segunda-feira, maio 23, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (5)

 


5.  Uma Vida Nova

Estendeu o olhar até ao fundo à procura de um lugar. Preferia à janela, para se distrair com as vistas. A camioneta vinha quase cheia, apenas o banco de trás satisfazia a sua preferência e para lá se dirigiu. Sentia a curiosidade dos passageiros enquanto percorria o estreito corredor até ao fundo. Ajeitou-se à ponta do banco, encostada à janela, colocou a pequena maleta de viagem sobre as pernas e, na mão, uma bolsinha de retalhos. Os seus parcos pertences.

Ali ia ela a caminho do futuro, tão incerto…

Não teve despedidas. Apenas a Graziana, no outro lado da estrada, lhe acenou e lhe fez um gesto de felicidades, com a mão no coração. Não lhe tinha revelado, nem a ninguém, a sua intenção de partir, e muito menos a decisão de o fazer neste final de Setembro de 1965, dia 29, data que no início do ano a senhora Gertrudinhas marcara no Almanaque de Santa Zita, assinalando o seu aniversário. Era uma forma diferente de celebrar os seus dezassete anos. Mas à Graziana não lhe escapou a sua intenção.

O seu passado era para esquecer. A sua mãe agonizara no hospital da Misericórdia, para onde a levaram. O pai partira para as franças e despediu-se num postal ilustrado com “esquece-me para sempre que eu não volto” e a mãe encolhera os ombros quando lhe entregaram o correio. Murmurando um “maganão” entre dentes abraçou-se a ela suspirando, talvez com alívio “Já sabes que somos só a gente”. Era finalmente uma mulher livre, mas a sua liberdade durou tão pouco. Ao cabo de meio ano foi encontrada caída e inconsciente na margem da ribeira, à Ponte Pedra, sobre o caixote da roupa que se preparava para lavar. Acudiram-lhe outras lavadeiras mas a partir daí nunca mais foi gente. Que tinha sido uma trombose, braço e perna mortos, e nunca mais recuperou o tino. Livre do marido, ficava agora talvez, com liberdade acrescida, ao deixar este mundo onde tão castigada tinha sido.

Vitoriana procurava também a sua liberdade. Libertar-se da maldade da tia-madrinha, que assim que a mãe adoeceu a pusera como criada de casa e das filhas, umas inúteis preguiçosas e más. Não queria voltar para o canto da despensa, onde a esperava a escuridão, o mofo da enxerga velha, as alpergatas de sola de corda fosse Verão ou Inverno.

Tinha-lhe valido a boa alma da senhora Gertrudinhas que, conhecendo as suas necessidades e os maus tratos a que era sujeita, conseguiu levá-la para sua casa a troco dalgumas notas para a tronga da tia, responsabilizando-se pela roupa e comida. Até então, aos doze anos, fora a melhor coisa que lhe acontecera. A senhora Gertrudinhas precisava mais da sua companhia do que de outros serviços.

Esteve com ela três anos que passaram tão depressa. Até que a senhora dera uma queda e o filho a levou para Faro. Mas o sol põe-se todos os dias… e deu-lhe um mês para deixar a casa. Mas sair para onde? De novo para a casa da bruxa da sua tia? Não. Nunca mais. Mesmo que a Guarda a obrigasse, haveria sempre de fugir. Portanto, era o tempo de cortar com essa vivência e arrumar a sua história num rol para esquecimento.

Começava assim uma nova vida, na camioneta dos Belos a caminho de Lisboa. Esta Quarta-feira era o dia de cortar com o passado, assim lhe ajudasse o Santo Antoninho, graças a Deus.

Uma apitadela e um solavanco marcaram o momento do arranque. Alguns que ainda estavam de pé sentaram-se rapidamente. A camioneta fez a curva, — um último olhar para a tabuleta assinalando Lisboa a 238 Km —, rodou na ponte sobre a ribeira e lançou-se pela estrada da várzea, ou melhor, pela estrada de Lisboa. Ia nervosa com a aventura… as suas únicas saídas da vila tinham sido até Lagos, e sabia que Lisboa, a capital, não tinha nada a ver com a cidade algarvia. A Graziana, que visitava quase diariamente na Central dos Despachos, é que lhe dera as informações com que foi alinhavando o seu plano secreto, quando em conversas triviais lhe punha as suas dúvidas “A última paragem da camioneta não tem nada que enganar: é mesmo ao lado do embarque no vapor; e depois são só três quartos de hora até chegar ao Terreiro do Paço”.

No Rogil entraram três rapazes, despedindo-se das famílias com alarido, acenavam para a rua à medida que se deslocavam até ao fundo da camioneta. Atiraram-se para o banco traseiro, brincando uns com os outros. Não lhe tocaram sequer, mas sentiu-se incomodada. Além disso as caras não lhe eram estranhas. Talvez das festas da Senhora D’Alva ou talvez da escola, pois havia moços da Charneca que iam à escola da vila. Sim, devia ser da escola. Não se aquietaram antes de Odeceixe. A camioneta parara e havia sempre movimento de passageiros pelo que eles aproveitaram para sair. Pediram-lhe que desse um olho nas coisas que deixaram a marcar os lugares. E ficou a vê-los na taberna a bebericarem uns copinhos de anis. Continuou ela a vaguear pelo seu plano, extraído direitinho de “Uma Vida Nova”, um folhetim que ela lia e relia para a senhora Gertrudinhas, rindo-se ou comovendo-se, consoante, tsche, tsche...

Foi sobressaltada com o regresso dos rapazes. “Brigado” murmurou-lhe um enquanto se sentava, desta vez com maneiras e mais próximo dela.

Deu-lhe um toque de cotovelo e perguntou-lhe – Conheço-te da escola, não é verdade? Andámos juntos com a menina Zabelinha, não te lembras?

Ela acenou apenas, afirmativamente. Já se tinha lembrado dele.

— Eu sou o Agostinho. E Tu? Ana? Não, qualquer coisa a acabar em ana, não é? És a Viviana, do cerro do Forte.

— Não. Vitoriana. Sou a Vitoriana, — respondeu, sem desviar o olhar, rematando a conversa desejosa de retomar a solidão dos seus pensamentos... Não estava disposta a grandes revelações, nem sequer ia permitir a este Agostinho, um paspalhão que lhe aparecera de repente, nem a quem quer que fosse, lhe entrasse pela alma a dentro.

 

Praia de Buarcos, Nov 2021


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