1.
Maira sobe a falésia da Carriagem. As saias não são mais do que uns trapos, molhados, presos entre as pernas nuas, para facilitar a escalada. Nus também os seus pés, e como se de outras mãos se tratassem, galga um após outro aquela espécie de degraus escavados na rocha negra e xistosa. Com mais um trapo improvisara uma sacola que enchera de mexilhões e lapas e transportava-a às costas, as pontas traçadas entre os seios. Era o precioso almoço para ela e para Nagib, o irmão mais novo ainda à sua guarda.
Nagib esperava-a deitado no chão, cabeça pendurada, gritando e agitando os braços para a apressar a subir.
- Sobe Maira, sobe depressa! – mas o rugido do mar não deixava que o som chegasse a Maira.
Diferente era o que parecia a Nagib. Adivinhava-lhe a respiração ofegante, e com um pouco de esforço até era capaz de a ouvir, mas ela nem lhe respondia. Há muito que Nagib suspeitava que o som não desce a falésia, apenas a sobe. Sempre que iam ao mar, ele nunca conseguia comunicar com ela; fazia a experiência e ela nunca lhe respondia... O som não desce. Sai da boca e é como um bafo quente em tempo frio. Não desce.
Mas ainda assim, insistia no seu “Sobe Maira, sobe depressa!”
Finalmente Maira assomava ao nível de Nagib e este fez-lhe sinal para parar antes que se erguesse no topo da falésia, tão facilmente visível!
- Pára! Ouves mana? Estás a ouvir-me, ou não? Vão por além uns cavaleiros. Vinham dos lados do sul. Eram muitos, mais de duas mãos.
Gatinhou para junto duma camarinheira e puxou a irmã para que se deslocasse abaixada.
-Acalma-te lá Nagib. Allah Akbar!
- Mas eram muitos, mana, e traziam aquela cruz nos escudos. São os mesmos que estiveram lá na casa.
Instintivamente apoiou-se nos cotovelos e levantou a cabeça. Já se haviam afastado e não avistava ninguém. Mas Maira sabia muito bem o que eles queriam, os espatários de Dom Paio, que já nos dias anteriores a vinham buscando. Escoltavam o seu comandante que dela se enfeitiçara, e a enfeitiçara a ela também. Esse oficial, garboso cavaleiro de fino trato, barbas curtas e lindos olhos negros, que sempre que com os castanhos dela se cruzavam, lhe provocavam aquela agradável e nunca antes experimentada sensação de tremura e doce bem-estar. Esse comandante já não lhe saía do pensamento e era ele o responsável pelas noites de vigília que, desde que estivera nos seus braços, só lhe permitiam adormecer pela madrugada .
- Sossega Nagib, não há razão para arreceios. Alá é grande. - ergueu-se, soltou as saias e alinhou o resto dos trapos. - Vem, eles não nos farão mal.
E tomaram o caminho do Monte dos Ares, cantarolando descontraídos.
2.
Quando se aproximaram do monte perceberam que a picota estava a ser usada. Os cavaleiros tiravam água do poço para saciarem os cavalos.
- Eis-te finalmente! - era o oficial. Quero falar-te. Pode ser aí dentro?
Entraram e fecharam os panejamentos, mantendo-se a casa numa ténue claridade. Logo ali ele a agarrou e lhe beijou os lábios. Maira, sem qualquer resistência, como habitualmente, abandonou-se ao galante cavaleiro. Ele era o senhor do seu coração. Não havia como se lhe opor, nem isso desejava Maira. Duas semanas se passaram desde que se conheceram e logo nesse primeiro encontro ela se lhe entregara. Mal se cruzavam os seus olhares e o cristão e a moura esqueciam o mundo à sua volta.
- Quero que fiquemos juntos, - lhe disse o cavaleiro, mas o Mestre, Dom Paio, quer-me sempre a seu lado. Vem tu comigo, acompanharás a deslocação das tropas.
- Não. Tenho o meu irmão. Eu fico na minha casa; aqui esperarei por vossa mercê. Virá o meu senhor quando quiser.
O oficial reforçou o pedido com um novo beijo. Alegou a necessidade do exército se movimentar, o que não poderia acontecer enquanto não conquistassem a fortaleza da povoação. Os mouros eram guerreiros destemidos e nem sequer permitiam a aproximação das muralhas. As duas tentativas que fizeram haviam sido rechaçadas, com várias baixas nos de Sant’Iago.
Maira regozijou-se com estas lamentações. Por Alá! Os seus eram valentes. Não conheciam a palavra rendição e iriam resistir até ao último homem. Estes cavaleiros bem podiam desistir, poupar as suas vidas e desaparecerem desta parte do Gharb.
- O senhor Dom Paio tem pressa com esta missão. A Ordem quer a praça antes do dia do maior Sol. Isto dá-nos pouco tempo para estarmos juntos. Vem comigo e nada te faltará.
Maira oscilava entre dois desejos. Nunca tinha estado tão perto dum homem e isso descontrolava-a. E logo aquele cavaleiro de mãos de seda e maneiras de príncipe… Mas era um infiel. Alá e esse Deus que ele venerava eram inimigos... Mas o seu coração apressado não a deixava pesar as diferenças. Efectivamente Alá não estava a ajudá-la. Ela queria servir o seu Deus, no céu, e o seu senhor, na terra.
- Pensa melhor… - disse o cavaleiro de Sant’Iago. – Tornarei amanhã. Se me esperares, então irás comigo e passarás a viver na minha tenda.
Colocou o elmo e saiu com grandes passadas. Tomou as rédeas das mãos do estribeiro e galopou numa nuvem de poeira, descendo para o vale. Seguido pelos seus, depressa desapareceram, embrenhando-se na floresta.
3.
Maira estendeu a sua esteira à porta da casa de taipa e aí passou a noite, perscrutando as estrelas e a lua. Amanhã esperaria o seu senhor. Que grandes mangas teria o gibão de Mohammad para nelas guardar a metade da lua! Nagib iria para casa do tio Youssuf. Logo que o seu cavaleiro chegar, (de manhã?), iria com ele sem hesitar. A claridade da noite revelava os contornos da serra, na direcção de Meca. A serra que Nagib cria ter ido ao encontro de Mohammad! Nagib era ainda uma criança, mas já estava recenseado para as tropas do emir ibn Mahfuz. A sorte dele poderia mudar se o seu gentil cavaleiro o protegesse. O seu coração já escolhera e esse, ela não o contrariava, nem tão pouco o controlava. Com ou sem o seu irmão, iria para o acampamento dos espatários.
Ao raiar da manhã, ainda madrugada, Maira banhara-se com água do poço e perfumara-se com as essências que guardava na caixa de madeira que a sua avó lhe oferecera. Preparou uma pequena trouxa de roupa e sentou-se no tronco, à entrada da cabana. Aí assistiu ao nascer do dia, os olhos fixos no bosque, para o lado do mar…
4.
Dom Paio conhecia bem os amores do seu capitão Gonçalo de Ega com a moura Maira e, naquelas vésperas de S. João, foi visitar a sua tenda. Maira, que penteava os seus longos cabelos, levantou-se dum salto e, de olhos no chão, ficou imóvel perante o grande guerreiro.
- Eu sei quem tu és. És a Maira. Eras a Maira, aqui terás um nome cristão, serás Maria. Sabes quem eu sou?
Maira limitou-se a um ligeiro aceno afirmativo.
- Muito bem. Gostas do meu capitão? E de que tamanho é esse amor? O que és capaz de fazer por ele? Sabes o que lhe pode acontecer se não tomarmos esta praça? Vamos travar uma dura batalha e dela só os vencedores sairão vivos, todos os outros serão mortos. Nós, os cavaleiros da cruz, ou os da tua crença. A tua sorte não vai ser muito diferente. Os teus não te vão perdoar teres-te juntado às minhas forças. Com as coisas que tu sabes, podes ajudar o exército de El-Rei e, ao mesmo tempo, ajudares o teu amado. Se a conquista tiver lugar dentro de pouco tempo, nomeio D. Gonçalo meu representante e aqui ficará com uma guarnição. Tu podes ficar com ele… Pensa como nos poderás ajudar. Qual é a tua escolha?
- Senhor Dom Paio, às ordens de vossa mercê. Era Gonçalo que chegava, armado e coberto de pó. – Fizemos mais uma batida… a fortaleza continua bem defendida... são inúmeros os mouros lá dentro.
- El-Rei e a Ordem querem esta fortaleza! Só sairemos daqui vivos se a conquistarmos, senão… - e saiu Dom Paio nas suas largas passadas, mão crispada na cruz da sua enorme espada.
Mais tarde, enquanto dava banho ao seu amante.
- Amanhã, - murmurou Maira, amanhã todos vão ao mar. É o dia maior do ano e todos os homens se vão purificar nas águas da Amoreira, antes do sol nascer. É um velho costume. Só os velhos e as crianças vão ficar na fortaleza.
Saiu Dom Gonçalo de Ega a contar a novidade a Dom Paio e logo se reuniram todos os oficiais na tenda do comandante. Traçados foram os planos. Com a intenção de dar confiança aos infiéis para à vontade continuarem a prática dos banhos anuais no maior dia solar, levantariam já o acampamento simulando a partida e ficariam escondidos na floresta ao norte da povoação. Na madrugada seguinte se concretizaria o assalto.
5.
Mal raiava o dia de S. João, solstício de verão dum gracioso ano da década dos quarenta em tempos do rei Capelo, as tropas de Dom Paio esperaram a saída dos mouros para as praias. Escondidos atrás de moitas que tinham arrancado para se camuflarem, fizeram a sua aproximação sem que a fraca claridade matutina denunciasse o seu movimento.
Um par de velhos mouros que fazia a vigilância naquela madrugada, conversavam para combater o sono. No colo da mulher uma criança, ensonada, com o olhar perdido pela encosta, esfregava os olhos e, inocentemente, perguntava à avó:
- Avó, as moitas andam?
- É o vento. Vá, dorme que ainda é noite. – murmurou a avó Sarifa, enquanto aconchegava a criança com o xaile.
- Mas estão a andar. Eu vejo-as a mexer. Olha ali aquelas! E apontava uma meia dúzia que estavam mais próximo.
Já a velha não foi a tempo de vê-las, uma seta certeira a atingiu no peito. Sarifa caiu, com um ai suspirado, arrastando o neto. Ainda o seu companheiro, Azize, gritou antes de tombar. Mas de pouco serviu o alarme, desguarnecida que estava a fortificação. Sem resistência, as tropas de Dom Paio tomaram a fortaleza.
Foram os mouros intencionalmente informados do acontecido e levados a uma aproximação pelo sul da fortaleza, local onde as tropas portuguesas se haviam emboscado. Ali os aniquilaram.
Não lhes poupou as vidas Dom Paio, nem os corpos. A todos mandou decapitar, provocando um rio de sangue que corria pela encosta abaixo. Enterrados ficaram os corpos a sul da fortaleza, e foram as cabeças levadas para serem enterradas ao norte da povoação.
Os duas colinas ainda hoje são conhecidas por nomes lembram essa chacina. Ao sul, Degoladouro, e ao norte, Cabeças.
6.
Não conta a História mas reza a lenda que Dom Paio constituiu uma guarnição para a fortaleza de Aljezur e deu o comando a Dom Gonçalo, e que este, no final da sua vida, mandou construir uma nova casa no Monte dos Ares, para onde foi viver os últimos dias na companhia de uma moura, Maria, que o servia.
Nas noites de luar sentavam-se num tronco, no varandim, olhando a serra na direcção de Meca. Às vezes Maira perguntava-lhe porque é que Mohammad metia a lua na manga do gibão, e ele sorria, sem responder...
segunda-feira, junho 28, 2010
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