sexta-feira, maio 07, 2021

INUTILÂNDIA Terra dos saberes inúteis (ou menos úteis)

 II – O supérfluo versus o inútil

por Carlos eNe

·         “Aquilo que é útil é feio”. [Théophile Gautier]

·         “Para que te servirá aprenderes essa ária na flauta? — perguntaram ao filósofo Sócrates que, impassível, respondeu: — Para saber esta ária antes de morrer.”

 

A utilidade.

Gautier expõe que um Dicionário de Rimas pouca utilidade teria para um sapateiro, do mesmo modo que as ferramentas do segundo pouca ou nenhuma utilidade teriam para a composição de uma ode, donde “aquilo que é útil para um, pode não o ser para o outro”.

A utilidade do belo.

O escritor francês Victor Hugo discorreu sobre a “utilidade do belo” para transformar o real. Falando do belo, Roger Scruton, no seu livro Beauty afirma que “a utilidade do belo transcende a teoria da utilização. A beleza das coisas transpõe o olhar utilitário da vida”. [http://arrazoar.blogspot.com/]

A utilidade do inútil.

“Vejam como as pessoas correm atarefadas pelas ruas. Não olham para a direita nem para a esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão, como cães. (…) Em todas as grandes cidades do mundo, é assim que acontece. O homem moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo da necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo. Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte.” [Ionesco citado por Ordine].

Porquê ler os clássicos?

“(…) Os clássicos não se lêem porque hão-de servir para qualquer coisa. Lêem-se simplesmente pela alegria de os ler, pelo prazer de viajar com eles, animados apenas pelo desejo de conhecer e de nos conhecermos, quem somos e até onde chegámos.” [Italo Calvino citado por Ordine].

E ainda, porquê aprender as línguas antigas?

Já foram consideradas “aprendizagem necessária à formação de um gentleman” [John Loke citado por Ordine]. Antonio Gramsci [citado por Ordine] nos seus Cadernos do Cárcere, dizia que “não se aprende o latim e o grego com a intenção de os falar para exercer funções de empregado de mesa, de intérprete ou de correspondente comercial, mas sim para conhecer directamente a civilização desses dois povos, pressuposto necessário da civilização moderna”.

Nem sempre o indivíduo tem liberdade suficiente para aceder ao estudo daquilo que, para ele, é considerado útil. Algumas universidades, agora “universidades-empresas” que tratam a população discente como “alunos-clientes”, preparam, entre outras soluções, a sua oferta educativa em função da previsível utilidade dos cursos, nomeadamente com a promessa de rápida empregabilidade.

Os estados modernos praticam na generalidade cortes nos orçamentos da cultura, o que implica a tal redução da oferta educativa nas áreas humanísticas, situação que já Victor Hugo, em 1848, criticava alegando que “a poupança orçamental seria ridícula para o Estado e letal para a vida das bibliotecas, museus, arquivos nacionais, conservatórios, escolas e tantas outras instituições importantes” [Hugo citado por Ordine].

Acrescentando ao anterior que, mesmo nas universidades que ainda mantêm ofertas de cursos humanísticos, têm vindo a ser retiradas algumas disciplinas. Cada vez é menor o número de alunos que se inscrevem em Latim, Grego, Filologia ou Paleografia. Rareiam os alunos e rareiam os professores que, ao mesmo tempo se tornam cada vez mais dispendiosos, o que conduz a uma rápida extinção dessa oferta. Gradualmente se vão perdendo os especialistas naquelas áreas.

E nós (ou vós)?

Que posição tomamos relativamente a esta questão do útil e do inútil, ou do menos útil? O matemático dispensará o conhecimento do Grego, apesar de ser um (grande) utilizador do alfabeto grego nas suas expressões; o pi, o sigma e o teta enchem-lhe o quotidiano. E, na verdade, compreende e usa o “cálculo” mesmo sem ter a consciência de que se trata dum substantivo comum concreto/abstracto masculino do singular.

Bibliografia:

Nuccio Ordine, A Utilidade do Inútil, Manifesto, Matosinhos, Faktoria de Livros, 2019

Praia de Buarcos

Finais de 2020

 


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