por CarlNasc
Gostaria
de partilhar convosco mais um livro escrito por um aljezurense e que tem como
cenário Aljezur. Mais um que parece estar esquecido nas gavetas da memória
daqueles que o conheceram; acho que tem um natural interesse até para reviver
costumes e situações que as gerações actuais nunca conheceram. Trata-se de
Gente da Serra
de ELIAS
NEMÉSIO, pseudónimo de Monsenhor Cónego Manuel Francisco Pardal.
Sendo
natural de Aljezur e conhecendo bem os sítios e as suas gentes, foi quiçá fácil
para o autor situar a acção no concelho, elegendo da população que bem conhecia
as personagens que integram o romance. Publicado pelo autor em 1931, tem como
subtítulo “Ensaio sôbre o casamento, emmoldurado em quadros rústicos” e
é dedicado a sua mãe.
Aquando do
centenário do nascimento do autor, em 1997, a Câmara Municipal publicou uma
edição fac-simile, criando assim uma
oportunidade para que as gerações mais recentes se familiarizassem com a obra.
Ao lermos não podemos deixar de identificar nesta ou
naquela pessoa, neste ou naquele comportamento, indícios que reconhecemos e
caracterizamos como aljezurenses. As vivências do dia-a-dia e dos dias de
festa, a vida no campo, na agricultura e na criação de gado.
Os “bons”, tementes a Deus, pautam o seu comportamento
e atitudes pela moral católica, supervisionada pelo Pe. Fabrício (que
“idealizara uma freguesia, onde todos, à custa do seu apostolado, que Deus
abençoaria, vivessem na graça do Senhor”); várias páginas do livro são
inteiramente dedicadas à meditação do Pe. Fabrício e às suas conversas com as
pessoas, sempre subordinadas aos ensinamentos e exemplos de Cristo. Compadre de
muitos, era o confessor, o conselheiro, o pacificador de almas e o pai
espiritual.
Os “menos bons”, recorrendo a práticas pouco
recomendadas para lograrem os seus objectivos, como se nestas questões, e
trata-se do jogo do amor (ou do interesse), tudo valesse.
Há momentos, na casa do lavrador José Afonso, que são
uma autêntica extensão do púlpito, e da sacristia, mas também se gera uma
pequena discussão onde são aflorados modernos problemas de igualdade de género,
das reivindicações femininas de frequentarem o Liceu e até a Universidade e
virem a desempenhar profissões fora do lar, confrontando-se as opiniões mais
controversas.
O autor inclui na sua narrativa vários sítios que são
outros tantos palcos da acção. O mais destacado é o Monte do Bemparece, onde
reside a principal personagem feminina, Maria de Sousa, a Sousinha, com os seus
pais, os lavradores: a senhora Armindinha e o senhor José Afonso; a Azenha,
mais difícil de localizar, onde reside a família Labrusca, a senhora
Francisquinha e Ti Labrusca e o filho Chico, namorado da Sousinha; o sítio do
Brejo, da senhora Sebastiana e do seu filho José da Costa, o Zé Gordo, alfaiate
aspirante a Regedor, o intriguista e pouco escrupuloso pretendente da Sousinha.
São ainda referidas localizações como o Degoladoiro, a
Portelôa, a Portela Alta, as Cêrcas, o Camarate, a Corte-Sobreira, o Vale da Nora,
o Rincão, o Moinho do Lucas, a Malhada Velha, o Cabeço de Águia, a Barrada e a
Várzea, os Montes Galegos e razão do seu nome e da ligação à lenda das Sagradas
Cabeças, o Carriçal, o Vale Palheiro, os Casais e Marmelete, e ainda a
Carrapateira e o Rogil.
Sobressai ainda a Custódia Alamôa, uma pobre mendiga
mas que é, simultaneamente, “uma grandíssima alcoviteira”, a quem o Chico
recorre para armar um destrate entre a família do Chico e da Sousinha e poder
aproveitar um eventual rompimento do namoro destes dois.
Frequentemente, e na verdade como era e ainda é
habitual, são citados vários ditos e ditados, de que destaco os seguintes:
“Quem tem padrinho, não morre moiro.”
“Como a casa do Gonçalo, onde pode mais a galinha do
que o galo.”
“Vale mais o corrido que o lido.”
“Pelos Domingos se tiram as Segundas.”
“O burro não embica duas vezes na mesma pedra.”
Para desfazerem na escolha de Fernando, irmão da
Sousinha, por um moça serrenha, cantam-lhe quadras a escarnecer indirectamente
a sua pretendida, a Isabelinha dos Casais:
As donzelas de Monchique,
São bonitas, mas sem dentes;
Porque bebem água fria,
E comem castanhas quentes.
O casamento das personagens principais decorre à “moda
antiga”, sem carros, com festas nas casas das duas famílias ao longo de dois dias,
com muita música e bailarico, ocasião para se cantarem quadras alusivas ao
matrimónio, aproveitando o lavrador para uma espécie de baile mandado que, no
século passado, se radicou no baixo Algarve, como se no barlavento não se
praticasse:
A moda do puladinho,
Há muito que cá não vem.
Tudo certo, puladinho!
Acerta, acerta, meu bem.
Finalmente recolhem os noivos à casa onde irão residir
pelo que “desabelhou toda a gente para ver o grande acompanhamento que vinha
trazer os noivos à sua casa”.
Este texto de leitura agradável merece a atenção e um
lugar na estante de todo o aljezurense.
Jun2020 por CarlNasc
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