segunda-feira, maio 23, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (4)

 

4. Já bateu!

 Francisco tinha estado a almoçar na Vila do Bispo com o Joaquim Marreiros, seu velho amigo e colega de faculdade, com quem se encontrava sempre que vinha até Aljezur. Invariavelmente atacavam uns percebes e terminavam com uma massinha de peixe, comida leve porque era preciso manter a forma. Aqueles almoços eram sempre um acontecimento, cabendo ao Joaquim a escolha do peixe a confeccionar com a massa, especialidade da casa, caprichada pela Tia Arminda. Reviviam episódios dos tempos de estudantes e também de trabalho, pois ambos tinham entrado para o Ministério dos Negócios Estrangeiros no mesmo dia. Joaquim saíra mais cedo e tinha-se estabelecido na sua terra natal como advogado e solicitador, enquanto Francisco se tinha transferido para o corpo das embaixadas e sido colocado em Paris.

Apressaram o café e a continha que dividiram, hábito que lhes ficara de tempos mais magros. Despediram-se com um abraço e um “até qualquer dia”.

Eram duas e um quarto da tarde; Francisco tinha de estar no notário em Aljezur para uma escritura marcada para as quatro. Estava com tempo.

Pôs-se a caminho no seu jipe UMM, carro que mantinha em boa forma, apesar dos muitos quilómetros já percorridos. O pouco conforto era compensado pelo prazer de circular em todo o terreno. Quase sem dar por isso, já a Carrapateira lhe aparecia a seguir à curva. Faltavam cerca de vinte quilómetros para a vila. Era um sítio simpático este, e sempre que por ali passava vinham-lhe à memória as férias dos seus oito e nove anos. Uns dias inesquecíveis em casa dos tios, sempre disponíveis para o receber, tanto quanto a sua mãe o autorizava a ir. Quando um dos tios aparecia na vila, pedia-lhe que o levasse… para a casa do outro! O “programa” era sempre aliciante, fosse em que casa fosse. No tio da aldeia, era frequente o levantar de manhã cedo, consoante a maré, para ir à Praia do Amado fisgar uns linguados na rebentação.

Noutras ocasiões ficava no Casal do Bem Formoso, mais conhecido por À dos Torres, propriedade dos outros tios. Lá as actividades eram diferentes, cavalgar a mula em pelo — só com uma saca pelo lombo —, ou dar comida aos bacorinhos e à criação, regar o milho e ainda abanhar no tanque de regas.

Divagando com ia, já a Bordeira ficara para trás. Nas curvas da subida, estavam meia dúzia de carros parados atrás de um camião carregado de cortiça. A carga precisava de ser aconchegada porque as cordas tinham afrouxado. Cautelosamente os carros iam à vez ultrapassando o camião. À sua frente estava um velho Mercedes 180 que arrancou lentamente com uma fumaceira negra. A vinda de outro carro em sentido contrário fê-lo suspender a ultrapassagem e recuar para o ponto donde arrancara. O condutor não conseguiu controlar a manobra e acabou por bater com a traseira na frente do UMM.

— Já bateu! — Exclamou o Francisco, mais interiormente do que em voz alta.

O jipe estava equipado com um guincho pelo que o embate, justamente no gancho, fez saltar a tampa da mala do Mercedes que lentamente se entreabriu, deixando ver o conteúdo: um carregamento de pacotes de cigarros Marlboro. O condutor do Mercedes, baixinho e barrigudo, apressou-se num saltinho para baixar a tampa da mala, mas esta não se prendia. Não conseguindo evitar a revelação da suspeitosa carga, gritou ao seu acompanhante que lhe trouxesse um cobertor do banco traseiro e com ele tapou atabalhoadamente a mercadoria.

— Vai lá ao camião pedir uma corda. — Gritou para o seu acompanhante; e para o Francisco: — O senhor já viu bem o que fez? Se tivesse mantido a distância nada disto tinha acontecido.

— Desculpe lá, mas eu estive sempre parado. O senhor é que recuou para cima de mim. Portanto, não me venha com essa conversa.

Entretanto pararam duas motorizadas. Os dois homens cumprimentaram os outros dois, perguntando se havia azar e se era preciso alguma coisa que eles até tinham visto tudo.

— Não é preciso nada, isto resolve-se já. Tou com pressa; tenho pessoal à espera na vila.

— E eu tenho uma escritura em Aljezur daqui a meia hora… — impacientava-se o Francisco.

O do Mercedes percebendo que ao Francisco também lhe interessava sair da situação rapidamente, propôs-lhe encontrarem-se no Primavera ao fim da tarde.

Anotaram-se nomes e matrículas e assim fizeram um intervalo no problema.

*

A papelada estava toda em ordem e a escritura resolveu-se rapidamente. Conhecia o vendedor desde sempre, João Maria, filho da Ti Amélia, e acabaram no Primavera para fechar a transacção com uma cerveja.

Bebericavam e conversavam até que , à porta apareceu o do Mercedes.

— Ah! Já cá está! – E dirigindo-se ao João Maria, — e tu, conheces este senhor! Sabes que ele me amachucou o carro?

— Espere lá! Eu estava parado e o senhor é que recuou para cima de mim. Pensei que isso tinha ficado claro.

O do Mercedes sentou-se à mesa, sem cerimónia, e pediu uma Sagres.

— Conheço este senhor, e tu também. Andámos juntos na escola. Não te lembras do Chico Marujinho?

— O Chico Marujinho?! — Surpreendeu-se o do Mercedes. — Eh pá! Estás tão diferente, e a barba…

— E tu, quem és? José Moreira — recordando a anotação — não me lembro.

— Pois calculo que não, que não te lembres. Morava aqui, no Degoladoiro… — Apontou para a colina; e passando o lenço de mão pela cabeça lisa, acrescentou em desabafo que, noutro tempo, tinha mais cabelo. Zé da Moleira.

— Ah, sim, olhando-te melhor… O Zé da Moleira!

Na estrada tinha-lhe ficado aquela impressão que, mais cedo ou mais tarde, nos invade a todos. “Parece-me uma cara conhecida. De onde é que o conheço? Será da tropa?”

— Sim, sem dúvida. Imaginando-te naquele tempo. Então o que fazes agora, moras por cá?

— Olha, cá e lá! Tenho por aqui uns frigoríficos e compro percebes e lagostas para umas cervejarias de Lisboa.

— E quanto ao toque no carro? Estive a ver o teu jipe e não se nota nada! O que ficou pior foi o meu Mercedes que tenho de mandar arranjar.

— Mas foi um acidente? Como? — O João Maria esperando pormenores.

Ao que o Zé da Moleira respondeu: “Foi aqui o Chico que me deu cabo do fecho da mala”.

— Outra vez! — Interrompeu o Chico. — Eu estava parado. Se quiseres fazer a Participação Amigável, faz-se.

— Eh! Deixa, ficamos assim. Cada um paga o seu e pronto. — E aproximando-se do ouvido do Chico — E tu também não viste nada, não é? Quero dizer, não tiveste tempo de ver nada.

— Tu viste que eu vi e eu sei bem o que vi. Portanto…— Chico, encolhendo os ombros, mas querendo deixar claro que a situação poderia trazer complicações para o outro.

O João Maria virava a cabeça ora para um ora para o outro, sem perceber bem o que se estava a passar.

— Bem… Então ficamos quites ou não? Olha, gostei de te voltar a ver. Pagas a minha cerveja. Vou à minha vida.

Chico viu com alívio o afastamento da melga do Zé da Moleira. “Ficamos quites!”. Lata não lhe faltava. Por ele estava bem. Acabava-se de vez com aquele assunto que até se podia complicar… para o “exportador de marisco”, claro. No entanto não quis fazer grandes adiantamentos ao João.

— Queres mais uma? Ah não? Então vamos andando? Olha, arranja-me lá os contactos desses amigos, pode ser que me façam a obra.

Praia de Buarcos, OUT 2021 

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