domingo, agosto 07, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (8)

 Zé Marujo - Carpinteiro e Abegão


“As ondas vão e vêm num eterno vaivém”. Era o que a avó lhe costumava dizer sempre que na conversa se falasse do mar. Dizia ela e ainda é o que se diz. Mas não, ele não tinha a mesma opinião, não era verdade. As ondas vêm, só vêm, não vão. Enrolam-se sempre na mesma direcção, ou seja, do mar para a terra, para as rochas, para as praias. Verdade até quando a maré vaza. E era nesta fase da maré vazia que José Alberto dos Santos, carpinteiro e abegão, com costela de pescador da Fortaleza que lhe influenciou a alcunha de Zé Marujo, instalado nas rochas perto da água, dava banho ao seu isco. Prendia uma pedrinha furada junto ao anzol para garantir um bom arremesso e fazê-lo afundar, pois sargos à tona d´água foi coisa que nunca vira. Iscava com minhoca da pedra que apanhava no laredo e que misturava com terra grossa. Segurava-as entre os dedos da mão esquerda para lhes enfiar o anzol com a direita. Era um petisco para o peixe, mas desta vez o pexinho tava bicoso, bicava com a ponta da beiçola e limpava o anzol sem se prender. Zé Marujo precisava de levar pelo menos um sargo ou uma dourada para o jantar, como prometera à mãe. Queria alternar às couves com toucinho. Mas as esperanças estavam a perder-se e o que ele previa era um chibato daqueles.

Resolvera ir à pesca para pensar na conversa que teria de ter com mestre Jacinto sobre a oficina. Assim que saíra da escola tinha ido aprender o mister da carpintaria e abegoaria com o mestre Jacinto e tornou-se o seu braço direito. Após o mestre ter tido aquele estúpido acidente que o deixara incapacitado, ele sozinho dava conta da oficina.

Dedicou-se com todo o afinco ao trabalho. Se fosse dele gostaria de modernizar o equipamento, comprar máquinas e um motor para mecanizar a serração e o aparelhamento da madeira. Mas a oficina não era sua…

Resolvera abordar o assunto com o mestre Jacinto.

Meste Jacinto, estando como está e com a sua idade, o que pensa fazer com a sua oficina?

— Não penso grande coisa. — Respondeu-lhe o patrão. — Quero é ficar sossegado, pois se já pouco posso fazer. Se aparecer alguém…

Ficaram-lhe no ouvido estas últimas palavras. O mestre Jacinto não se importaria de vender, mas o pior era o dinheiro. Nem sabia quanto e muito menos como o obter.

Fixava os olhos na bóia, mas o seu pensamento estava na oficina.

Zé mantinha o dedo indicador na sedela esticada à espera de sentir qualquer subtil esticanito antes da cana vergar. E se sentisse… puxava. Técnica do seu pai e que funcionava bem, mas não hoje, pois se os gajos nem picavam.

Para ele chegava, decidiu-se. Estava ali já há tempo de mais. Era assim, a sorte quando vem, nem sempre bafeja toda a gente, e muito menos por igual. Neste caso, a sorte não é como as ondas do mar. Vem e… não vem... Hoje não havia peixe no Penduradoiro de Baixo.

Arrumou os seus materiais no seirão. Queria aproveitar a maré baixa para ir ao laredo apanhar uns mexilhões, ou talvez algum polvinho distraído. Se não, seriam outra vez papas ao jantar.

Tocou a mulinha pelo areão abaixo e foi prendê-la numa pequena pedra em frente às Margaridas. Nas suas alpargatas de sola de corda, depressa caminhou pelas rochas rasteiras até onde as águas batiam. Por ali não andava mais ninguém. Com o peixeiro esgravatou uma pinha de mexilhões, e logo outra e mais outra. Que belos! Grandes e recheados! Num instante ficou com o seirão quase cheio, já bastavam. Ainda procurou numas frestas das rochas com o gancho do seu peixeiro, mas nem o trapinho branco os atraía nem os polvos estavam com disposição para o tacho. Não há peixe, não há polvo, mas vai haver uma arrozada de mexilhão que até já lhe fazia crescer água na boca. A sua mãe era uma artista na cozinha, tudo o que fazia lhe saía bem e então com uma copada daquele vinho que trouxe dos Vales em paga do conserto da janela. Regressou à praia e preparou a sua navalha para limpar as conchas. Era uma bela apanha.

Carregou o seirão num dos lados da gorpelha, prendeu o peixeiro no outro lado, junto à cana, e caminharam pela areia direito à ribeira do Monte Clérigo por mor da mula beber. O animal bebeu demoradamente e deixou de lhe cobiçar o barrilinho de barro.

A seguir marchou pela ribeira acima. Olhou a inclinação do sol, e pensou que chegaria à vila antes do fim do dia.

Não se enganara, mas já caía o sereno quando deixou a mula na cavalariça. A mãe assomou ao postigo e perguntou-lhe se trazia peixe para o jantar.

— Não ‘nha mãe trouxe mexilhões. Já estão raspados e prontos a saltar para o tacho do arroz.

Em pouco tempo já estava na mesa. A mãe ainda trabalhara na Casa Grande satisfazendo o fino paladar dos patrões e das muitas visitas, e por lá se manteve até à morte da senhora. Desde então remeteu-se à sua própria casa e, depois da morte do pai, dedicou-se completamente ao filho que ia agora nos seus vinte e dois. Ele cedo assumira o papel do homem da casa. Nada faltava. O rapaz era trabalhador e habilidoso.

Um dos filhos da Casa Grande, tenente do exército, intercedeu por ele e ficou isento do serviço militar alegando ser amparo de mãe, o que até era verdade.

Naquela noite, depois de despachada a arrozada de mexilhão, Zé Marujo partilhou com a mãe a sua ambição e a angústia que isso lhe fazia. Toda a tarde na rocha e no laredo não pensou noutra coisa. Fora à pesca para pensar e não concluiu nada.

— ‘Nha mãe, qu’é qu’eu faço? Não posso perder a oficina… E se for outra pessoa a comprar e eu ficar de fora?

— Amanhã é Segunda, é um bom dia para começar coisas. Fala com o meste Jacinto. Pergunta-lhe qual a ideia dele. Propõe-lhe pagares uma renda.

— Como se fosse uma courela onde um homem tem de largar a pele para pagar as meias!

— Mas é para começares, e depois logo vês! Quem sabe ele esteja de acordo. Não deixa de ser o dono e receberá uma paga, sem trabalhar. Tens de ser cauteloso, fazeres contas. Sabes quanto a casa cobra… oferece-lhe a terça parte.

Saiu e passou ainda na venda do Largo da Ponte e bebericou um copinho de aguardente. O Ti João preparava-se para fechar e já não estava ninguém para conversar. Era áspera a medronheira e arrepiou-se. O homem disse-lhe, como a inspirar-lhe confiança, que viera do Mourão, e que até o Presidente Carmona a tinha bebido aquando da eleição em Fevereiro, mas o Zé não estava disposto a repetir a dose. Despediu-se e pôs-se rua acima. Amanhã era Segunda-Feira, dia de começar coisas como dissera a mãe, e o Carmona não havia de perceber grande coisa destas bebidas dos alambiques da serra.

 


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