sexta-feira, maio 07, 2021

3 GENTE DA SERRA

 por CarlNasc

 

Gostaria de partilhar convosco mais um livro escrito por um aljezurense e que tem como cenário Aljezur. Mais um que parece estar esquecido nas gavetas da memória daqueles que o conheceram; acho que tem um natural interesse até para reviver costumes e situações que as gerações actuais nunca conheceram. Trata-se de Gente da Serra


de ELIAS NEMÉSIO, pseudónimo de Monsenhor Cónego Manuel Francisco Pardal.

Sendo natural de Aljezur e conhecendo bem os sítios e as suas gentes, foi quiçá fácil para o autor situar a acção no concelho, elegendo da população que bem conhecia as personagens que integram o romance. Publicado pelo autor em 1931, tem como subtítulo “Ensaio sôbre o casamento, emmoldurado em quadros rústicos” e é dedicado a sua mãe.

Aquando do centenário do nascimento do autor, em 1997, a Câmara Municipal publicou uma edição fac-simile, criando assim uma oportunidade para que as gerações mais recentes se familiarizassem com a obra.

Ao lermos não podemos deixar de identificar nesta ou naquela pessoa, neste ou naquele comportamento, indícios que reconhecemos e caracterizamos como aljezurenses. As vivências do dia-a-dia e dos dias de festa, a vida no campo, na agricultura e na criação de gado.

Os “bons”, tementes a Deus, pautam o seu comportamento e atitudes pela moral católica, supervisionada pelo Pe. Fabrício (que “idealizara uma freguesia, onde todos, à custa do seu apostolado, que Deus abençoaria, vivessem na graça do Senhor”); várias páginas do livro são inteiramente dedicadas à meditação do Pe. Fabrício e às suas conversas com as pessoas, sempre subordinadas aos ensinamentos e exemplos de Cristo. Compadre de muitos, era o confessor, o conselheiro, o pacificador de almas e o pai espiritual.

Os “menos bons”, recorrendo a práticas pouco recomendadas para lograrem os seus objectivos, como se nestas questões, e trata-se do jogo do amor (ou do interesse), tudo valesse.

Há momentos, na casa do lavrador José Afonso, que são uma autêntica extensão do púlpito, e da sacristia, mas também se gera uma pequena discussão onde são aflorados modernos problemas de igualdade de género, das reivindicações femininas de frequentarem o Liceu e até a Universidade e virem a desempenhar profissões fora do lar, confrontando-se as opiniões mais controversas.

O autor inclui na sua narrativa vários sítios que são outros tantos palcos da acção. O mais destacado é o Monte do Bemparece, onde reside a principal personagem feminina, Maria de Sousa, a Sousinha, com os seus pais, os lavradores: a senhora Armindinha e o senhor José Afonso; a Azenha, mais difícil de localizar, onde reside a família Labrusca, a senhora Francisquinha e Ti Labrusca e o filho Chico, namorado da Sousinha; o sítio do Brejo, da senhora Sebastiana e do seu filho José da Costa, o Zé Gordo, alfaiate aspirante a Regedor, o intriguista e pouco escrupuloso pretendente da Sousinha.

São ainda referidas localizações como o Degoladoiro, a Portelôa, a Portela Alta, as Cêrcas, o Camarate, a Corte-Sobreira, o Vale da Nora, o Rincão, o Moinho do Lucas, a Malhada Velha, o Cabeço de Águia, a Barrada e a Várzea, os Montes Galegos e razão do seu nome e da ligação à lenda das Sagradas Cabeças, o Carriçal, o Vale Palheiro, os Casais e Marmelete, e ainda a Carrapateira e o Rogil.

Sobressai ainda a Custódia Alamôa, uma pobre mendiga mas que é, simultaneamente, “uma grandíssima alcoviteira”, a quem o Chico recorre para armar um destrate entre a família do Chico e da Sousinha e poder aproveitar um eventual rompimento do namoro destes dois.

Frequentemente, e na verdade como era e ainda é habitual, são citados vários ditos e ditados, de que destaco os seguintes:


“Quem tem padrinho, não morre moiro.”

“Como a casa do Gonçalo, onde pode mais a galinha do que o galo.”

“Vale mais o corrido que o lido.”

“Pelos Domingos se tiram as Segundas.”

“O burro não embica duas vezes na mesma pedra.”


Para desfazerem na escolha de Fernando, irmão da Sousinha, por um moça serrenha, cantam-lhe quadras a escarnecer indirectamente a sua pretendida, a Isabelinha dos Casais:


As donzelas de Monchique,

São bonitas, mas sem dentes;

Porque bebem água fria,

E comem castanhas quentes.

O casamento das personagens principais decorre à “moda antiga”, sem carros, com festas nas casas das duas famílias ao longo de dois dias, com muita música e bailarico, ocasião para se cantarem quadras alusivas ao matrimónio, aproveitando o lavrador para uma espécie de baile mandado que, no século passado, se radicou no baixo Algarve, como se no barlavento não se praticasse:


A moda do puladinho,

Há muito que cá não vem.

Tudo certo, puladinho!

Acerta, acerta, meu bem.


Finalmente recolhem os noivos à casa onde irão residir pelo que “desabelhou toda a gente para ver o grande acompanhamento que vinha trazer os noivos à sua casa”.

Este texto de leitura agradável merece a atenção e um lugar na estante de todo o aljezurense.

Jun2020 por CarlNasc

Sem comentários: