segunda-feira, maio 23, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (2)

 

2.  O Exame de Admissão de 1958

Eram apenas cinco: o Tóino das Ovelhas, o Arménio do Rogil, o Zé Manel da Igreja Nova, o Ruizinho de lá por trás e ele, Francisco José Marreiros, também conhecido por Chico Marujinho. Juntavam-se ao fim da tarde em casa da Dona Inácia para se prepararem para o exame de admissão.

Estudavam a lição, esclareciam os significados e faziam a análise gramatical; ela em seguida questionava-os:

— Qual é o sujeito da primeira oração? E o complemento directo? Cantem-me agora os pronomes demonstrativos, bem afinados e sem enganos!

Exercitavam a Aritmética com contas de horas, áreas e volumes; reviam a História com as Dinastias, os Reis e os seus cognomes e entravam na República com relevo para o Estado Novo, cujas principais figuras — Craveiro Lopes e Salazar — ilustravam em folha inteira os seus livros.

— Não se esqueçam que o General Craveiro Lopes é o Senhor Presidente da República, o mais alto magistrado da Nação, e que o Primeiro-ministro é o Senhor Doutor António de Oliveira Salazar, o salvador da Pátria.

— Porque é que ele é o salvador da Pátria? — Era o Zé Manel, o “Curioso”.

— Porque sim. Olha porque se não fosse ele Portugal tinha entrado na Guerra. — E apontando para cada um deles — E o teu pai, e o teu e o teu teriam ido de espingarda ao ombro; e até podiam ter morrido!

E com estas respostas lhes arrefecia a pouca curiosidade que os temas suscitavam.

O que se dava naquelas explicações era tudo o que já tinha sido dado na escola e o que ainda estavam a dar. Talvez mais aprofundado; um pouco mais que meras revisões para avivar a memória. A professora insistia em que se devia saber tudo de cor. Os rios e as serras, as linhas e os ramais do caminho-de-ferro, os distritos e as suas capitais, o corpo humano e os seus diversos aparelhos.

Era tudo muito a sério com a Dona Inácia, que nunca sorria, não dava confiança. Ali não havia reguadas, mas se algum se distraísse tinha garantido uma palmada na nuca ou até, como aconteceu com o António quando apareceu com mais de uma hora de atraso, um puxão de orelhas que ele até chorou. Por mais que se justificasse com o tresmalho das ovelhas, de nada lhe valera. Não foi por isso com certeza, mas os pais dele desistiram alegando que, naquela altura, precisavam da sua ajuda para o pastoreio dos bichos, e assim ele se libertou deste esforço e clausura.

As explicações tinham lugar naquela casinha fria no quintal da Dona Inácia desde as férias do Natal. Era uma espécie de despensa onde guardavam a fruta, as abóboras e os potes do mel. O pote que estava a uso pingava da torneira para um pequeno alguidar de barro onde passavam o dedo indicador sempre que a professora se ausentava.

O exame de Admissão era uma etapa obrigatória para aqueles que queriam continuar a estudar. O Chico e o Arménio iriam fazê-lo em Lagos, na Escola Industrial e Comercial, pelos finais de Julho, os outros foram para o Liceu de Portimão.

Os 31 km que separavam Aljezur da cidade eram, naquele tempo, uma barreira de difícil transposição. O Chico e a mãe foram na camioneta dos Belos, uma daquelas que tinha o nariz saído.

A última paragem era no “Largo das Camionetas”. Lá estava à espera uma prima do Chico que os levou para a sua casa na Rua dos Peixeiros onde ficaram alojados.

Nessa mesma tarde ainda foram conhecer a escola, num passeio familiar. Grande edifício, tão diferente daquele a que estavam habituados. Porta larga, corredor comprido com muitas portas, um grande pátio do recreio e, não se via nenhuma senhora Marcolina, de cana-da-índia na mão! Apontaram-lhes a lista afixada onde já estavam os nomes e, para cada um deles indicava o número da sala onde se realizariam os exames.

As provas escritas estendiam-se por toda a semana, dia sim, dia não e começavam já no dia seguinte, às nove horas, depois era necessário esperar pelas provas orais.

Terça-Feira. O caminho para a escola não tinha nada que enganar e era perto, o Chico foi sozinho, sem escolta familiar. Penteadinho, com um pouco de brilhantina, revia mentalmente o Caderno de Problemas. Ia ser o exame de Aritmética. Estava tranquilo.

Afinal a prova fora mais fácil do que se esperava.

— Correu-te bem? — Perguntou ao Arménio. — Olha, a mim correu, fiz tudo.

— A mim também. Quanto te deu o custo das maçãs no primeiro problema? A mim deu-me três e quinhentos.

— Deu-me o mesmo, estamos certos! E agora onde vais? A seguir ao almoço, vou passear até à praia da Batata, não queres vir?

E foram mesmo. Encontraram-se no largo e seguiram pela Rua da Barroca. Estava um esplêndido dia de Verão e não resistiram ao calor. O mar parecia a ribeira na Ponte Pedra! Despiram-se e foram ao banho em cuecas, descontraídos e sem vergonhas.

As provas continuaram. A última, antes da oral, era a de Desenho. Era preciso lápis e uma borracha nova e foram comprá-los à Papelaria Paula, que era a casa verde no largo do Camões, que já conheciam. Tanto o Chico como o Arménio tremiam literalmente e, como a quem treme lhe treme o risco, ficaram ambos receosos. O Arménio teve de desenhar uma cafeteira e o Chico uma garrafa. Eram as peças mais difíceis por causa da simetria dos lados. Gastando muita borracha lá conseguiram equilibrar, mal ou bem, os contornos do gargalo e a asa da cafeteira. Estava feito e já não se podia apagar mais.

Mais uns dias de praia até que marcaram as provas orais e lá foram, por ordem alfabética, fazer o competente brilharete. As salas enchiam-se de pessoas que queriam assistir às provas. Os candidatos ocupavam a primeira fila. Havia uma carteira livre, destacada das outras, onde se sentava o aluno que era examinado. Estavam dois professores numa mesa sobre um estrado.

Ia começar. Um dos professores chamou: “Arménio, senta-te aqui.” Lançaram algumas perguntas de História, depois de Ciências, e por aí fora. O Chico acompanhava as questões respondendo mentalmente, “é afluente do Tejo”, “nasce na Serra do Caldeirão ou Mú”... Foi a seguir. A mesma coisa mas com perguntas diferentes. Quiseram ouvi-lo ler e trouxeram-lhe um livro aberto num texto de História. Mantendo o tema perguntaram-lhe quem tinha sido o pai do Infante D. Henrique e quem sucedera a D. João I. Tudo matérias que ele bem sabia. Nas ciências nem gaguejou. Tudo lhe saiu bem.

Despachado aquele grupo tiveram que esperar um pouco pelos resultados. Aprovados! Nem muito, nem pouco, apenas aprovados. Ficaram radiantes. A mãe do Arménio deu-lhes os parabéns e puxou o filho dizendo:

— Vamos filho, já está ali o carro de praça.

Assim se cumpria o caminho para o futuro, uma etapa que viveram com uns belos e inesperados dias de férias em praia de poucas ondas, nada como as do Monte Clérigo!

O Chico e a mãe regressaram no dia seguinte. Orgulhoso ele, e a mãe que nem menos.

Praia de Buarcos, Abr2021

Sem comentários: