sexta-feira, novembro 05, 2010

Lenda de Aljezur


Passam as lendas de geração em geração de diversas formas; muitas delas, pela facilidade de imaginação, memorização e transmissão, constituem-se em autênticos rimances versejados, quiçá cantados em festas e feiras... como foi hábito antigo, antes do advento tecnológico-globalizador que associou o "conhecimento" ao clique.

Numa noite de navegante insónia, conheci esta no sítio do Arquivo Português de Lendas (APL) (uma base de dados relativa a um projecto liderado pelo CEAO da Universidade do Algarve), que por seu turno a recolheu de LOPES, Morais, Algarve: as Moiras Encantadas, s/l, Edição do Autor, 1995 , p.158-165. (in http://www.lendarium.org/narrative/lenda-de-aljezur).
Canta assim:

Lenda de Aljezur

Daquelas lendas antigas
Que o Tempo nos vem contar
Uma das mais esquecidas
Quero agora aqui lembrar.
É uma tão triste história,
Tão difícil de narrar,
Que só a lembrança dela
Nos leva, certo, a chorar.
O que nos faz mais sofrer
E o que é mais de arripiar,
É nada se ter passado
Com qualquer filha de Aghar.
Mas vamos de vez ao conto...
— Em outro tempo ant’rior
À vinda dos muçulmanos
Em tumultos de agressor,
Havia aqui, nesta terra,
Tanta paz e tanto amor,
Que até a lua brilhava
De noite com mais fulgor.
Os frutos que as árv’res davam
Tinham tão outro sabor,
Que par’ciam mais do céu
Que desta terra em redor
As aves?.., essas cantavam
Com tão refinados trilos,
Que eram só acompanhadas
Da voz exímia dos grilos.
E as limpas fontes brotavam
Em harmonia tamanha,
Quer de noite, quer de dia,
Pelas faldas da montanha.
Eram as gentes tão dadas,
Tão irmãs do coração,
Que se via serem todas
Filhas de povo cristão.
Foi assim por muitos séculos,
Hora a hora, dia a dia,
E houve até quem lhe chamasse
Terra de Santa Maria.
Foi assim!... Ai!... mas um ano,
- Há que tempo? não sei bem! –
Gente de guerra invadiu
Mar, rios, terras também.
Ali foi tudo passado
A pente de ferro e fogo;
Ai do ser que não fugisse,
Que a morte o tragava logo!
Foram dias de martírio,
Horas negras de tormento,
E dava-se a Jesus Cristo,
Com a vida, o pensamento.
E os feros mouros brutais,
Com sanha de más lembranças,
Matavam homens cristãos,
As mulheres e as crianças.
Foi, como em vulgar se diz,
Uma tão grande razia,
Que ninguém ficou com vida,
Dada à morte a primazia.
Os jardins também morreram,
As fontes, os rouxinóis,
E ficaram cor de sangue
Os ouros dos longos sóis.
Foi aos poucos serenando
A terra convulsionada,
E até as ervas humildes
Nasceram dum outro nada.
Tímidas aves vieram
De novo soltar a voz,
Para que as manhãs e as tardes
Se sentissem menos sós.
Mas uma vez... uma vez,
A brisa da noite trouxe
Um murmúrio tão brando,
Tão magoado, tão doce,
Que a lua, no alto céu,
Ouviu, ouviu e chorou
Choro assim tão melindrado,
Que em chuva se transformou.
Mas a voz?.., essa se ouvia
Mais bela aos pés duma cruz;
Fala que assim murmurava:
“Ai Jesus!”, só... “Ai Jesus!”
Que desconhecida voz
Era aquela, Santo Deus?...
Que não nascia da terra,
Porque até vinha dos céus?
Que mistério era aquele?
E o mouro pensava nisto:
Se havia voz de cristão
Falando inda em Jesus Cristo?
Mas um dia, à hora triste
Dos trovões e vendavais,
A voz potente de Allah,
Dominando os temporais,
Por sobre a terra do Gharb,
Se ouviu grave e formidanda:
— “Essa voz que vós ouvis
“Murmurar, assim tão branda,
“É a voz do encantamento
“Que lancei numa manhã
Sobre uma Princesa linda,
“Filha de gente cristã,
“Que escapou então com vida,
“Da feroz luta tremenda
“Que enterrou em pó e nada
“A derrota da contenda.
“E, se ela viva ficou,
“É tão só para pensar
“Por cinco séc’los sem fim,
“Sempre a chorar, a chorar.
“Depois do tempo passado,
“Se o Cristão força tiver,
“Acaba-se o encantamento,
“Voltará a ser Mulher.
“Mas, jamais, não o creio,
“À Fé deste Deus que eu sou!”
Nunca mais Allah se ouviu
E o temporal amainou.
Fora certo, cinco séculos,
Depois do que foi narrado,
Ainda essa voz se ouvia
Da Princesa, em tom chorado.
Era sempre ao pôr do sol,
À hora de menos luz,
Que o choro mais magoava,
Com “Ai Jesus!”, “Ai Jesus!”...
Entretanto, os agarenos,
Má gente, sem coração,
Levantaram fortes muros
Contra a força do Cristão.
Mas a Fé move montanhas,
Quanto mais muros de pedra,
E não teme a força estranha
Onde só peçonha medra.
E foi assim... certo dia,
Quando El-Rei dos Portugueses,
Acometeu o castelo
Uma vez e tantas vezes,
Que as portas ali se abriram
Em acto de redenção,
À força tão desmedida
Daquele Povo Cristão.
Matavam-se os agarenos,
Mortos pelas próprias mãos,
Nas águas do mar Atlântico,
Perseguidos p’los cristãos.
Logo na manhã seguinte,
Na rasa planície calva,
Se rezou a Santa Missa
A Nossa Senhora de Alva.
Foi quando, perto, se ouviu,
Como saída da Cruz,
A voz sempre entristecida
Dos “Ai Jesus!”, “Ai Jesus!”
Delegou El-Rei saber
Que som magoado era,
Mas logo uma voz soou
Do mais alto duma Esfera:
“Eu te quebro o encantamento,
“Filha de gente cristã,
‘Volta assim a ser Mulher,
“É tua a doce manhã”.
Como por encanto viu
Rei Afonso uma Princesa
Que aos pés do altar ficou
Numa fervorosa reza.
Deu-a o Rei, como Esposa,
A um fidalgo galante,
Que p’ra sempre ali deixou
Dos muros por comandante.
El-Rei Afonso Terceiro,
À memória dando jus,
Quis que o lugar se chamasse,
Daí em frente, “AI-JESUS”.
Que o Povo, por corruptela,
P’ra que ainda o nome dure,
Foi, a pouco, assim mudando
Até ao nosso ALJEZUR.


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