sábado, outubro 22, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (10)

 

10. Agostinho – Fuzileiro


Aquele Domingo tinha sido a sua despedida da vida civil. A caminhada até à Avenida de Roma e o regresso servira de verdadeiro tranquilizante e cedo adormeceu, confiante no hábito madrugador da tia.

Na manhã seguinte, ou melhor, na madrugada seguinte, levantou-se às seis horas, ainda antes da tia o acordar. Despachou-se depressa, higiene tratada e barba feita, pouca barba, mas enfim, a cara foi devidamente escanhoada. Agarrou o seu pequeno saco com o indispensável e saiu. Antes de começar a descer a escada voltou atrás para um beijo à tia.

Apanhou o eléctrico, quase vazio àquela hora. Já sabia que aquela carreira ia passar na Rua da Conceição, onde devia sair e caminhar para a Doca da Marinha. Era perto e em dez minutos chegou ao portão. Não viu campainha, abanou-o para anunciar a sua presença. Apareceu-lhe um marinheiro armado, com espingarda em bandoleira e baioneta no cinturão, a perguntar-lhe: “O que é que queres a esta hora, pá?”

Agostinho, um pouco intimidado, gaguejando lá explicou que se vinha apresentar como voluntário para a Marinha.

O marinheiro, percebendo a hesitação e a timidez dele, quis aproveitar para se divertir, pois ali não era ele a autoridade? portanto o outro teria que dançar com a sua música.

— E quem te disse para vires para aqui? A apresentação é no Alfeite, não é o que diz a tua guia? Ora mostra lá.

— Sim. Mas também me disseram que aqui eu posso apanhar a vedeta H para atravessar o rio, ou não?

Entretanto um Cabo saiu da casa-da-guarda e atalhou para o marinheiro.

— Estás armado em quê, pá? Então não te disseram que iam aparecer alguns candidatos à recruta para apanharem a vedeta? Verifica a guia e deixa-te de merdas.

— OK. — E para o Agostinho, entre dentes. — Tás com sorte. Entra lá e vai para além, para o pé daquele banco. É de lá que parte a vedeta.

Agostinho lá foi e sentou-se no banco grande, azul. Esteve sozinho durante muito pouco tempo, outros candidatos começaram a chegar.

Às sete e vinte, aproximou-se um pequeno barco cujo nome não conseguiu ler, escondido que estava por um pneu pendurado à proa.

— Este barco é que é a vedeta? — Perguntou um, mal disfarçando o nervosismo.

— Deve ser, não aparece mais nenhum. — Avançou outro, de cabelo ruivo.

Por fim o tipo das manobras saltou para o cais para amarrar o cabo. Ao vê-los exclamou: — Vá, toca para bordo e acomodem-se, que isto hoje é capaz de encher.

Recolheu-se e foi para a cabine. Soaram três toques na sirene e ele gritou: — Vamos sair às sete e meia. Quem não estiver fica em terra.

Do portão surgiu mais um grupinho de rapazes apressando o passo. Afinal a vedeta hoje não ia encher, mas quase! Novo toque da sirene e soltou a amarra. Partiram. O das manobras gritou: — Esta embarcação é um verdadeiro calhordas e com a maré a vazar vamos demorar aí uns três quartos de hora. E aviso já: ninguém vai chamar pelo gregório aqui dentro do meu barco. Se almarearem vão para a popa vomitar pela borda fora, olha ó caraças!

Era cedo e estava fresco. Os mais inseguros instalaram-se perto das janelas. Abriram-nas para entrar o ar, mas juntamente com o ar, entravam imensos salpicos que por vezes eram uma autêntica chuveirada que molhava mais do que aliviavam o enjoo, embora o rio estivesse calmo. A viagem decorreu sem incidentes. Durante parte do percurso tiveram a companhia de alguns golfinhos que pareciam disputar uma corrida com a vedeta. Demoraram mesmo os três quartos de hora anunciados.

Quando atracaram foram encaminhados para o Grupo Número 2 onde estavam preparadas três mesas de recepção, cada uma com um cabo escriturário a fazer o atendimento que constava de um pequeno questionário, findo o qual eram encaminhados para outra fila onde esperavam pela inspecção médica: uma breve auscultação, observação da planta dos pés e das partes íntimas e um elementar teste à visão. Finalmente tinham de cumprir os mínimos de desempenho físico numa corrida de aproximadamente 100 metros e avaliar a capacidade de recuperação. Obtida a “aprovação” nesta inspecção, passavam então à recolha de sangue para análise.

Havia perto duma centena de candidatos, voluntários, com elevada taxa de aprovação. Este processo levou muito tempo e depressa se esgotou a manhã. Foi atribuído a cada um uma guia com a sua identificação e um número. O almoço foi servido num grande refeitório. Antes de comerem, o mesmo cabo instruiu que havia autocarros à espera deles. Tinham o destino indicado num papel no vidro da frente, Vila Franca de Xira e Escola de Fuzileiros em Vale de Zebro.

— Alguém tem dúvidas? — Pausa. — Muito bem!

O grupo do Agostinho chegou à Escola de Fuzileiros pelas quatro da tarde onde os esperava a praxe do corte de cabelo modelo recruta, a habitual carecada. Após uma passagem pela arrecadação para receberem toda a palamenta, foram encaminhados para a caserna onde foram distribuídos pelos respectivos lugares.

— Amanhã apresentem-se na parada às sete e meia da manhã. — Instruiu o cabo. — A caserna tem de ficar arrumada, com todas as camas bem feitas. Bem feitas ouviram? As mãezinhas não vêm cá arrumar o quartinho dos meninos!!! Ok?

— Hoje vão jantar às 19 horas no refeitório do rés-do-chão, ainda sem formatura nem lugar marcado. Recolhem aqui até às 21 horas e pelas 22 será apagada a luz e é o silêncio.

A vida de fuzileiro começava assim, com dureza. Nas primeiras duas semanas não havia autorização para sair. Em boa verdade, nem apetecia: os dias eram cansativos com tanta actividade. Era a ginástica, era a aplicação militar, eram as operações nocturnas. A exigência era sobretudo física, sempre pondo à prova a resistência. Na segunda semana já houve eliminações por incapacidade.

Finalmente, na sexta-feira durante o almoço, o sargento da instrução informou que quem quisesse ir de fim de semana podia pedir um “passaporte” ao comandante do seu pelotão e apanhar o autocarro para Cacilhas ou para o Barreiro que saíam às quatro e meia da tarde.

Agostinho foi dos primeiros a chegar junto do comandante do seu pelotão. Com o dito passaporte para justificar à PM ou à PA se fosse interceptado, envergou a sua farda de sair, a precisar de um arranjo, poliu as botas, e foi instalar-se no autocarro. Estava ansioso. Não tinha conseguido telefonar aos tios e muito menos à Vitoriana.

 

 

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