II – O supérfluo versus o inútil
por Carlos eNe
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“Aquilo
que é útil é feio”. [Théophile Gautier]
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“Para que
te servirá aprenderes essa ária na flauta? — perguntaram ao filósofo Sócrates
que, impassível, respondeu: — Para saber esta ária antes de morrer.”
A
utilidade.
Gautier expõe que um Dicionário de Rimas pouca utilidade
teria para um sapateiro, do mesmo modo que as ferramentas do segundo pouca ou nenhuma
utilidade teriam para a composição de uma ode, donde “aquilo que é útil para
um, pode não o ser para o outro”.
A utilidade do belo.
O escritor francês Victor Hugo discorreu sobre a “utilidade
do belo” para transformar o real. Falando do belo, Roger Scruton, no seu livro
Beauty afirma que “a utilidade do belo transcende a teoria da utilização. A
beleza das coisas transpõe o olhar utilitário da vida”. [http://arrazoar.blogspot.com/]
A utilidade do inútil.
“Vejam como as pessoas correm atarefadas pelas ruas. Não
olham para a direita nem para a esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão,
como cães. (…) Em todas as grandes cidades do mundo, é assim que acontece. O
homem moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo
da necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não
compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo.
Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se
compreende a arte.” [Ionesco citado por Ordine].
Porquê ler os clássicos?
“(…) Os clássicos não se lêem porque hão-de servir para
qualquer coisa. Lêem-se simplesmente pela alegria de os ler, pelo prazer de
viajar com eles, animados apenas pelo desejo de conhecer e de nos conhecermos,
quem somos e até onde chegámos.” [Italo Calvino citado por Ordine].
E ainda, porquê aprender as línguas antigas?
Já foram consideradas “aprendizagem necessária à formação de
um gentleman” [John Loke citado por
Ordine]. Antonio Gramsci [citado por Ordine] nos seus Cadernos do Cárcere,
dizia que “não se aprende o latim e o grego com a intenção de os falar para
exercer funções de empregado de mesa, de intérprete ou de correspondente
comercial, mas sim para conhecer directamente a civilização desses dois povos,
pressuposto necessário da civilização moderna”.
Nem sempre o indivíduo tem liberdade suficiente para aceder
ao estudo daquilo que, para ele, é considerado útil. Algumas universidades,
agora “universidades-empresas” que tratam a população discente como
“alunos-clientes”, preparam, entre outras soluções, a sua oferta educativa em
função da previsível utilidade dos cursos, nomeadamente com a promessa de
rápida empregabilidade.
Os estados modernos praticam na generalidade cortes nos
orçamentos da cultura, o que implica a tal redução da oferta educativa nas
áreas humanísticas, situação que já Victor Hugo, em 1848, criticava alegando
que “a poupança orçamental seria ridícula para o Estado e letal para a vida das
bibliotecas, museus, arquivos nacionais, conservatórios, escolas e tantas
outras instituições importantes” [Hugo citado por Ordine].
Acrescentando ao anterior que, mesmo nas universidades que
ainda mantêm ofertas de cursos humanísticos, têm vindo a ser retiradas algumas
disciplinas. Cada vez é menor o número de alunos que se inscrevem em Latim,
Grego, Filologia ou Paleografia. Rareiam os alunos e rareiam os professores
que, ao mesmo tempo se tornam cada vez mais dispendiosos, o que conduz a uma
rápida extinção dessa oferta. Gradualmente se vão perdendo os especialistas
naquelas áreas.
E nós (ou vós)?
Que posição tomamos relativamente a esta questão do útil e
do inútil, ou do menos útil? O matemático dispensará o conhecimento do Grego,
apesar de ser um (grande) utilizador do alfabeto grego nas suas expressões; o
pi, o sigma e o teta enchem-lhe o quotidiano. E, na verdade, compreende e usa o
“cálculo” mesmo sem ter a consciência de que se trata dum substantivo comum
concreto/abstracto masculino do singular.
Bibliografia:
Nuccio
Ordine, A Utilidade do Inútil, Manifesto,
Matosinhos, Faktoria de Livros, 2019
Praia de Buarcos
Finais de 2020
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