Memórias a Preto-e-Branco
Mais um postal da mesma colecção e edição. Tem legenda identificando o Jardim Público e reservando-lhe lugar em primeiro plano. A máquina, fixada em cima da ponte, captou também um pouco da parte Norte, sendo bem claro o cerro do Forte e um punhado de casinhas escorrendo pela encosta abaixo, como é normal, (tradição?), dado a configuração dos cerros. Aqui o Forte não é diferente do Mosqueiro.
Mas o primeiro plano da fotografia é a grande parede de
sustentação do jardim público e mais umas poucas casas molhadas pela ribeira. O
jardim, coitado, de seu nome, tão pouco tem. Nem uma pessoa está, naquele
momento, a beneficiar directamente do espaço. Sempre foi um local de pouca
frequência, nada convidativo; os canteiros com flores, tão escassos aqueles e
escassas estas, não mereceriam o nome de “alegretes”, e não mereceram ficar na
imagem. Salva-se o arvoredo, tílias creio, que lhe dão uma frondosa sombra que
os carros também aproveitam já que a sua calçada convida ao estacionamento.
E era nele, também sobre a calçada, que a Biblioteca
Itinerante da Gulbenkian estacionava e preparava o atendimento e aconselhamento
das leituras, a grandes e pequenos. Nessa altura sempre apareciam mais pessoas por
ali, fosse pela curiosidade que o acontecimento gerava numa terra onde tão
pouca coisa acontecia, fosse mesmo por interesse pelos livros, tão raros na
altura e de aquisição difícil. Os leitores formavam uma bicha para entrar na
carrinha Citröen cinzenta e de chapa ondulada para entregar os livros do último
empréstimo e renovar ou requisitar nova leitura.
A grande parede, escura e suja com algumas saídas de esgoto
a meia altura, dos tempos em que eram raríssimas as casas com instalações
sanitárias, pré-saneamento, encimada por uma balaustrada que segura os
passeantes curiosos no debruço sobre a ribeira, naquele tempo ainda com água,
pouca. A vegetação é do tipo atabuas, que nós, os moços, apanhávamos para
brincar, como se armas fossem, nas nossas explorações debaixo da ponte na
procura das galinholas, ou a caminho dos pegos, mais abaixo, para a devida abanhadela
quando a canícula convidava.
Algumas das casas da rua da Ponte de Pau cujas traseiras
davam directamente para a ribeira, mantinham junto à água pequenos patamares
que pareciam servir (e ter servido) de cais. Um ou outro moço daquele tempo, lembro-me
de dois, dispunham de pequenas chatas que lhes permitiam curtas navegações no
reduzido espaço do curso de água, podendo levar um companheiro, coisa que lhes
terá ficado no sangue de ascendência marítima. Marítimos da Fortaleza, mas que
ali, no exíguo mar onde podiam “navegar”, os grandes peixes não eram mais do
que uns bordalinhos e umas pardelhas. Nessas chatinhas se podia descer a
ribeira e passá-las à mão onde as passadeiras e a pouca profundidade o
requeriam para se chegar ao Pego do Pequeno, e aí sim, se davam uns belos
mergulhos. A gente, éramos um pequeno bando de moços ainda na escola primária,
que nas tardes do Verão quente, às vezes tão quentes que o alcatrão da estrada
até levantava borrefas, nos refrescávamos antes do regresso a casa.
Estas nossas aventuras não se vislumbravam no postal, embora
pudesse ser uma boa imagem publicitária, divulgando as boas condições que a
Natureza oferecia à rapaziada da vila daqueles tempos e, naturalmente,
extensiva aos que nos visitassem. Se resistíssemos ao banho nos grandes pegos,
caminhávamos pela margem direita para observarmos os cágados e, ao mesmo tempo,
roer um marmelo ou uma gamboa, saltávamos o açude e íamos mergulhar no fundão
da Ponte Pedra, e bronzear na prainha de fina areia.
A balaustrada remata a parte de cima de todo o paredão, e
continua alguns metros para lá do jardim, fechando inclusivamente o antigo acesso
à ponte medieval, derrubada na grande cheia de Março de 1947, sendo ainda
visível o maciço de apoio da extremidade na margem esquerda da ribeira. Esta já
se assumia aqui como a Ribeira de Aljezur, engrossando o caudal na confluência dos
riachos das Cercas (da Serra e da Cruz) e das Alfambras, mesmo a montante da
Ponte (ainda nova na altura).
Carlos eNe
Praia de Buarcos
2023
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