1. Reencontro
O Forte é um cerro.
Não tão alto como o do Castelo nem como o do Mosqueiro, mas que com estes dois
constituem os baluartes da Vila, proporcionando uma muralha de abrigo natural
dos ventos do mar, lá por trás. É por esta razão natural que a Vila se
desenvolveu nas suas encostas viradas a nascente. Nestas encostas os
arruamentos não eram mais que uns estreitos corredores, com os casebres apenas
no lado da encosta e, pela frente, o desnível era aproveitado para a instalação
de estrumeiras, de galinheiros, patamares para os monturos, às vezes quase se
encostando às traseiras das casas dos vizinhos. Esta geografia urbana
manteve-se até à actualidade com pequenas alterações. Excluindo um número
reduzido de ruas nas zonas menos íngremes, as outras permitiam estender o
horizonte pela várzea e pela Igreja Nova até à Serra de Monchique ou, um pouco
mais a nordeste, pelas pequenas colinas que ladeavam o Carrascalinho e a Aldeia
Nova. A várzea da frente, rectangulada em tamanhos diversos, terra rica e
escura, que recebe das ribeiras do Areeiro, das Alfambras e da Serra a bênção
das suas cheias, fertilização natural para mitigar as carências familiares. Era
uma área considerável dividida em pequenas parcelas, as hortas, que consumiam o
tempo de todos os familiares pois, se a várzea dava tudo, esse tudo só vinha
como retribuição do trabalho assíduo, permanente.
Tinha saudades da subida a pé, desde o Largo da Câmara
antiga, agora transformada em Museu Municipal. A mãe e a avó estavam sempre a
mandá-la fazer recados, ir à mercearia ou à loja e ela descia em correrias e
regressava… mais devagar, entretendo-se com outras da sua idade. Mas os tempos
já não eram os mesmos. Encheu o peito de ar e fez-se à ladeira, subindo em
ziguezague, técnica que o avô usava para aliviar o esforço dos bois ao puxarem
as carretas. A meio da subida cortou pela direita e parou em frente do antigo
Registo Civil, lembrando o senhor da perna tesa, com o cigarro já apagado
colado aos lábios, e o outro funcionário, tão meticuloso e demorado nas suas
certidões, que ela e as outras ouviam-no, pela janela, lendo e repetindo cada
palavra à medida que a escrevia com a sua invejável caligrafia.
Mais um bocado de ladeira e chegaria à sua casa. Aquela. As
barras azuis mal se distinguiam na parede da frente a perder o cafelo. A oliveira
que o seu avô plantara ainda lá estava, desgrenhada, integrava-se na paisagem
que aquele “miradouro” abria sobre a várzea, salientando a profundidade do
horizonte. Era a mesma paisagem, a de sempre. Aquela que ela deixara há mais de
trinta anos. A sombra dos montes da Vila na várzea marcava a hora e, neste
momento, acabara de entrar na courela do mestre Manel Hilário; eram portanto
quatro horas. O sino da igreja matriz badalou a confirmação.
Lançou o olhar para a Igreja Nova; estava maior, mais casas
embora com arquitecturas que nada têm a ver com a traça tradicional, ruas
regulares, em volta da igreja e ao longo da ladeira. Já lá tinha estado, a
almoçar. O Largo, antes tão grande que podia conter a feira anual e os
mercados, que se diziam grandes naqueles tempos, era agora um minúsculo recinto
que se enchia com meia dúzia de carros e duas esplanadazinhas.
Aproximava-se da casa. Era a mais decadente, abandonada, e o
palheiro do burro, do lado de cá, não tivera melhor sorte. A da vizinha Adélia
tinha sido restaurada, talvez por isso a casa lhe parecia muito mais pequena.
Pela frente tinha apenas a porta, com postigo, e uma janela, a única janela,
por onde ela, colada à vidraça, costumava espreitar a chuva e os reguinhos de
água.
Em frente da porta rebuscou na sua mala de mão e retirou um
pequeno taleigo de retalhos onde guardava a chave da casa, grande e antiga,
oxidada. Apontou ao buraco da fechadura mas estava atulhado de papéis
amassados. Subiu-lhe uma irritação pelo estômago acima e não pôde conter um impropério.
Mas era apenas um pequeno contratempo que a tesourinha do seu estojo de unhas
resolveria facilmente. Bem, não tão fácil assim, mas um bom quarto de hora
depois já a chave entrava na fechadura. Estava muito perra. Com cuidado deu uma
volta, e depois outra. Apenas duas voltas numa fechadura tão grande. A porta
rangeu e não se deixou abrir mais do que metade: estalou nos gonzos e seria
necessário levantá-la um pouco para desbloquear. Sim, era a mesma porta, com os
mesmos defeitos. As coisas não se consertam sozinhas.
‑ És tu, Vitoriana?
Praia de Buarcos, Mar2021
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