4. Já bateu!
Apressaram o café e a continha que dividiram, hábito
que lhes ficara de tempos mais magros. Despediram-se com um abraço e um “até
qualquer dia”.
Eram duas e um quarto da tarde; Francisco tinha de
estar no notário em Aljezur para uma escritura marcada para as quatro. Estava
com tempo.
Pôs-se a caminho no seu jipe UMM, carro que mantinha
em boa forma, apesar dos muitos quilómetros já percorridos. O pouco conforto
era compensado pelo prazer de circular em todo o terreno. Quase sem dar por
isso, já a Carrapateira lhe aparecia a seguir à curva. Faltavam cerca de vinte
quilómetros para a vila. Era um sítio simpático este, e sempre que por ali
passava vinham-lhe à memória as férias dos seus oito e nove anos. Uns dias inesquecíveis
em casa dos tios, sempre disponíveis para o receber, tanto quanto a sua mãe o
autorizava a ir. Quando um dos tios aparecia na vila, pedia-lhe que o levasse…
para a casa do outro! O “programa” era sempre aliciante, fosse em que casa
fosse. No tio da aldeia, era frequente o levantar de manhã cedo, consoante a
maré, para ir à Praia do Amado fisgar uns linguados na rebentação.
Noutras ocasiões ficava no Casal do Bem Formoso, mais
conhecido por À dos Torres, propriedade dos outros tios. Lá as actividades eram
diferentes, cavalgar a mula em pelo — só com uma saca pelo lombo —, ou dar
comida aos bacorinhos e à criação, regar o milho e ainda abanhar no tanque de
regas.
Divagando com ia, já a Bordeira ficara para trás. Nas
curvas da subida, estavam meia dúzia de carros parados atrás de um camião
carregado de cortiça. A carga precisava de ser aconchegada porque as cordas
tinham afrouxado. Cautelosamente os carros iam à vez ultrapassando o camião. À
sua frente estava um velho Mercedes 180 que arrancou lentamente com uma
fumaceira negra. A vinda de outro carro em sentido contrário fê-lo suspender a
ultrapassagem e recuar para o ponto donde arrancara. O condutor não conseguiu
controlar a manobra e acabou por bater com a traseira na frente do UMM.
— Já bateu! — Exclamou o Francisco, mais interiormente
do que em voz alta.
O jipe estava equipado com um guincho pelo que o
embate, justamente no gancho, fez saltar a tampa da mala do Mercedes que
lentamente se entreabriu, deixando ver o conteúdo: um carregamento de pacotes
de cigarros Marlboro. O condutor do Mercedes, baixinho e barrigudo, apressou-se
num saltinho para baixar a tampa da mala, mas esta não se prendia. Não
conseguindo evitar a revelação da suspeitosa carga, gritou ao seu acompanhante
que lhe trouxesse um cobertor do banco traseiro e com ele tapou atabalhoadamente
a mercadoria.
— Vai lá ao camião pedir uma corda. — Gritou para o
seu acompanhante; e para o Francisco: — O senhor já viu bem o que fez? Se
tivesse mantido a distância nada disto tinha acontecido.
— Desculpe lá, mas eu estive sempre parado. O senhor é
que recuou para cima de mim. Portanto, não me venha com essa conversa.
Entretanto pararam duas motorizadas. Os dois homens
cumprimentaram os outros dois, perguntando se havia azar e se era preciso
alguma coisa que eles até tinham visto tudo.
— Não é preciso nada, isto resolve-se já. Tou com
pressa; tenho pessoal à espera na vila.
— E eu tenho uma escritura em Aljezur daqui a meia
hora… — impacientava-se o Francisco.
O do Mercedes percebendo que ao Francisco também lhe
interessava sair da situação rapidamente, propôs-lhe encontrarem-se no
Primavera ao fim da tarde.
Anotaram-se nomes e matrículas e assim fizeram um
intervalo no problema.
*
A papelada estava toda em ordem e a escritura
resolveu-se rapidamente. Conhecia o vendedor desde sempre, João Maria, filho da
Ti Amélia, e acabaram no Primavera para fechar a transacção com uma cerveja.
Bebericavam e conversavam até que , à porta apareceu o
do Mercedes.
— Ah! Já cá está! – E dirigindo-se ao João Maria, — e
tu, conheces este senhor! Sabes que ele me amachucou o carro?
— Espere lá! Eu estava parado e o senhor é que recuou
para cima de mim. Pensei que isso tinha ficado claro.
O do Mercedes sentou-se à mesa, sem cerimónia, e pediu
uma Sagres.
— Conheço este senhor, e tu também. Andámos juntos na
escola. Não te lembras do Chico Marujinho?
— O Chico Marujinho?! — Surpreendeu-se o do Mercedes.
— Eh pá! Estás tão diferente, e a barba…
— E tu, quem és? José Moreira — recordando a anotação
— não me lembro.
— Pois calculo que não, que não te lembres. Morava
aqui, no Degoladoiro… — Apontou para a colina; e passando o lenço de mão pela
cabeça lisa, acrescentou em desabafo que, noutro tempo, tinha mais cabelo. Zé
da Moleira.
— Ah, sim, olhando-te melhor… O Zé da Moleira!
Na estrada tinha-lhe ficado aquela impressão que, mais
cedo ou mais tarde, nos invade a todos. “Parece-me uma cara conhecida. De onde
é que o conheço? Será da tropa?”
— Sim, sem dúvida. Imaginando-te naquele tempo. Então
o que fazes agora, moras por cá?
— Olha, cá e lá! Tenho por aqui uns frigoríficos e
compro percebes e lagostas para umas cervejarias de Lisboa.
— E quanto ao toque no carro? Estive a ver o teu jipe
e não se nota nada! O que ficou pior foi o meu Mercedes que tenho de mandar
arranjar.
— Mas foi um acidente? Como? — O João Maria esperando
pormenores.
Ao que o Zé da Moleira respondeu: “Foi aqui o Chico
que me deu cabo do fecho da mala”.
— Outra vez! — Interrompeu o Chico. — Eu estava
parado. Se quiseres fazer a Participação Amigável, faz-se.
— Eh! Deixa, ficamos assim. Cada um paga o seu e
pronto. — E aproximando-se do ouvido do Chico — E tu também não viste nada, não
é? Quero dizer, não tiveste tempo de ver nada.
— Tu viste que eu vi e eu sei bem o que vi. Portanto…—
Chico, encolhendo os ombros, mas querendo deixar claro que a situação poderia
trazer complicações para o outro.
O João Maria virava a cabeça ora para um ora para o outro,
sem perceber bem o que se estava a passar.
— Bem… Então ficamos quites ou não? Olha, gostei de te
voltar a ver. Pagas a minha cerveja. Vou à minha vida.
Chico viu com alívio o afastamento da melga do Zé da
Moleira. “Ficamos quites!”. Lata não lhe faltava. Por ele estava bem.
Acabava-se de vez com aquele assunto que até se podia complicar… para o
“exportador de marisco”, claro. No entanto não quis fazer grandes adiantamentos
ao João.
— Queres mais uma? Ah não? Então vamos andando? Olha, arranja-me
lá os contactos desses amigos, pode ser que me façam a obra.
Praia de Buarcos, OUT 2021
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