Postais de Aljezur -1
Está aqui mesmo à minha frente,
sobre a mesa de trabalho, reacendendo as memórias que a imagem inspira. É um
postal a preto-e-branco e bem poderia ter sido o resultado do olhar que o
senhor Furtado costumava deitar à nossa vila através da sua objectiva. A
autoria perdeu-se, mas a impressão regista o momento e o tempo para a
posteridade. Regista em duas linhas a legenda que identifica a Parte Norte da
Aljezur. Ignoro em quantas partes foi dividida a vila, mas esta é de facto, a
“Parte Norte”.
O fotógrafo posicionou-se no adro da Igreja Nova e captou
esse ângulo, limitado à esquerda pela estrada (da Igreja Nova), visível quase
toda, e fixa a encosta virada a Nascente (toda a vila está virada a Nascente) desde
a zona do Cemitério Velho pelas Cabeças acima, até a colina descair para os
lados da Ponte-Pedra e mais vila não haver. Captou e registou vida nessa
estrada: duas pessoas, indistintas, uma a pé outra de burro, um quadro típico e
tão frequente até aos anos 70. Outro burro ainda, desligado do “movimento” e do
seu parceiro trabalhando, pasta no restolho, abaixo das únicas casas à direita
(uma a do senhor Valentim, a outra, já lá não chega a minha memória). A
luminária montada na primeira casa situa a imagem num tempo posterior à chegada
da luz eléctrica (a Maio de 1963).
A vila impõe-se na fotografia, no plano de fundo embora sendo
o motivo principal, com as suas fiadas de casinhas distribuídas pelos altos e
baixos dos arruamentos, desde as margens da ribeira, pela encosta acima.
Não chega a incluir o Castelo que marca o centro da vila,
mas destacam-se alguns elementos: o Cemitério Velho no topo da colina, com o
seu típico frontispício ornamentado com incrustações de caveiras e tíbias
afirmando a sua inegável importância no seu tempo, impressionando de forma algo
assustadora a pequenada que lá acorria para as brincadeiras. Logo a seguir, a Casa
Grande ou Casa da Velha Senhora que se impõe pela sua volumetria: é como se
fosse uma grande parede por onde o olhar já não passa; mais para a direita está
a Igreja da Misericórdia, e mal se distingue a Casa Verde, na rampa de João de
Deus (mas mais conhecida como a Ladeira da Misericórdia) e que marca o início da
colina do Forte. Esta Casa Verde é umas das poucas grandes casas que se evidenciam
não apenas pela imponência, mas, e sobretudo, pelo bom gosto da sua distinta
arquitectura.
Mas detenhamo-nos na Casa Grande. Dois pisos elevados, seis
janelas na fachada, uma construção que, não tendo nada que ver com a traça
habitual (tradicional?) das construções da vila, — também nada ficou a dever à
beleza arquitectónica, — como se pode perceber na mancha do casario, mas que se
levanta recortada no horizonte, branca e sem barras, sem qualquer enfeite nem
efeito outro que não a sua imposição grandiosa. Será sempre um casarão… feio.
Nasceu encostada à casa senhorial anterior, menos
exuberante, e para ambas impôs a edilidade, quiçá por simpatia como os
proprietários, o traçado de uma nova rua, para servir as duas únicas portas.
Não tinham número de polícia nem outra qualquer identificação, nem era preciso:
para a distribuição de correspondência bastava o nome do destinatário, pois o
carteiro conhecia toda a gente. Uma rua nova que, por falta de imaginação camarária,
veio a chamar-se exactamente de Rua Nova. Mas podia chamar-se Rua do Vento, pois
todos os dias era dia de bezaranha.
Os senhores que moravam na Casa Grande eram, família
abastada, claro, rica, como era a riqueza daqueles tempos: várias casas na
vila, terras de agricultura e quarelas que arrendavam e lhes proporcionavam os
cereais necessários ao consumo da casa, e ainda outras terras para pastagem das
várias cabeças de gado que também possuíam. Além disso, extensos montados “lá
p’rá Serra” donde lhes vinha o grande proveito da venda da cortiça. O senhor da
casa registava-se com a profissão de “proprietário”.
A casa senhorial anterior foi-se degradando com a
desocupação e, após uma ligeira adaptação que permitiu separar duas áreas de
habitação, nela foram residir, de favor, duas famílias de compadres e afilhados
da Casa Grande.
Na parte do primeiro andar, morávamos nós; e lá vivemos
durante uns 15 anos, ou talvez mais. Tinha duas janelas com vista para a várzea
que, em tempo de invernia, permitia ver as cheias que a inundavam durante dias,
com águas amareladas, curioso fenómeno que na altura eu não compreendia. Tinta
que só pintava a ribeira e não dava para pincelar no papel.
Mas o que eu vejo para lá da simples imagem é algo que transcende
as duas dimensões da estampa. Assaltam-me as minhas memórias, sobretudo as da
idade mais tenra, dos tempos em que bastava saber-se andar e já se explorava a
rua, embora sempre ao alcance do chamamento da mãe ou da tia.
Aquela rua era o meu reino e a varanda da nossa entrada, no
topo de uma escadaria, era o meu castelo. Às vezes lá se desenrolavam algumas
“lutas”; eu defendendo a minha posição, enquanto que um ou outro que se
constituíam como assaltantes, tentavam invadir a minha fortaleza. A escada era
perigosa para esta brincadeira e às vezes lá acontecia algum mais descuidado
“descer” raboleta.
Éramos uns poucos de miúdos naquela zona, uns na curva da
rua, outros na rua de baixo, outros mais ao lado, descendo para o marco da água
ou subindo para lá do Cemitério Velho. Este, já abandonado há muito, era o
nosso campo da bola, bola de trapos pois está claro, já que a dita de cautechumbo,
da colecção dos bonecos, era só para pés maiores que os nossos. Mas ainda bem,
pois quando ela “fugia” das “quatro linhas”, era mais fácil apanhá-la antes que
rebolasse até à ribeira.
Estes pensamentos ocorreram-me em frente do postalinho que,
em tempos do meu afastamento para outras paragens menos algarvias, alguém me
mandou para matar as saudades da terra.
Carlos eNe
2023
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