sexta-feira, maio 07, 2021

INUTILÂNDIA Terra dos saberes inúteis (ou menos úteis)

 I – De que vale tudo isto…

por Carlos eNe

“De que vale tudo isso,

Se você não está aqui?”

 

Coisas do Rei, um rei a quem eu, apesar de republicano, e mesmo depois de muitas mudanças de gostos, dedico grande admiração. Um dos grandes inspiradores da minha juventude e do pessoal do meu tempo. Sabíamos tudo sobre o Roberto Carlos, seguíamos as suas edições por todas as estações de rádio, e os seus 45 rotações acalentavam os nossos encontros de garagem, os assaltos.

Sabíamos tudo sobre ele, mais naquele tempo do que agora… “O calhambeque, pi, pi”, “A namoradinha dum amigo meu”, e por aí.

Nessa altura a Matemática e a Física não beneficiavam de tanta atenção como os sucessos do Rei. E as Humanísticas muito menos. Tanta gramática, tanto Garcia de Resende, tanto Frei Luís de Sousa e tanta Castro, tantas Forças e Movimentos, tantos senos e cosenos, mas o Rei, o Rei é que mobilizava a nossa vontade de saber, embora não pudéssemos ignorar a necessidade de ter notas positivas naquelas matérias, pois era necessário garantir a passagem de ano.

Desta forma íamos enchendo a nossa mochila do conhecimento com, por um lado os saberes obrigatórios e, por outro lado os facultativos, mas que geravam muita mais competição. Os nossos ídolos.

E muito espaço há nessa mochila do conhecimento para albergar tanto saber, uma capacidade cujo limite ainda ninguém conheceu. Habitualmente não fazemos distinção entre o conhecimento útil, para guardar, e deixar de fora outros saberes, menos úteis, por uma questão de poupança de espaço.

O saber não ocupa lugar. (Popular)

Aprender é a única coisa de que a mente nunca se cansa, nunca tem medo e nunca se arrepende. (Leonardo Da Vinci).

Na juventude aprendíamos tudo o que nos quisessem ensinar. Lidávamos com conceitos que mal entendíamos mas que ainda assim ficámos a saber, geralmente decorando. Aprendíamos que há palavras que são substantivos (e decorávamos que eram palavras que designam pessoas, coisas ou animais, acções qualidades ou estados); estes mais tarde passaram a nomes (palavras com que designamos ou nomeamos algo, ou alguém) e, depois passaram ainda a sintagmas nominais. Isto dificulta o entendimento entre diferentes gerações: nem os avós sabem o que é um sintagma, nem um jovem actual sabe o que é um substantivo comum, concreto ou abstracto. Apesar de “no meu tempo é que era…”

Mas ainda assim, “de que vale tudo isso…?”

Decorávamos a rede ferroviária. De que vale saber o ramal de Trofa a Fafe, indicá-lo no mapa sem perceber que Trofafafe, afinal, é apenas um palavrão resultante da junção das duas, agora cidades, que liga.

Orgulhámo-nos destes saberes, que decorávamos até à exaustão, para repetir de enfiada, todas as sílabas, sem tropeções. E os reis da segunda dinastia! E os cognomes dos reis? Porque é que o D. Sebastião era o Desejado (e não o Adormecido)?

O saber não ocupa lugar, mesmo que seja um saber de pouca utilidade, um saber inútil! No tempo da especialização, muitos dos conteúdos a que fomos sujeitos revelaram-se praticamente inúteis para a vida que viemos a viver. Mas subsiste a vontade de saber, de procurar o como e o porquê. A curiosidade e a imaginação foram os motores que levaram Einstein a formular a teoria da relatividade, em 1905, e que só muitos anos mais tarde viria a ser aplicada. Teria sido um conhecimento inútil, até então?! O mesmo aconteceu com outros descobridores/inventores cujas descobertas não tinham como objectivo resolver nenhum problema concreto, mas sim o tentar compreender a Natureza e os seus fenómenos. Foi o caso de Marconi, Maxwell, Edison, Hertz, Galileu, Newton e muitos outros.

Algumas das grandes descobertas terão sido, assim, um conhecimento inútil, até virem a ser exploradas e aproveitadas.

Desde que não seja errado, o conhecimento, mesmo o menos útil, há-de ocupar uma posição nos alicerces ou nas paredes-mestras do saber que vamos construindo ao longo da vida. É claro que fizemos a devida selecção, pois efectivamente de pouco terá servido para a Investigação Operacional saber o cognome do D. Sebastião.

Neste mundo da especialização, a construção de um saber objectivo é constituído pêlos blocos de pedra que vamos escolhendo como suporte. Descartei o D. Sebastião, mas mantive as Operações Aritméticas, que vinham da mesma altura. Seleccionei aqueles saberes que considerei úteis, deixando os menos úteis (inúteis), arrumados na prateleira antecâmara do esquecimento, onde (não) ocupam lugar… mas têm lá o seu lugar.

Praia de Buarcos

Finais de 2020


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