terça-feira, março 12, 2024

Para Além das Imagens - 1

Postais de Aljezur -1 


 

Está aqui mesmo à minha frente, sobre a mesa de trabalho, reacendendo as memórias que a imagem inspira. É um postal a preto-e-branco e bem poderia ter sido o resultado do olhar que o senhor Furtado costumava deitar à nossa vila através da sua objectiva. A autoria perdeu-se, mas a impressão regista o momento e o tempo para a posteridade. Regista em duas linhas a legenda que identifica a Parte Norte da Aljezur. Ignoro em quantas partes foi dividida a vila, mas esta é de facto, a “Parte Norte”.

O fotógrafo posicionou-se no adro da Igreja Nova e captou esse ângulo, limitado à esquerda pela estrada (da Igreja Nova), visível quase toda, e fixa a encosta virada a Nascente (toda a vila está virada a Nascente) desde a zona do Cemitério Velho pelas Cabeças acima, até a colina descair para os lados da Ponte-Pedra e mais vila não haver. Captou e registou vida nessa estrada: duas pessoas, indistintas, uma a pé outra de burro, um quadro típico e tão frequente até aos anos 70. Outro burro ainda, desligado do “movimento” e do seu parceiro trabalhando, pasta no restolho, abaixo das únicas casas à direita (uma a do senhor Valentim, a outra, já lá não chega a minha memória). A luminária montada na primeira casa situa a imagem num tempo posterior à chegada da luz eléctrica (a Maio de 1963).

A vila impõe-se na fotografia, no plano de fundo embora sendo o motivo principal, com as suas fiadas de casinhas distribuídas pelos altos e baixos dos arruamentos, desde as margens da ribeira, pela encosta acima.

Não chega a incluir o Castelo que marca o centro da vila, mas destacam-se alguns elementos: o Cemitério Velho no topo da colina, com o seu típico frontispício ornamentado com incrustações de caveiras e tíbias afirmando a sua inegável importância no seu tempo, impressionando de forma algo assustadora a pequenada que lá acorria para as brincadeiras. Logo a seguir, a Casa Grande ou Casa da Velha Senhora que se impõe pela sua volumetria: é como se fosse uma grande parede por onde o olhar já não passa; mais para a direita está a Igreja da Misericórdia, e mal se distingue a Casa Verde, na rampa de João de Deus (mas mais conhecida como a Ladeira da Misericórdia) e que marca o início da colina do Forte. Esta Casa Verde é umas das poucas grandes casas que se evidenciam não apenas pela imponência, mas, e sobretudo, pelo bom gosto da sua distinta arquitectura.

Mas detenhamo-nos na Casa Grande. Dois pisos elevados, seis janelas na fachada, uma construção que, não tendo nada que ver com a traça habitual (tradicional?) das construções da vila, — também nada ficou a dever à beleza arquitectónica, — como se pode perceber na mancha do casario, mas que se levanta recortada no horizonte, branca e sem barras, sem qualquer enfeite nem efeito outro que não a sua imposição grandiosa. Será sempre um casarão… feio.

Nasceu encostada à casa senhorial anterior, menos exuberante, e para ambas impôs a edilidade, quiçá por simpatia como os proprietários, o traçado de uma nova rua, para servir as duas únicas portas. Não tinham número de polícia nem outra qualquer identificação, nem era preciso: para a distribuição de correspondência bastava o nome do destinatário, pois o carteiro conhecia toda a gente. Uma rua nova que, por falta de imaginação camarária, veio a chamar-se exactamente de Rua Nova. Mas podia chamar-se Rua do Vento, pois todos os dias era dia de bezaranha.

Os senhores que moravam na Casa Grande eram, família abastada, claro, rica, como era a riqueza daqueles tempos: várias casas na vila, terras de agricultura e quarelas que arrendavam e lhes proporcionavam os cereais necessários ao consumo da casa, e ainda outras terras para pastagem das várias cabeças de gado que também possuíam. Além disso, extensos montados “lá p’rá Serra” donde lhes vinha o grande proveito da venda da cortiça. O senhor da casa registava-se com a profissão de “proprietário”.

A casa senhorial anterior foi-se degradando com a desocupação e, após uma ligeira adaptação que permitiu separar duas áreas de habitação, nela foram residir, de favor, duas famílias de compadres e afilhados da Casa Grande.

Na parte do primeiro andar, morávamos nós; e lá vivemos durante uns 15 anos, ou talvez mais. Tinha duas janelas com vista para a várzea que, em tempo de invernia, permitia ver as cheias que a inundavam durante dias, com águas amareladas, curioso fenómeno que na altura eu não compreendia. Tinta que só pintava a ribeira e não dava para pincelar no papel.

Mas o que eu vejo para lá da simples imagem é algo que transcende as duas dimensões da estampa. Assaltam-me as minhas memórias, sobretudo as da idade mais tenra, dos tempos em que bastava saber-se andar e já se explorava a rua, embora sempre ao alcance do chamamento da mãe ou da tia.

Aquela rua era o meu reino e a varanda da nossa entrada, no topo de uma escadaria, era o meu castelo. Às vezes lá se desenrolavam algumas “lutas”; eu defendendo a minha posição, enquanto que um ou outro que se constituíam como assaltantes, tentavam invadir a minha fortaleza. A escada era perigosa para esta brincadeira e às vezes lá acontecia algum mais descuidado “descer” raboleta.

Éramos uns poucos de miúdos naquela zona, uns na curva da rua, outros na rua de baixo, outros mais ao lado, descendo para o marco da água ou subindo para lá do Cemitério Velho. Este, já abandonado há muito, era o nosso campo da bola, bola de trapos pois está claro, já que a dita de cautechumbo, da colecção dos bonecos, era só para pés maiores que os nossos. Mas ainda bem, pois quando ela “fugia” das “quatro linhas”, era mais fácil apanhá-la antes que rebolasse até à ribeira.

Estes pensamentos ocorreram-me em frente do postalinho que, em tempos do meu afastamento para outras paragens menos algarvias, alguém me mandou para matar as saudades da terra.

Carlos eNe

2023


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