segunda-feira, maio 23, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (3)

 


3. Da Zimbreirinha à Praia da Fortaleza 

O sol ia-se aproximando da linha do horizonte, pintando à superfície das águas a longa estrada que em sonhos nos levaria até ele, senhor da luz… e do seu contrário, já que as trevas só existem quando ele adormece. A estrada dourada morria na praia. Esta, por sua vez, não era mais do que uma estreita faixa de areia estendendo-se entre os rochedos que entrando pelo mar, fechavam a baía, ornada a sul pela sentinela gigante que é a Pedra da Agulha. Do cimo da falésia, dominava-se toda aquela imensidade de água verde-azulada que acariciava a areia e beijava as rochas com uma doçura pueril. Pela encosta abaixo ficavam os casebres disformes dos pescadores; casas que haviam primeiramente sido construídas de braceja seca, colhida no barranco que, em tempos de invernia, corria para a praia do Monte Clérigo. Posteriormente, à custa de muito esforço e ajudas, foram lentamente levantadas as paredes, tabiques de barro e pedras, um tipo de taipa mais estreita e rudimentar. Desprezavam qualquer embelezamento e até alinhamento com casas vizinhas e distribuíam-se em socalcos que os pescadores foram escavando e murando, transformando veredas em dois metros de rua.

As crianças, poucas, costumavam brincar na praia. Corpos nus, inocentes, rebolavam-se na areia e na espuma da babugem; os mais crescidotes já desafiando o mar, cortavam as ondas com agilidade. Depressa adquiriram a destreza que lhes viria a ser indispensável quando, maiorzinhos, integrassem a companha do bote familiar. Exibiam a sua pele escura, curtida pelo sol e pelo salitre, mais vezes molhada com água salgada do que com água doce, tão escassa e trabalhosa.

Os homens trabalhavam de dia ou de noite, conforme as marés e o tempo. Firmes mesmo quando o mar os fazia dançar, deitavam as redes ou os aparelhos presos a bocados de cortiça amarrados uns aos outros, com uma cana que às vezes tinha um trapo colorido para ajudar a localização e a propriedade, honestamente respeitadas.

As mulheres, na sua maioria, ocupavam-se das casas e da família. Tinham a seu cargo preparar as refeições, incluindo o farnel, e o abastecimento da água, recolhida em enfusa na rocha-sul. Era sua a responsabilidade por escalar e secar para conserva as moreias, os polvos, as lulas e as arraias.

Os mais velhos, quando já não iam ao mar, ajudavam na feitura e no conserto das redes, ou empatando os anzóis nos terminais da sedela para a preparação dos aparelhos.

A vida era monótona na Fortaleza. Meia dúzia de casebres para uma dúzia de famílias. Muitos gatos e muitas galinhas e, numa zona mais afastada, a fila de pocilgos onde algumas das famílias criavam o seu cevão para o Inverno. Havia também a venda do Vítaro, que afectara ao negócio a cabana que tinha sido do burro, mobilando-a com dois bancos junto à parede e um tosco balcão de tábuas que o mar lhe trouxera. O Vítaro teve de deixar o mar quando naufragou durante um temporal. Era um homem muito precavido e quando o mar ficou mais agitado enrolou à volta da barriga um largo cinturão que tinha preparado com cordas e bocados de cortiça. Naufragou e foi um milagre o seu salvamento. O mar foi depositá-lo, inconsciente, na Boca da Barra, levando-o pelo rio acima até aos Salgados onde foi recolhido pelo lavrador do Bertual. Com um ombro escangalhado nunca mais recuperou a força no braço, nem voltou à faina.

Pouco antes, no ano de 1840, ali desembarcou o Manuel Francisco, também conhecido por Manel Carrapato. Natural da Carrapateira dedicava-se à pesca no portinho da Zimbreirinha, num bote a meias com o seu irmão. Em dia de mar cão, não conseguiram controlar o bote e este despedaçou-se contra o rochedo. O irmão morreu e ele ficou por lá, sem barco nem trabalho. Os da Fortaleza passavam pela Zimbreirinha de vez em quando e um dia em que ajudou o Vítaro com os covos, seguiu com ele e mudou o poiso, mendigando a subsistência em troca de pequenos trabalhos. Acabou por ser a ajuda do Vítaro quando este ficou incapacitado: habilidoso de mãos foi ele quem lhe preparou uma nova cabana para o burro e lhe amanhou os bancos e o balcão para abrir a venda. Era com a sua força que o taberneiro contava e acompanhava-o nas suas deslocações semanais à Azia, para ajudar a carregar o burro: dois barris de 50 litros de vinho tinto e branco e mais dois pequenos com a medronheira.

Com estas práticas acabou por propor ao amigo uma sociedade: o Vítaro entrava com o burro e ele garantiria o abastecimento do vinho, ao mesmo tempo que levava peixe para vender na vila e se encarregava de outros mandados.

Saía de madrugada para chegar à vila ainda manhã cedo. Fazia uma paragem no Monte dos Vales, como toda a gente que por ali passasse, para uma sede de água, desta que tinha fama e que tirava do poço com o caldeiro de folha que partilhava com o burrico. A sua venda começava ali. A patroa ou a filha, a Ana Rosa de olhar doce, esperavam já por ele para um gudião ou um safio para as batatas de caldo.

Fosse qual fosse o tempo, chuva ou sol, com uma saca enfiada pela cabeça ou apenas com um gorro, seguia pelas veredas até à encosta do Castelo e descia pelo rua do Degoladoiro. Levava consigo um grande búzio que tocava a anunciar a sua chegada.

— Mest’e Manel, o qué que traz hoje? O mê home só me pede moreia. Arranje lá uma.

Praia de Buarcos, Abr2021


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