segunda-feira, maio 23, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (1)

 


1.  Reencontro

O Forte é um cerro. Não tão alto como o do Castelo nem como o do Mosqueiro, mas que com estes dois constituem os baluartes da Vila, proporcionando uma muralha de abrigo natural dos ventos do mar, lá por trás. É por esta razão natural que a Vila se desenvolveu nas suas encostas viradas a nascente. Nestas encostas os arruamentos não eram mais que uns estreitos corredores, com os casebres apenas no lado da encosta e, pela frente, o desnível era aproveitado para a instalação de estrumeiras, de galinheiros, patamares para os monturos, às vezes quase se encostando às traseiras das casas dos vizinhos. Esta geografia urbana manteve-se até à actualidade com pequenas alterações. Excluindo um número reduzido de ruas nas zonas menos íngremes, as outras permitiam estender o horizonte pela várzea e pela Igreja Nova até à Serra de Monchique ou, um pouco mais a nordeste, pelas pequenas colinas que ladeavam o Carrascalinho e a Aldeia Nova. A várzea da frente, rectangulada em tamanhos diversos, terra rica e escura, que recebe das ribeiras do Areeiro, das Alfambras e da Serra a bênção das suas cheias, fertilização natural para mitigar as carências familiares. Era uma área considerável dividida em pequenas parcelas, as hortas, que consumiam o tempo de todos os familiares pois, se a várzea dava tudo, esse tudo só vinha como retribuição do trabalho assíduo, permanente.

Tinha saudades da subida a pé, desde o Largo da Câmara antiga, agora transformada em Museu Municipal. A mãe e a avó estavam sempre a mandá-la fazer recados, ir à mercearia ou à loja e ela descia em correrias e regressava… mais devagar, entretendo-se com outras da sua idade. Mas os tempos já não eram os mesmos. Encheu o peito de ar e fez-se à ladeira, subindo em ziguezague, técnica que o avô usava para aliviar o esforço dos bois ao puxarem as carretas. A meio da subida cortou pela direita e parou em frente do antigo Registo Civil, lembrando o senhor da perna tesa, com o cigarro já apagado colado aos lábios, e o outro funcionário, tão meticuloso e demorado nas suas certidões, que ela e as outras ouviam-no, pela janela, lendo e repetindo cada palavra à medida que a escrevia com a sua invejável caligrafia.

Mais um bocado de ladeira e chegaria à sua casa. Aquela. As barras azuis mal se distinguiam na parede da frente a perder o cafelo. A oliveira que o seu avô plantara ainda lá estava, desgrenhada, integrava-se na paisagem que aquele “miradouro” abria sobre a várzea, salientando a profundidade do horizonte. Era a mesma paisagem, a de sempre. Aquela que ela deixara há mais de trinta anos. A sombra dos montes da Vila na várzea marcava a hora e, neste momento, acabara de entrar na courela do mestre Manel Hilário; eram portanto quatro horas. O sino da igreja matriz badalou a confirmação.

Lançou o olhar para a Igreja Nova; estava maior, mais casas embora com arquitecturas que nada têm a ver com a traça tradicional, ruas regulares, em volta da igreja e ao longo da ladeira. Já lá tinha estado, a almoçar. O Largo, antes tão grande que podia conter a feira anual e os mercados, que se diziam grandes naqueles tempos, era agora um minúsculo recinto que se enchia com meia dúzia de carros e duas esplanadazinhas.

Aproximava-se da casa. Era a mais decadente, abandonada, e o palheiro do burro, do lado de cá, não tivera melhor sorte. A da vizinha Adélia tinha sido restaurada, talvez por isso a casa lhe parecia muito mais pequena. Pela frente tinha apenas a porta, com postigo, e uma janela, a única janela, por onde ela, colada à vidraça, costumava espreitar a chuva e os reguinhos de água.

Em frente da porta rebuscou na sua mala de mão e retirou um pequeno taleigo de retalhos onde guardava a chave da casa, grande e antiga, oxidada. Apontou ao buraco da fechadura mas estava atulhado de papéis amassados. Subiu-lhe uma irritação pelo estômago acima e não pôde conter um impropério. Mas era apenas um pequeno contratempo que a tesourinha do seu estojo de unhas resolveria facilmente. Bem, não tão fácil assim, mas um bom quarto de hora depois já a chave entrava na fechadura. Estava muito perra. Com cuidado deu uma volta, e depois outra. Apenas duas voltas numa fechadura tão grande. A porta rangeu e não se deixou abrir mais do que metade: estalou nos gonzos e seria necessário levantá-la um pouco para desbloquear. Sim, era a mesma porta, com os mesmos defeitos. As coisas não se consertam sozinhas.

‑ És tu, Vitoriana?

 

Praia de Buarcos, Mar2021


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