domingo, agosto 07, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (6)


 ANA ROSA DOS VALES


Aos primeiros sinais da alva o Manel Carrapato já estava nos Vales. Tratou de prender o burro numa parte do terreno para pasto e aparelhou a mula ao carro. Pouco depois apareceu a Ana Rosa amparando o pai. Concluíram que o meste Zé ia melhor deitado, que sofria menos com os saltos das rodas no caminho irregular. Ambos ajudaram o homem a subir para a caixa de carga onde se estendeu sobre umas sacas e com um travesseiro. Puseram-se a caminho, devagar, Manel, sentado no varal quase encostado ao animal, contendo a vivacidade da mula. Ana Rosa sentada no banco à frente, virada para trás, vigiava o pai ajeitando-o de vez em quando para que se mantivesse mais confortável. Na grande descida, Manel passou para o banco para controlar a travagem. Era o mais perto que já alguma vez estivera da Ana Rosa. Ela ainda virada para trás. Num solavanco foi inevitável um toque, ao de leve, mascarado de ocasional. Ele diz “desculpe” e ela corando de novo “meste Manel” e o pai, “ó home, nâ me deixe cair a moça” e ele de novo “ê cá tomo conta, meste Zé”. Esta parte do caminho estava em muito mau estado pelo efeito das chuvas que lavravam grandes regos cheios de rabolos. A cena repetiu-se. Desta vez o solavanco provocou um ressalto na Ana que, assustada, se agarrou ao braço do Manel, que ele reforçou com a sua mão sobre a dela. Foram escassos segundos até ela retirar a sua. Manel sentia que a viagem estava a aproximá-los e era preciso manter uma atitude respeitosa, mas de proximidade e não de afastamento.

No fim da ladeira do Vale da Maia o caminho da Fortaleza entroncava no caminho de Lagos. Este, de maior importância, estava em melhores condições e o carro já não solavancava tanto. No entanto ambos continuaram ocupando a mesma posição na tábua atravessada que fazia de banco, tocando-se ao de leve, ele vigiando o animal, ela com atenção ao pai que entretanto parecia ter adormecido.

— M’na Ana Rosa, tá gostando da viaja? — Manel arriscava.

Meste Manel, tou sâ senhora, já há munte tempe qu’ê na saía do monte. Mas tenhe muntes cuidades com o mê pai. S’ele fecasse bom, ai s’ele fecasse bom…

Ana Rosa estava a ficar ansiosa, e não era apenas pela expectativa relativamente ao pai, era também pela presença do Manel. Sentia que havia qualquer coisa que ele lhe queria comunicar, sensibilizá-la, e receava o que fosse. Não por medo, mas porque, intimamente, também esperava que sim, que alguma coisa acontecesse. Já por mais de uma vez ele lhe aparecia nos seus sonhos, perturbando-lhe o sono o que lhe marcava olheiras profundas, que à mãe não passavam despercebidas. “Ana Rosa, Ana Rosa, qu’olhêras som essas?” “Tou dormindo mal, minha mãe, à noite faço um chazinho de bela-luísa”, “Fazes bem…”.

Na venda à beira do caminho perguntaram pela benzedeira. “Além, naquela curva, sai uma vereda à direita. Vão por ela e chegarão lá.”

*

— N’hora Zabel! N’hora Zabel! — Chamou o Manel, batendo as palmas.

— Lá vou, lá vou. — A resposta veio do fundo da casa, anunciando um homem de grande estatura que apareceu com uma tenaz na mão; era o Simplício. — Qu’é que se passa?

— Temos aqui o meu pai com umas grandes dores nas cruzes que mal se mexe. — Ana Rosa explicou. — A gente vem da Costa do Mar, dó pé da Fortaleza.

O Simplício foi buscar uma cadeira que pousou junto à traseira do carro e mandou sentá-lo nela para se transportar para dentro de casa, “…que aqui, à luz do dia, nada se faz.”

— Vá lá, um, doje e três, força! — Os dois homens levaram o meste Zé para dentro. — Vossemecês ficam lá fora. Isto agora é comigo e mais a minha Zabel.

Manel libertou a mula do carro, deu-lhe de beber e enfiou-lhe uma cevadeira para a manter entretida. Sentou-se no bordo do poço e a Ana Rosa a seu lado.

— O qu’é que sará qu’eles vom fazer ó mê pai?

— M’na Ana Rosa teja sessegada! Ele vai sair de lá como novo!

Ana Rosa deixou escapar uma lágrima pela face e ele condoeu-se. Ela precisava de apoio. Manel aproximou-se dela e, com o seu polegar, limpou-lhe a lágrima. Ela recuou bruscamente. Ambos pensaram que podia aquele gesto ser um abuso de confiança. Ele, que desculpasse; ela, que não tinha dúvida. Ele, que não chorasse; ela fungando, que não conseguia. Ele experimentando o seu braço no ombro dela; ela consentindo. Ele dando palmadinhas; ela ainda a consentir. Ele chegando-se mais; ela sem se mexer. Ele puxando-a; ela, deixando-se ir.

— Nhor Manel, atão qu’é isso? — Mas sem se afastar.

— M’na Ana é o coração…

Olhou-a fixamente, procurando-lhe um olhar de aquiescência, mas ela, cheia de rubor, baixou os olhos.

— É o meu coração. Vomecê sabe qu’eu vivo num casinhoto de empréstimo do Vitorino e comemos juntos. Preciso de dar uma volta na minha vida, preciso de companhia. O sê pai precisa de ajuda. Quer dizer, a sua famila precisa dum par de braços e eu tou aqui. E eu, eu preciso duma famila minha. A gente, eu e menina, dá-se bem, a gente podia-se entender. Diga-me lá…

— Oh! Nhor Manel. — Ana Rosa ainda mais corada. — esperava nada…

— O home tá pronte! — Gritou o Simplício da entrada da casa, na pior altura.

— Ai, se fosse ele! — Resmungou o Manel, silenciosamente. — Se fosse ele inda lhe dava um beijo e ficava o caso arrumado.


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