana Rosa a seu lado.
— O qu’é que sará qu’eles vom fazer ó mê pai?
— M’na Ana Rosa teja sessegada! Ele vai sair de lá
como novo!
Ana Rosa deixou escapar uma lágrima pela face e ele
condoeu-se. Ela precisava de apoio. Manel aproximou-se dela e, com o seu
polegar, limpou-lhe a lágrima. Ela recuou bruscamente. Ambos pensaram que podia
aquele gesto ser um abuso de confiança. Ele, que desculpasse; ela, que não
tinha dúvida. Ele, que não chorasse; ela fungando, que não conseguia. Ele
experimentando o seu braço no ombro dela; ela consentindo. Ele dando palmadinhas;
ela ainda a consentir. Ele chegando-se mais; ela sem se mexer. Ele puxando-a;
ela, deixando-se ir.
— Nhor Manel, atão qu’é isso? — Mas sem se afastar.
— M’na Ana é o coração…
Olhou-a fixamente, procurando-lhe um olhar de aquiescência,
mas ela, cheia de rubor, baixou os olhos.
— É o meu coração. Vomecê sabe qu’eu vivo num
casinhoto de empréstimo do Vitorino e comemos juntos. Preciso de dar uma volta
na minha vida, preciso de companhia. O sê pai precisa de ajuda. Quer dizer, a
sua famila precisa dum par de braços e eu tou aqui. E eu, eu preciso
duma famila minha. A gente, eu e menina, dá-se bem, a gente podia-se
entender. Diga-me lá…
— Oh! Nhor Manel. — Ana Rosa ainda mais corada. — Nã
esperava nada…
— O home tá pronte! — Gritou o Simplício da
entrada da casa, na pior altura.
— Ai, se nã fosse ele! — Resmungou o Manel,
silenciosamente. — Se nã fosse ele inda lhe dava um beijo e ficava o
caso arrumado.
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