3. Da Zimbreirinha à Praia da Fortaleza
O sol ia-se aproximando da linha do horizonte, pintando
à superfície das águas a longa estrada que em sonhos nos levaria até ele,
senhor da luz… e do seu contrário, já que as trevas só existem quando ele
adormece. A estrada dourada morria na praia. Esta, por sua vez, não era mais do
que uma estreita faixa de areia estendendo-se entre os rochedos que entrando
pelo mar, fechavam a baía, ornada a sul pela sentinela gigante que é a Pedra da
Agulha. Do cimo da falésia, dominava-se toda aquela imensidade de água
verde-azulada que acariciava a areia e beijava as rochas com uma doçura pueril.
Pela encosta abaixo ficavam os casebres disformes dos pescadores; casas que haviam
primeiramente sido construídas de braceja seca, colhida no barranco que, em
tempos de invernia, corria para a praia do Monte Clérigo. Posteriormente, à
custa de muito esforço e ajudas, foram lentamente levantadas as paredes,
tabiques de barro e pedras, um tipo de taipa mais estreita e rudimentar.
Desprezavam qualquer embelezamento e até alinhamento com casas vizinhas e
distribuíam-se em socalcos que os pescadores foram escavando e murando,
transformando veredas em dois metros de rua.
As crianças, poucas, costumavam brincar na praia.
Corpos nus, inocentes, rebolavam-se na areia e na espuma da babugem; os mais
crescidotes já desafiando o mar, cortavam as ondas com agilidade. Depressa
adquiriram a destreza que lhes viria a ser indispensável quando, maiorzinhos,
integrassem a companha do bote familiar. Exibiam a sua pele escura, curtida
pelo sol e pelo salitre, mais vezes molhada com água salgada do que com água
doce, tão escassa e trabalhosa.
Os homens trabalhavam de dia ou de noite, conforme as
marés e o tempo. Firmes mesmo quando o mar os fazia dançar, deitavam as redes
ou os aparelhos presos a bocados de cortiça amarrados uns aos outros, com uma cana
que às vezes tinha um trapo colorido para ajudar a localização e a propriedade,
honestamente respeitadas.
As mulheres, na sua maioria, ocupavam-se das casas e
da família. Tinham a seu cargo preparar as refeições, incluindo o farnel, e o
abastecimento da água, recolhida em enfusa na rocha-sul. Era sua a
responsabilidade por escalar e secar para conserva as moreias, os polvos, as
lulas e as arraias.
Os mais velhos, quando já não iam ao mar, ajudavam na
feitura e no conserto das redes, ou empatando os anzóis nos terminais da sedela
para a preparação dos aparelhos.
A vida era monótona na Fortaleza. Meia dúzia de
casebres para uma dúzia de famílias. Muitos gatos e muitas galinhas e, numa
zona mais afastada, a fila de pocilgos onde algumas das famílias criavam o seu
cevão para o Inverno. Havia também a venda do Vítaro, que afectara ao negócio a
cabana que tinha sido do burro, mobilando-a com dois bancos junto à parede e um
tosco balcão de tábuas que o mar lhe trouxera. O Vítaro teve de deixar o mar
quando naufragou durante um temporal. Era um homem muito precavido e quando o
mar ficou mais agitado enrolou à volta da barriga um largo cinturão que tinha
preparado com cordas e bocados de cortiça. Naufragou e foi um milagre o seu
salvamento. O mar foi depositá-lo, inconsciente, na Boca da Barra, levando-o pelo
rio acima até aos Salgados onde foi recolhido pelo lavrador do Bertual. Com um
ombro escangalhado nunca mais recuperou a força no braço, nem voltou à faina.
Pouco antes, no ano de 1840, ali desembarcou o Manuel
Francisco, também conhecido por Manel Carrapato. Natural da Carrapateira
dedicava-se à pesca no portinho da Zimbreirinha, num bote a meias com o seu
irmão. Em dia de mar cão, não conseguiram controlar o bote e este despedaçou-se
contra o rochedo. O irmão morreu e ele ficou por lá, sem barco nem trabalho. Os
da Fortaleza passavam pela Zimbreirinha de vez em quando e um dia em que ajudou
o Vítaro com os covos, seguiu com ele e mudou o poiso, mendigando a
subsistência em troca de pequenos trabalhos. Acabou por ser a ajuda do Vítaro
quando este ficou incapacitado: habilidoso de mãos foi ele quem lhe preparou
uma nova cabana para o burro e lhe amanhou os bancos e o balcão para abrir a
venda. Era com a sua força que o taberneiro contava e acompanhava-o nas suas
deslocações semanais à Azia, para ajudar a carregar o burro: dois barris de 50
litros de vinho tinto e branco e mais dois pequenos com a medronheira.
Com estas práticas acabou por propor ao amigo uma
sociedade: o Vítaro entrava com o burro e ele garantiria o abastecimento do
vinho, ao mesmo tempo que levava peixe para vender na vila e se encarregava de
outros mandados.
Saía de madrugada para chegar à vila ainda manhã cedo.
Fazia uma paragem no Monte dos Vales, como toda a gente que por ali passasse,
para uma sede de água, desta que tinha fama e que tirava do poço com o caldeiro
de folha que partilhava com o burrico. A sua venda começava ali. A patroa ou a
filha, a Ana Rosa de olhar doce, esperavam já por ele para um gudião ou um
safio para as batatas de caldo.
Fosse qual fosse o tempo, chuva ou sol, com uma saca
enfiada pela cabeça ou apenas com um gorro, seguia pelas veredas até à encosta
do Castelo e descia pelo rua do Degoladoiro. Levava consigo um grande búzio que
tocava a anunciar a sua chegada.
— Mest’e Manel, o qué que traz hoje? O mê home só me
pede moreia. Arranje lá uma.
Praia de Buarcos, Abr2021
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