Estendeu o olhar até ao fundo à procura de um lugar. Preferia à janela, para se distrair com as vistas. A camioneta vinha quase cheia, apenas o banco de trás satisfazia a sua preferência e para lá se dirigiu. Sentia a curiosidade dos passageiros enquanto percorria o estreito corredor até ao fundo. Ajeitou-se à ponta do banco, encostada à janela, colocou a pequena maleta de viagem sobre as pernas e, na mão, uma bolsinha de retalhos. Os seus parcos pertences.
Ali ia ela a caminho do futuro, tão incerto…
Não teve despedidas. Apenas a Graziana, no outro lado da
estrada, lhe acenou e lhe fez um gesto de felicidades, com a mão no coração.
Não lhe tinha revelado, nem a ninguém, a sua intenção de partir, e muito menos
a decisão de o fazer neste final de Setembro de 1965, dia 29, data que no início do ano a senhora Gertrudinhas marcara no Almanaque
de Santa Zita, assinalando o seu aniversário. Era uma forma diferente de celebrar
os seus dezassete anos. Mas à Graziana não lhe escapou a sua intenção.
O seu passado era para esquecer. A sua mãe agonizara no hospital
da Misericórdia, para onde a levaram. O pai partira para as franças e despediu-se
num postal ilustrado com “esquece-me para sempre que eu não volto” e a mãe
encolhera os ombros quando lhe entregaram o correio. Murmurando um “maganão”
entre dentes abraçou-se a ela suspirando, talvez com alívio “Já sabes que somos
só a gente”. Era finalmente uma mulher livre, mas a sua liberdade durou tão
pouco. Ao cabo de meio ano foi encontrada caída e inconsciente na margem da
ribeira, à Ponte Pedra, sobre o caixote da roupa que se preparava para lavar.
Acudiram-lhe outras lavadeiras mas a partir daí nunca mais foi gente. Que tinha
sido uma trombose, braço e perna mortos, e nunca mais recuperou o tino. Livre
do marido, ficava agora talvez, com liberdade acrescida, ao deixar este mundo
onde tão castigada tinha sido.
Vitoriana procurava também a sua liberdade. Libertar-se da
maldade da tia-madrinha, que assim que a mãe adoeceu a pusera como criada de
casa e das filhas, umas inúteis preguiçosas e más. Não queria voltar para o
canto da despensa, onde a esperava a escuridão, o mofo da enxerga velha, as
alpergatas de sola de corda fosse Verão ou Inverno.
Tinha-lhe valido a boa alma da senhora Gertrudinhas que,
conhecendo as suas necessidades e os maus tratos a que era sujeita, conseguiu levá-la
para sua casa a troco dalgumas notas para a tronga da tia, responsabilizando-se
pela roupa e comida. Até então, aos doze anos, fora a melhor coisa que lhe
acontecera. A senhora Gertrudinhas precisava mais da sua companhia do que de
outros serviços.
Esteve com ela três anos que passaram tão depressa. Até que a senhora dera uma queda e o filho
a levou para Faro. Mas o sol põe-se todos os dias… e deu-lhe um mês para deixar
a casa. Mas sair para onde? De novo para a casa da bruxa da sua tia? Não. Nunca
mais. Mesmo que a Guarda a obrigasse, haveria sempre de fugir. Portanto, era o
tempo de cortar com essa vivência e arrumar a sua história num rol para
esquecimento.
Começava assim uma nova vida, na camioneta dos Belos a
caminho de Lisboa. Esta Quarta-feira era o dia de cortar com o passado, assim
lhe ajudasse o Santo Antoninho, graças a Deus.
Uma apitadela e um solavanco marcaram o momento do arranque.
Alguns que ainda estavam de pé sentaram-se rapidamente. A camioneta fez a
curva, — um último olhar para a tabuleta assinalando Lisboa a 238 Km —, rodou
na ponte sobre a ribeira e lançou-se pela estrada da várzea, ou melhor, pela estrada
de Lisboa. Ia nervosa com a aventura… as suas únicas saídas da vila tinham sido
até Lagos, e sabia que Lisboa, a capital, não tinha nada a ver com a cidade
algarvia. A Graziana, que visitava quase diariamente na Central dos Despachos,
é que lhe dera as informações com que foi alinhavando o seu plano secreto,
quando em conversas triviais lhe punha as suas dúvidas “A última paragem da
camioneta não tem nada que enganar: é mesmo ao lado do embarque no vapor; e
depois são só três quartos de hora até chegar ao Terreiro do Paço”.
No Rogil entraram três rapazes, despedindo-se das famílias
com alarido, acenavam para a rua à medida que se deslocavam até ao fundo da
camioneta. Atiraram-se para o banco traseiro, brincando uns com os outros. Não
lhe tocaram sequer, mas sentiu-se incomodada. Além disso as caras não lhe eram
estranhas. Talvez das festas da Senhora D’Alva ou talvez da escola, pois havia
moços da Charneca que iam à escola da vila. Sim, devia ser da escola. Não se
aquietaram antes de Odeceixe. A camioneta parara e havia sempre movimento de
passageiros pelo que eles aproveitaram para sair. Pediram-lhe que desse um olho
nas coisas que deixaram a marcar os lugares. E ficou a vê-los na taberna a
bebericarem uns copinhos de anis. Continuou ela a vaguear pelo seu plano,
extraído direitinho de “Uma Vida Nova”, um folhetim que ela lia e relia para a
senhora Gertrudinhas, rindo-se ou comovendo-se, consoante, tsche, tsche...
Foi sobressaltada com o regresso dos rapazes. “Brigado”
murmurou-lhe um enquanto se sentava, desta vez com maneiras e mais próximo
dela.
Deu-lhe um toque de cotovelo e perguntou-lhe – Conheço-te da
escola, não é verdade? Andámos juntos com a menina Zabelinha, não te lembras?
Ela acenou apenas, afirmativamente. Já se tinha lembrado
dele.
— Eu sou o Agostinho. E Tu? Ana? Não, qualquer coisa a
acabar em ana, não é? És a Viviana, do cerro do Forte.
— Não. Vitoriana. Sou a Vitoriana, — respondeu, sem desviar
o olhar, rematando a conversa desejosa de retomar a solidão dos seus
pensamentos... Não estava disposta a grandes revelações, nem sequer ia permitir
a este Agostinho, um paspalhão que lhe aparecera de repente, nem a quem quer
que fosse, lhe entrasse pela alma a dentro.
Praia de Buarcos, Nov 2021
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