9.
Paris, Paris!
Ia adiantada a Primavera em Paris naquele ano de 1994;
a canícula já batia nos 27 e podiam-se ver alguns franceses mais acalorados a
tomarem banhos de sol pelos parques da cidade, com destaque para os Jardins das
Tulherias e do Luxemburgo, ou ainda nas margens do Sena.
No seu intervalo para almoçar, Francisco juntara-se ao
seu amigo Édouard Henri na esplanada do Café des Phares, na Praça da Bastilha.
Debicavam sem pressa as salades niçoises, enquanto discutiam o trabalho
sobre a língua portuguesa que Édouard preparava para a apresentação na aula de
Português que frequentava na Sorbonne.
Estava animada a conversa quando tocou o telemóvel de
Francisco. Retirou-o da bolsa de cintura. Era a Alice.
— Alô querida Alice! Ça va?
— Alô Chico, estou em crise. Preciso da tua ajuda para
um problema da minha amiga de Lisboa, a Teresa. Estamos junto à Nôtre Damme e
roubaram-lhe a carteira com os documentos; lembrei-me que talvez tu…
— Ok! Eu estou no Café des Phares, na Bastilha e ainda
demoro uns minutos. E se vocês viessem até cá? Tomaríamos um refresco. Apanhem
um táxi, d’accord?
Desligou com um à
bientôt e voltou a dar atenção a Édou. Comentou o texto, a descendência do
Latim, como o Francês, alguns vocábulos semelhantes e algumas declinações
verbais. Recomendou que não deixasse de referir o Galego e o Galaico-Português.
Não era uma especialidade sua, mas no seu curso ainda teve de se confrontar com
o Latim em que, afinal, até fora muito bom aluno, e adorava a linguística.
— Acho que ficará melhor se desenvolveres um pouco
mais estas questões — e apontou as frases já sublinhadas — e se incluíres um ou
outro poema do Cancioneiro de Garcia de Resende, do século XVI, ou de três
séculos antes, uma das Cantigas de Amigo de D. Dinis? “Ai Deus, e u é?”
— Achas que ficará bem? Os outros colegas vão incidir
mais sobre Camões: a biografia, a lírica, os Lusíadas.
— Então e tu avanças com um estudo anterior ao
Renascimento, — aconselhou Chico. — Acabas por apresentar uma língua bastante
diferente da de Camões e, por maioria de razão, da actual. É um desafio, n’est ce pas?
— Et bien,
se mais ninguém atacar este tema, ainda sou capaz de tirar uma boa nota!
— Claro! Sûrement
si j'étais ton profe…
Édou arrumou os papéis e despediram-se com um “tchau”,
quando as três raparigas se aproximaram. Francisco e a Alice beijaram-se à moda
dos franceses, com três beijos.
— Esta é a minha amiga Maria Teresa, e a sua colega…
— Enchanté!
— Disse para a Maria Teresa, trocando dois beijos.
Em seguida olhou fixamente para a colega
cujo nome tinha ficado em suspenso. Havia qualquer coisa de familiar naquela
cara. Os olhos e o modo de olhar… Os óculos de sol e um penteado à Mireille
Mathieu não lhe transformavam suficientemente o rosto, o ar. A comissura dos
lábios, o nariz inconfundível, ligeiramente adunco… Mas que coincidência! A
parte do seu cérebro que se ocupava das coisas antigas executava um varrimento
de conteúdos à mais alta velocidade. Será caso?
— Peço desculpa, mas não entendi bem o
seu nome.
— Então! É a Vi…
— Sim, Vi. Os amigos costumam tratar-me
assim. Mas na verdade o meu nome é…
— Vitoriana! — Atalhou Francisco para
surpresa delas. — Vi, Vivi, Vita apenas para alguns.
— Ah! Mas que graça! Afinal conhecem-se!
— Exclamou a Maria Alice.
Vitoriana ainda mais surpreendida,
retirou os óculos revelando os olhos lindos e as sobrancelhas bem delineadas:
“Desculpe, mas não estou a reconhecê-lo. Ora ajude-me lá.”
— Claro! É a coisa mais natural, há
tantos anos… é a barba, faz-me parecer muito diferente. — Francisco, saboreando
o momento com imensa satisfação.
— Hum… Não, não estou a ver. — Sorria. Já
lhe parecera, mas não queria arriscar, desejava mais pistas.
— Imagina-me assim, de cara limpa. Ou
melhor, vê a foto no meu BI. — Retirou o cartão da carteira e mostrou-lho,
tapando o nome.
Ela olhou para o cartão e começou a
corar. Continuava a evidenciar esse rubor sempre que se sentia surpreendida ou
apanhada em falta, desde a infância.
— Chico?! Não posso acreditar! —
Murmurou. — És mesmo tu?! — Caíram nos braços um do outro e assim ficaram num
demorado abraço, perante a surpresa das duas amigas.
— Oh! Chico, que felicidade! Aqui, num
sítio tão distante! — Vitoriana, ainda tremendo e muito corada, iniciava uma explicação,
mas ambos acabaram por a proferir ao mesmo tempo.
— Somos amigos de infância!
— Tantos anos sem saber nada de ti…
estás linda, aliás, estás ainda mais bonita!
— Pára de me envergonhar, por qualquer coisa
continuo a ficar vermelha.
— Oh! Que saudades! Temos muito que
falar, que recordar... Mais tarde? — E voltando-se para a Alice, — qu'est-ce qu'il y a? Oh! Desculpem lá, é
o hábito, então qual é a aflição?
— Como te disse, roubaram a carteira da Teresa.
— É grande o prejuízo?
— Algum dinheiro, mas isso é o menos.
Grave é terem-lhe levado o Bilhete de Identidade e elas têm o regresso marcado
para amanhã ao fim do dia.
— E cartões de crédito?
— Felizmente mantinha-os à parte, numa
carteira sob a blusa. — Explicou a Teresa.
— Bem. Não deve ser difícil recuperar o
BI. Estes carteiristas pretendem sobretudo valores, o mais provável é colocarem
o que não lhes interessa num marco dos PTT.
Parou um pouco, tornando a fixar os
olhos da Vitoriana, o que lhe provocou novo rubor. Anunciou que tinha de
regressar à embaixada, que estava na sua hora do almoço e tinha compromissos de
tarde. Iria fazer uns contactos para a Police Nationale. Pediu os elementos de
identificação à Teresa.
— Dá-me todos os teus dados e o número
do BI, se te lembrares. E uma fotografia é fundamental.
— Fotografia… como vou arranjar uma?
Onde haverá um fotógrafo?
— Tens de ir a uma máquina PhotoMaton…
em qualquer estação du Métro. —
Ajudava a Maria Alice.
— Sairei da embaixada perto das cinco da
tarde. Entrarei em contacto com a Alice para nos encontramos à noite. Podemos…
— de novo o seu olhar preso na Vitoriana — jantar juntos?
Ela disse que sim com naturalidade, mas
interiormente pensava até num grande e repetido sim, sim. E de novo corou.
As outras anuíram. Despediram-se com um a tout a l'heur, quer dizer, até logo!
Em Praia de Buarcos, 2022
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