terça-feira, março 12, 2024

Para Além das Imagens - 7


 A Praia da Fortaleza



[Arrifana, 1965]

Mais uma vez venho falar de coisas antigas e de que me lembro vagamente, às vezes até muito vagamente, por causa do calendário. É o caso deste pequeno povoado; inicialmente de pescadores, mas que neste ano de 1965 já acalentava esperanças de cativar forasteiros com as suas areias e pedras rolantes (roladas) e a suave ondulação das águas da baía. A venda da aldeia disponibilizava já bebidas frescas, e quando a frequência aumentava oferecia outros produtos para atrair os forasteiros, e refiro-me à moreiazinha frita, uns percebinhos, ou até algum outro petisco preparado na hora ou por encomenda, incluindo a caldeirada ou a carniça de porco que o panito de cozedura caseira acompanhava.

As antigas cabanas de tábuas e braceja para os materiais da pesca, salpicadas pela encosta, deram lugar a pequenas casinhas de pedra e cal. A imagem da Arrifana, acima, tão frequentemente designada por Praia da Fortaleza, data do Verão de 1965, e fui eu próprio que a registei na minha rudimentar Kodak Instamatic 50, máquina de jovem amador e de poucas lecas, numa tarde soalheira de frequentes banhos para sossegar a caloraça. Nessa tarde bem quente, a calma que caía levou-me ao balcão da venda que na foto aparece com a placa dos CTT – Cabine Telefónica, indicador de tímido progresso, mas que, ainda assim, era o único meio de ligação deste cantinho ao mundo. Uma gasosa ou um pirolito eram os meus refrescos preferidos pois naquele tempo, naquele meu tempo, a cerveja era ainda uma coisa amarga que eu pouco apreciava.

Passaram quase 60 anos e no antigo povoado de pesadores tudo é tão diferente e é, para mim, já difícil identificar algumas localizações daquele tempo. O que resta da venda, dos caminhos de terra ziguezagueando, das estreitíssimas ruas que, em socalco, sustinham as pequenas casas?

Quem me dera uma ajuda para recordar, recordando comigo? O portinho de abrigo não existia nem tão pouco a estrada rasgada na rocha, ao Norte, desde a Fortaleza até à zona mais abrigada onde se fazia o desembarque. O pescado, muito ou pouco, subia às costas dos homens que o pescavam ou daqueles que se dispunham a ajudar, com magra compensação, galgando largas dezenas de degraus pela rocha acima. Manobra mais tarde substituída por um complicado sistema de teleférico de carga, o que reduzia o enorme esforço, e que transportava as caixas do peixe para o topo da rocha onde as pequenas carrinhas dos compradores, modernismo em substituição das bicicletas e motorizadas, esperavam a carga para partirem em demanda dos mercados da região ou para o revenderem de terra em terra, de porta em porta.

Hoje a encosta está bem preenchida com casas: casas de habitação, casas de veraneio, casas para rendimento, vista de mar a encarecer as propinas e as transacções. O mesmo se passa no topo da falésia, onde dantes se punham as algas a secar e os porquitos na engorda, levantam-se agora várias edificações e se iniciou um novo núcleo habitacional, hoje mesclando-se com empreendimentos turísticos e loteamentos, perdendo-se o uso inicial, e que se distribuem num desconexo “plano urbanístico”.

E quando vou passear até lá, delicia-me a extraordinária vista para Sul com a Pedra da Agulha como secular guardiã, essa sempre igual, sem ter tido que se adaptar à modernidade turística nem ao movimento das escolas de surf, tão desejadas e tão frequentadas que mal lhes chega a língua de areia, pouco restando para os amantes dum mergulho nas preguiçosas ondas. Transformou-se a Arrifana numa praia cada vez menos familiar.

Quanto à actividade piscatória, nestes tempos em que o Portinho ganhou bons acessos, requalificações, continua a dar que fazer à lota, com os desembarques devidamente fiscalizados, pois as transacções geram receitas para o Estado que é preciso acautelar para não afectar o OGE! Entretanto (Março de 1999) é fundada a Associação de Pescadores e são inventadas tradições que se afirmam anualmente. Eventos como a “Festa dos Pescadores da Arrifana” a par com o “Arrifana Sunset Fest”, trazem à aldeia e sobretudo à zona do porto de abrigo a grande animação importada e que o pessoal do barlavento, macambúzio, bem precisa para levantar a pestana e animar o cenho.

Estas festas, modernizadas e cheias de estilo, quero dizer “style”, com uma designação à moda dos “influencers” anglo-saxónicos tipo Sunset Fest, pois uma Festa de Pôr-do-Sol não é a mesma coisa e, eventualmente, não transmitiria o verdadeiro espírito da coisa, promovem a reunião no apertado espaço do Portinho de muitos pescadores(?), muitos alunos e instrutores de surf, enfim, de muita gente e se dá à festa a componente religiosa e pagã que as diversas estirpes requerem. O São Pedro que conforta os que se arriscam no mar, e as potentes aparelhagens para o indispensável consolo da “religião” do divertimento.

Tudo, claro, bem regado com um Sunset Tequila, ou com um Pink Paradise, ou com um Mosko Club ou, porque não, um Watermelon Margarita. Refrescantes e… desinibidores, para quando umas minis forem demasiado barlaventinas para a população das acrobacias na crista das ondas.

Independentemente dos cocktails em portinglês, pingam os €uros na caixa e… haja saúde, que a malta mais nova é assim mesmo, na prancha e na mesa, e a Arrifana ou Praia da Fortaleza, a responder ao apelo de modernidade que o século XXI impõe.

Carlos eNe

Praia de Buarcos, Dezembro 2023

Para Além das Imagens - 6

 

Ponte-Pedra ou Ponte-de-Pedra?



O autor com o primo, companheiros de sempre, em 1958



A fotografia no site da CMA

A fotografia é do tempo em que a Ponte-Pedra era apenas uma ponte, e (ainda) não um monumento. Uma estrutura, “bela”, mais por ser “útil” do que pelo seu traçado arquitectónico dispensando a supervisão do engenheiro Edgar Cardoso. De utilidade indubitável, senão, como é que ali se atravessaria a ribeira, se o vau trouxesse caudal acrescentado pelas águas do Areeiro. Do Areeiro, naturalmente, vêm as areias e ali se forma a prainha aproveitada pela rapaziada depois dos mergulhos nos pegos que se formavam junto às paredes de suporte da própria ponte; isto porque as areias salgadas da Amoreira e do Monte Clérigo não passavam do rio para a ribeira.

Depois, mas sem data, a Ponte-Pedra passou a monumento, incluída no SIPA como Monumento Nacional identificado com o número 34914, referenciada como tendo sido construída na “Idade Média”. São surpresas!

Procura Carlos, procura, e encontrarás outras surpresas.

A Câmara Municipal publica na sua página da internet um Boletim onde descreve um Circuito Histórico-Cultural e Ambiental que inclui o dito monumento (ver em:

cms.cm-aljezur.pt//upload_files/client_id_2/website_id_1/Publicacoes/circuito_historico-cultural_Aljezur.pdf).

Transcrevo do SITA o “Enquadramento”:

Rural, fluvial, isolado, a N. da urbe, na confluência da Ribeira de Aljezur com a Ribeira do Areeiro, perto da atual ponte rodoviária e do Parque das Merendas. Próximo localiza-se o Lugar do Serradinho onde se encontra os vestígios do Escama-Peixe e represa do Moinho do Serradinho (v. ). Na envolvente predominam os canaviais, o Salgueiro (Salix), o Choupo e o Amieiro, proporcionando habitat a variada fauna e avifauna, com destaque para a Lontra (Lutra lutra) (cuja população é a única em Portugal e uma das poucas da Europa a deslocar-se à costa marítima para se alimentar), o Cágado-de-carapaça-estriada e a Garça-vermelha (Ardea purpúrea).

E, caros leitores, do Moinho do Serradinho, da sua represa e do Escama-Peixe, nem indicação nem sinal! O Moinho, será sempre o Moinho d’Água onde morava o meu amigo e companheiro de escola e brincadeiras Zé do Moinho, e a represa, qual represa? Será que se referem ao Açude? E o tal de Escama-Peixe, novidade nunca “ouvista” (ouvida/vista)?

É correcto que a CMA divulgue o seu património arquitectónico e tente cativar os locais e os forasteiros para o conhecerem. Neste caso há uma pequena descrição da Ponte-Pedra, acompanhada duma fotografia a cores onde a mesma não se consegue vislumbrar, tal é o matagal que a circunda.

Senhora Câmara, faltam o tempo e as pessoas para tanto que fazer, não é? Mas se é para divulgar, pois que se divulgue mas… esclarecidamente.

 

 

Carlos eNe

Praia de Buarcos, Setembro 2023

Para Além das Imagens - 5


 

O MARCO DA ÁGUA


Pesquisando a internet por informações e imagens sobre a vila de Aljezur, aparece-me no ecrã uma fotografia do inesquecível do Marco da Água da Rua da Ladeira, no seguinte endereço da rede “pt.wikipedia.org/wiki/Fontanário_Público_de_Aljezur”.

É agora oficialmente designado por Fontanário Público de Aljezur, enquanto nos tempos em que funcionava, sempre foi designado por Marco da Água. Já não presta serviço (não tem torneira nem mesmo decorativa!); girou cerca de 90 graus e foi encostado ao paredão, não facilitando assim o acesso (por inútil) ao pequeno nicho na parte de trás que permitia controlar o fluxo do precioso líquido. Figura, porém, na relação dos Monumentos da vila e está incluído no SIPA (Sistema de Informação para o Património Arquitectónico), considerado Património Nacional, descrito pormenorizadamente como aqui, que com a devida vénia, transcrevo:

Embasamento baixo, em lajes de pedra dispostas em meia laranja; espaldar de base tronco - piramidal a que se sobrepõe plinto alto, apresentando a sua face principal sulcos horizontais e verticais a simular cantaria de 3 blocos quadrangulares sobrepostos; remate recto. Duas bacias idênticas, sobrepostas e escalonadas, em meia-laranja, sobre pequena base reentrante.

A Wikipedia descreve-o: “O Fontanário Público de Aljezur é uma estrutura na vila de Aljezur, na região do Algarve, em Portugal.[1]” com esta chamada de rodapé para GORDALINA, Rosário (2013), segundo «Fontanário Público em Aljezur», Sistema de Informação para o Património Arquitectónico. Direcção Geral do Património Cultural. Consultado em 2 de Setembro de 2021.

Assim como o devido “Enquadramento”:

“Urbano, destacado e adossado a muro de delimitação de pequeno largo-miradouro, com pavimento em calçada e vista para a parte baixa do núcleo antigo da povoação e o núcleo novo a E. (v. IPA.00028747) e os campos agrícolas interpostos. (IPA.00034911)”.

Mas porquê agora vir à estampa o Marco? O Marco? Este Marco, assim como o da Rua das Cabeças e o da Rua do Degoladoiro, estão guardados na minha memória e, seguramente, na dos meus contemporâneos, no “departamento” dos locais de brincadeira da nossa infância. Quando acompanhávamos as mães no acartar duma quarta d´água, segurando nós próprios a pequenina enfusa da água fresca para beber, nosso orgulhoso contributo para o abastecimento familiar. De manhã cedo, ou ao fim do dia, conforme a necessidade, era o meu pai que abastecia a cantareira com um daqueles pesados (mesmo quando vazios!) cântaros de barro branco.

Mas além destas idas ao Marco, havia as outras, já sem a mãe e assumindo nós a autonomia possível, antes do grito de chamamento. “Ó Chiiiico, anda pra casa!”. “’Nhora, lá vou!”. Íamos brincar para o Marco. Havia água que todos nós adorávamos para chapinhar na base de apoio, e encarapitarmo-nos para abrir a torneira e dar de beber às abelhas. Estas coitadas sem perceberem que era para seu bem, lá nos brindavam com uma ferroada de vez em quando, espoletando o inevitável choro e a corrida para casa, geralmente sem consequências a assinalar.

Mais tarde já era eu a transportar a dita quarta, fosse para a nossa casa fosse para a casa da tia, na verdade a minha segunda casa. Como soía dizer: “Vou à minha casa da minha tia”.

Na modernidade de há 60 anos, as imagens dos casalinhos de namorados debaixo dos caramanchões dos poços das hortas, renovavam-se aqui, desfrutando a extraordinária paisagem desde a várzea, pela Igreja Nova, até à Fóia, sem poço nem sombras.

Hoje, enfim, está diferente e, como tantos outros monumentos deste Portugal antigo, perdeu a letra maiúscula e resiste envergonhado pela falta de atenção.

 

Carlos eNe

Praia de Buarcos

Setembro 2023



Para Além das Imagens - 4

A Fonte das Mentiras 

 



A Câmara Municipal de Aljezur (CMA) na sua página na internet www.CM-Aljezur.pt disponibiliza pelo caminho “Visitar/Descobrir Aljezur/Monumentos” uma lista de edificações que a CMA, (o pelouro cultural, passado ou actual), considera como pontos de interesse que poderão motivar visita dos munícipes ou de forasteiros.

A lista contempla referências algo díspares como o Castelo, Fortalezas e, com alguma surpresa, a Fonte das Mentiras. Esta fonte foi assim promovida a monumento, para o que recebeu um tratamento especial com uma roupagem a preceito(!) e um historial legendário que, para além de dar água a quem passa, ainda era suposto ter servido como abrigo/esconderijo da moura de Mareares que por ali franqueara a invasão do castelo através dum hipotético túnel, ou ainda como saída de emergência que garantiria a fuga da guarnição moura em caso de ataque ou cerco (embora não se tenham descoberto quaisquer vestígios)! Mais uma lenda.

A promoção da Fonte deu-lhe o direito a registo no Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA) com o número 00034913 onde está descrita como

Fonte de mergulho, de hipotética origem medieval, com estrutura em alvenaria, insossa e argamassada, de xisto, parcialmente embebida no terreno, com caixa de água de planta rectangular e cobertura em abóbada de canhão. Fachada principal rasgada por vão em arco de asa de cesto, de perfil irregular, sobre robustos pés direitos, e remate em frontão curvo de pontas rectas; interiormente, tecto em abóbada de berço e tanque rectangular ocupando todo o interior, desnivelado.”

Uma notinha à margem: como é usual em muitas terras e em muitos monumentos esta fonte também apresenta os indícios duma certa falta de atenção, permitindo a sua ornamentação natural com vegetação característica do lugar, habitualmente designada por “erva” e “silvas”.

Em tempo da minha pré-adolescência já a lenda da Fonte das Mentiras me tinha chegado através das tias e dos avós, ajudando-me a imaginar assaltos ao Castelo, sempre bem-sucedidos pelos conquistadores de D. Paio. Tomada a fortaleza de surpresa, como convinha, desciam os guerreiros em raboleta pela encosta, tropeçando e arranhando-se em moitas e silvas para virem emboscar os mouros fugitivos na Fonte das Mentiras, que por ali procuravam escapar à chacina no Degoladoiro.

Nesses tempos (no século passado, já(!)), esta fonte constituía para nós, miúdos, um grande mistério. Espreitava-se lá para dentro afastando as teias de aranha e mal se via. Sim, tinha água e… lagartixas. Estas não nos afectavam nada, habituados que estávamos a brincar com elas, mas a água parecia escura, as paredes interiores muito húmidas, e já não tinha o habitual cocharro. Dizia o meu avô que quem ainda bebia naquela fonte era o gaseado do Viva-à-Rússia, protegido por forças misteriosas nada lhe fazia mal, mas que tivéssemos cuidado pois ele era uma espécie de dono da fonte e não nos queria por lá. É claro que mais tarde percebi que o aviso era mais para evitar que nas nossas brincadeiras entrássemos lá para dentro pois a água tinha uma fundura que nós avaliávamos mal.

Mas nas nossas brincadeiras tínhamos sempre alternativas para uma sede d’água: fosse na ribeira que naquele tempo corria com águas cristalinas, fosse contornando a encosta e ir visitar a Fonte do Vale Palheiro, essa sim, de águas “milagrosas” que matavam a sede e faziam bem aos dentes, e ainda eram remédio recomendado para as dores de barriga!

 Carlos eNe

Praia de Buarcos

Setembro 2023




Para Além das Imagens - 3

 

Lavar com a vila em fundo


Eis mais um postal de Aljezur reflectindo um aspecto, uma perspectiva, uma actividade, uma época… Vista Parcial menciona, (mesmo muito parcial) e Ponte.

São três os conjuntos que se destacam neste postal; três elementos, três planos.

O primeiro, a ribeira e as lavadeiras. Em tempos anteriores à água canalizada não se pensava em lavadouro, claro, e era na ribeira que as mulheres (naquele tempo só as mulheres) lavavam a roupa, literalmente, assim como era nessas reuniões (sociais) que outra roupa também era chamada à barrela. Parlatório. As ceroulas do senhor doutor ou os lençóis das casas grandes eram geralmente a introdução ao noticiário social da vila, com particularidades para pequenos (ou grandes) comentários e até enxovalhos ou ainda uma praga ou outra. “São tão cheias de não me toques e dão-me pra lavar roupa desta!” ou então, “Dizem pr’aí que dormem separados, mas não é isso que os bragais contam!”, e terminando com um esconfique ou um raisapartam. Sim, era na ribeira que se difundiam as novidades e outros ditos, e que dali partiam para os quatro pontos cardeais. Este lavadouro natural servia sobretudo o pessoal do centro da vila. As mulheres do extremo norte desciam ao Açude ou à Ponte Pedra e as do cimo do Degoladouro e as do caminho do Castelo, iam lavar Lá-Por-Trás. As águas eram praticamente as mesmas e as práticas também. Mais novidade, menos novidade, as notícias eram lavadas com assabão azul e branco e levadas na esfregadeira até à mesa, seguindo pelos homens até à venda.

Em segundo plano a Ponte. Pequena e estreita hoje, mas naquele tempo era imponente, do ponto de vista arquitectónico e sobretudo da utilidade e do desenvolvimento.

Esta ponte é um orgulho da população desde a sua construção nos anos 40/50 do século XX. “Olha a ponte s’é bonita!”. É das mais belas da região e consta na lista de monumentos de Aljezur. Está registada na SIPA ( Sistema de Informação para o Património Arquitectónico) em www.monumentos.gov.pt/site/app_pagesuser/SIPA.aspx?id=35534

A ligação das duas margens da Ribeira permitia a continuidade da estrada e abria o caminho para o Norte, pela nova via que se melhorava com o alcatroamento. A placa colocada na curva anunciando Lisboa a 238 Km, levava a comentários e imaginações. Naquele tempo os quilómetros eram bastante mais compridos, muitas vezes medidos em tempo: “Daqui até Lisboa é um dia na camineta de Lagos.” A ponte liga os dois troços da Estrada Nacional 120, (desde Lagos a Alcácer), levando ao desuso dos portos de passagem a vau a seguir à Casa Sintra ou junto à Ponte-Pedra, embora só possível em tempos de poucas águas. A estrada necessitava da ponte para dar escoamento às viaturas que começavam a afluir à vila, a caminho de Lagos ou a caminho do Norte, sobretudo depois das cheias de 1947 terem levado a parceira medieval, embora esta não fosse a solução para a estrada que se preparava para ligar Aljezur à região a Norte.

É assim um monumento belo porque é útil, e é útil também por ser bela.

À esquerda uma parte da encosta do Castelo, declive acentuado a dificultar, quase inviabilizar, a construção. Mantém-se até hoje. Apenas atravessado a meia altura pelo chamado Caminho das Piteiras, e este ligando-se à parte baixa por uma ou duas íngremes veredas, somente para os mais destros. É uma parte da encosta nua de casario, que ajuda a destacar o Castelo e que assim se tem mantido até ao presente.

Em terceiro plano e em fundo, o casario do centro. Poucas casas da apropriadamente designada Rua da Ladeira, maioritariamente térreas, algumas com pequenas rampas para eliminar degraus, e aproveitadas como pequenos patamares para receber visitas à porta em tempo de frescura, desfrutando as vistas possíveis, e “controlando” quem sobe e quem desce. Desta ladeira saem algumas azinhagas que dão acesso às traseiras das casas, onde mal se distinguem os galinheiros e as cavalariças. Esta zona da vila é bastante antiga e, para contraste e com grande apreensão dos moradores, passou a ser usada por alguns carros e seus aventureiros condutores, como alternativa aos modernos impedimentos da Rua da Ponte-de-Pau.

No topo da Rua da Ladeira, um paredão com alguns alegretes floridos, desempenha o papel de Miradouro sobre a várzea e sobre a Igreja Nova, extenso horizonte. Deste ponto, algumas mães ou tias seguiam as suas crianças pela berma da estrada (ainda sem passeio) até à Escola, nos seus bibes brancos em viagem para o Conhecimento.

 Carlos eNe 

Praia de Buarcos, 2023

Para Além das Imagens - 2

Memórias a Preto-e-Branco

 


Mais um postal da mesma colecção e edição. Tem legenda identificando o Jardim Público e reservando-lhe lugar em primeiro plano. A máquina, fixada em cima da ponte, captou também um pouco da parte Norte, sendo bem claro o cerro do Forte e um punhado de casinhas escorrendo pela encosta abaixo, como é normal, (tradição?), dado a configuração dos cerros. Aqui o Forte não é diferente do Mosqueiro.

Mas o primeiro plano da fotografia é a grande parede de sustentação do jardim público e mais umas poucas casas molhadas pela ribeira. O jardim, coitado, de seu nome, tão pouco tem. Nem uma pessoa está, naquele momento, a beneficiar directamente do espaço. Sempre foi um local de pouca frequência, nada convidativo; os canteiros com flores, tão escassos aqueles e escassas estas, não mereceriam o nome de “alegretes”, e não mereceram ficar na imagem. Salva-se o arvoredo, tílias creio, que lhe dão uma frondosa sombra que os carros também aproveitam já que a sua calçada convida ao estacionamento.

E era nele, também sobre a calçada, que a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian estacionava e preparava o atendimento e aconselhamento das leituras, a grandes e pequenos. Nessa altura sempre apareciam mais pessoas por ali, fosse pela curiosidade que o acontecimento gerava numa terra onde tão pouca coisa acontecia, fosse mesmo por interesse pelos livros, tão raros na altura e de aquisição difícil. Os leitores formavam uma bicha para entrar na carrinha Citröen cinzenta e de chapa ondulada para entregar os livros do último empréstimo e renovar ou requisitar nova leitura.

A grande parede, escura e suja com algumas saídas de esgoto a meia altura, dos tempos em que eram raríssimas as casas com instalações sanitárias, pré-saneamento, encimada por uma balaustrada que segura os passeantes curiosos no debruço sobre a ribeira, naquele tempo ainda com água, pouca. A vegetação é do tipo atabuas, que nós, os moços, apanhávamos para brincar, como se armas fossem, nas nossas explorações debaixo da ponte na procura das galinholas, ou a caminho dos pegos, mais abaixo, para a devida abanhadela quando a canícula convidava.

Algumas das casas da rua da Ponte de Pau cujas traseiras davam directamente para a ribeira, mantinham junto à água pequenos patamares que pareciam servir (e ter servido) de cais. Um ou outro moço daquele tempo, lembro-me de dois, dispunham de pequenas chatas que lhes permitiam curtas navegações no reduzido espaço do curso de água, podendo levar um companheiro, coisa que lhes terá ficado no sangue de ascendência marítima. Marítimos da Fortaleza, mas que ali, no exíguo mar onde podiam “navegar”, os grandes peixes não eram mais do que uns bordalinhos e umas pardelhas. Nessas chatinhas se podia descer a ribeira e passá-las à mão onde as passadeiras e a pouca profundidade o requeriam para se chegar ao Pego do Pequeno, e aí sim, se davam uns belos mergulhos. A gente, éramos um pequeno bando de moços ainda na escola primária, que nas tardes do Verão quente, às vezes tão quentes que o alcatrão da estrada até levantava borrefas, nos refrescávamos antes do regresso a casa.

Estas nossas aventuras não se vislumbravam no postal, embora pudesse ser uma boa imagem publicitária, divulgando as boas condições que a Natureza oferecia à rapaziada da vila daqueles tempos e, naturalmente, extensiva aos que nos visitassem. Se resistíssemos ao banho nos grandes pegos, caminhávamos pela margem direita para observarmos os cágados e, ao mesmo tempo, roer um marmelo ou uma gamboa, saltávamos o açude e íamos mergulhar no fundão da Ponte Pedra, e bronzear na prainha de fina areia.

A balaustrada remata a parte de cima de todo o paredão, e continua alguns metros para lá do jardim, fechando inclusivamente o antigo acesso à ponte medieval, derrubada na grande cheia de Março de 1947, sendo ainda visível o maciço de apoio da extremidade na margem esquerda da ribeira. Esta já se assumia aqui como a Ribeira de Aljezur, engrossando o caudal na confluência dos riachos das Cercas (da Serra e da Cruz) e das Alfambras, mesmo a montante da Ponte (ainda nova na altura).

Carlos eNe

Praia de Buarcos

2023


Para Além das Imagens - 1

Postais de Aljezur -1 


 

Está aqui mesmo à minha frente, sobre a mesa de trabalho, reacendendo as memórias que a imagem inspira. É um postal a preto-e-branco e bem poderia ter sido o resultado do olhar que o senhor Furtado costumava deitar à nossa vila através da sua objectiva. A autoria perdeu-se, mas a impressão regista o momento e o tempo para a posteridade. Regista em duas linhas a legenda que identifica a Parte Norte da Aljezur. Ignoro em quantas partes foi dividida a vila, mas esta é de facto, a “Parte Norte”.

O fotógrafo posicionou-se no adro da Igreja Nova e captou esse ângulo, limitado à esquerda pela estrada (da Igreja Nova), visível quase toda, e fixa a encosta virada a Nascente (toda a vila está virada a Nascente) desde a zona do Cemitério Velho pelas Cabeças acima, até a colina descair para os lados da Ponte-Pedra e mais vila não haver. Captou e registou vida nessa estrada: duas pessoas, indistintas, uma a pé outra de burro, um quadro típico e tão frequente até aos anos 70. Outro burro ainda, desligado do “movimento” e do seu parceiro trabalhando, pasta no restolho, abaixo das únicas casas à direita (uma a do senhor Valentim, a outra, já lá não chega a minha memória). A luminária montada na primeira casa situa a imagem num tempo posterior à chegada da luz eléctrica (a Maio de 1963).

A vila impõe-se na fotografia, no plano de fundo embora sendo o motivo principal, com as suas fiadas de casinhas distribuídas pelos altos e baixos dos arruamentos, desde as margens da ribeira, pela encosta acima.

Não chega a incluir o Castelo que marca o centro da vila, mas destacam-se alguns elementos: o Cemitério Velho no topo da colina, com o seu típico frontispício ornamentado com incrustações de caveiras e tíbias afirmando a sua inegável importância no seu tempo, impressionando de forma algo assustadora a pequenada que lá acorria para as brincadeiras. Logo a seguir, a Casa Grande ou Casa da Velha Senhora que se impõe pela sua volumetria: é como se fosse uma grande parede por onde o olhar já não passa; mais para a direita está a Igreja da Misericórdia, e mal se distingue a Casa Verde, na rampa de João de Deus (mas mais conhecida como a Ladeira da Misericórdia) e que marca o início da colina do Forte. Esta Casa Verde é umas das poucas grandes casas que se evidenciam não apenas pela imponência, mas, e sobretudo, pelo bom gosto da sua distinta arquitectura.

Mas detenhamo-nos na Casa Grande. Dois pisos elevados, seis janelas na fachada, uma construção que, não tendo nada que ver com a traça habitual (tradicional?) das construções da vila, — também nada ficou a dever à beleza arquitectónica, — como se pode perceber na mancha do casario, mas que se levanta recortada no horizonte, branca e sem barras, sem qualquer enfeite nem efeito outro que não a sua imposição grandiosa. Será sempre um casarão… feio.

Nasceu encostada à casa senhorial anterior, menos exuberante, e para ambas impôs a edilidade, quiçá por simpatia como os proprietários, o traçado de uma nova rua, para servir as duas únicas portas. Não tinham número de polícia nem outra qualquer identificação, nem era preciso: para a distribuição de correspondência bastava o nome do destinatário, pois o carteiro conhecia toda a gente. Uma rua nova que, por falta de imaginação camarária, veio a chamar-se exactamente de Rua Nova. Mas podia chamar-se Rua do Vento, pois todos os dias era dia de bezaranha.

Os senhores que moravam na Casa Grande eram, família abastada, claro, rica, como era a riqueza daqueles tempos: várias casas na vila, terras de agricultura e quarelas que arrendavam e lhes proporcionavam os cereais necessários ao consumo da casa, e ainda outras terras para pastagem das várias cabeças de gado que também possuíam. Além disso, extensos montados “lá p’rá Serra” donde lhes vinha o grande proveito da venda da cortiça. O senhor da casa registava-se com a profissão de “proprietário”.

A casa senhorial anterior foi-se degradando com a desocupação e, após uma ligeira adaptação que permitiu separar duas áreas de habitação, nela foram residir, de favor, duas famílias de compadres e afilhados da Casa Grande.

Na parte do primeiro andar, morávamos nós; e lá vivemos durante uns 15 anos, ou talvez mais. Tinha duas janelas com vista para a várzea que, em tempo de invernia, permitia ver as cheias que a inundavam durante dias, com águas amareladas, curioso fenómeno que na altura eu não compreendia. Tinta que só pintava a ribeira e não dava para pincelar no papel.

Mas o que eu vejo para lá da simples imagem é algo que transcende as duas dimensões da estampa. Assaltam-me as minhas memórias, sobretudo as da idade mais tenra, dos tempos em que bastava saber-se andar e já se explorava a rua, embora sempre ao alcance do chamamento da mãe ou da tia.

Aquela rua era o meu reino e a varanda da nossa entrada, no topo de uma escadaria, era o meu castelo. Às vezes lá se desenrolavam algumas “lutas”; eu defendendo a minha posição, enquanto que um ou outro que se constituíam como assaltantes, tentavam invadir a minha fortaleza. A escada era perigosa para esta brincadeira e às vezes lá acontecia algum mais descuidado “descer” raboleta.

Éramos uns poucos de miúdos naquela zona, uns na curva da rua, outros na rua de baixo, outros mais ao lado, descendo para o marco da água ou subindo para lá do Cemitério Velho. Este, já abandonado há muito, era o nosso campo da bola, bola de trapos pois está claro, já que a dita de cautechumbo, da colecção dos bonecos, era só para pés maiores que os nossos. Mas ainda bem, pois quando ela “fugia” das “quatro linhas”, era mais fácil apanhá-la antes que rebolasse até à ribeira.

Estes pensamentos ocorreram-me em frente do postalinho que, em tempos do meu afastamento para outras paragens menos algarvias, alguém me mandou para matar as saudades da terra.

Carlos eNe

2023


domingo, novembro 27, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (11)

 



LUÍSA - RAINHA DO VIDIGAL

“In nómine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti.” — Era o padre a iniciar ritual, provocando em uníssono um grande “Amen”.

Esta parte inicial, até o Zé a percebia, desde criança, mas quanto à continuação, apanhava uma palavra aqui, outra ali, mas sem perceber o significado. Por que cargas d’água é que haveriam as missas de ser celebradas em latim, se o povo falava era o português. Até o padre tinha de ler por aquele livro grande, pois se não tinha ninguém com quem falar aquela língua, já morta como se dizia, como é que ele haveria de a praticar. Era só pregação! Mas o sermão, esse era em bom algraveo, percebido por todos! “Irmãos, podeis dar, então dai aos necessitados e dai à vossa Igreja, porque quem dá aos pobres…”.

“Dominus vobiscum”…

“Ite, missa est.” — O padre anunciava o fim do santo sacrifício. Quem conhecia o ritual murmurava um “Deo grátias”.

Terminava a missa, o que se percebia pelo farfalhar das roupas e pelo ruído dos passos. As pessoas encaminhavam-se para a porta. Os poucos homens foram os primeiros a sair, mas Zé manteve-se até ela passar. Ela mandou-lhe um olhar de cumprimento ou de desafio, ou de convite, ele que lhe desse o sentido que quisesse, mas ele respondeu-lhe com um picar de olho. Já no adro, ela despediu-se das amigas e esperou por ele. Um “Olá” mútuo foi mais do que suficiente e, como se tivesse sido combinado, dirigiram-se para a lateral do edifício onde estavam os animais.

Ela procurou no alforge as sandálias do campo e trocou de calçado, e ele esperando ao lado dela, perguntou-lhe se ia já para casa, ela que sim e convidou-o a acompanhá-la.

— Não queres ir até lá? Faço uma frigimenta de chouriça com ovos.

— Ora aí está uma coisa qu’a mim me cai no goto! Atão vou contigo. Vá que t’ajudo a montar.

— N’é preciso. — Com a leveza do seu corpo pequeno e a agilidade que a caracterizava, deu um balanço e saltou; com meia volta no ar ficou sentada de lado na albarda. — Olha, já estou.

— Segura-te ao cabeço da albarda, que eu levo a areata.

O caminho fizeram-no devagar, sem pressas. Era cedo. A conversa fluía entre eles. Ela, que tomava conta da casa e do irmão desde que os pais sucumbiram ao febrão das sezões que apanharam no Alentejo quando foram para as mondas. Ela e o irmão escaparam porque tinham ficado com familiares em Maria Vinagre.

— E tu? Os teus pais? A tua mãe já sei que é quem toma conta de ti, mas e o pai? Marujo, não era?

— Sim, era marujo. Andava numa traineira da Fortaleza. Um dia um par de roazes prendeu-se nas redes quando fizeram o cerco e ele saiu na chata para tentar salvar a faina da sardinha. Dizem que os roazes viraram a chata e ele ficou debaixo e deve ter levado uma pancada na cabeça. Quando o tiraram já estava sem vida. Eu era ainda pequeno. Daí, fiquei com esta alcunha de Zé Marujo, mas é só alcunha, o meu apelido e Santos. Sou José Alberto dos Santos.

— Pois é claro! Marujo não é nome de ninguém. Bem, sei lá, se calhar até podia ser, não achas.

Chegaram ao monte e o Zé dispôs-se a desalbardar o burro e prendê-lo na courela do pasto por detrás da casa.

— Sim, obrigada. Eu vou mudar de roupa. — E sentindo que lhe provocara um certo ar matreiro, antecipou-se ela. — Não te atrevas a ir lá a casa antes de eu aparecer cá fora, hem? Nem penses!

— Tá bem, fica descansada. O qu’é que pensas?

Pouco depois já estavam à mesa com a frigimenta na frente. Pão, vinho e boa disposição.

— O Manel? Inda o vi.

— O irmão foi de manhã cedo à pesca para a Carriagem com o vizinho ali de cima. Só vêm lá para a noitinha e, como é costume, não há-de trazer peixe nenhum!

Conversaram. Iam-se conhecendo, ambos entusiasmados com a presença do outro, sentindo-se confortáveis, tranquilos. Ela ruborizada e abanando-se com a mão, sugeriu irem-se sentar no poial à porta e apanharem um pouco de ar mais fresco, e comerem lá fora as laranjas. E foram.

— Queres que experimente outra vez fazer-te os óculos? — Zé abrindo a sua faquinha de bolso.

— Claro que não, aquilo foi apenas uma brincadeira.

A ocasião e as suas posições ao lado um do outro propiciavam inevitavelmente alguns toques com as mãos. Ela limpou as dele com uma rodilha molhada e seguraram-se mutuamente durante uns segundos.

— Tens as mãos frias. — Comentou ela.

— Mas tenho o coração quente. Não é assim que se diz? — Ele agora segurando as dela. — Mas as tuas estão quentinhas. No teu caso é o calor do teu coração, ou estou enganado?

— ‘Tás-me a fazer corar! Sei lá se é o calor do meu coração! Ele está dentro do meu peito, e lá há calor suficiente para ele bater.

— E esse calor não transborda, como o meu?

Mantinham-se de mãos nas mãos. Ele apertou-as ligeiramente e ela correspondeu com idêntico aperto.

— Gosto de ‘tar aqui contigo. Aqui ao pé de ti. Fazes-me sentir bem. E tu, o que sentes?

— Fazes-me corar outra vez. — Hesitante, baixando os olhos. — Sim, também gosto.

— Então gostamos os dois. — E arriscou. — Gostamos um do outro, é?

Bêque-me…

Bêque-me quê? Atão a gente acerta-se. — O qu’é que dizes? Vá, diz lá!

— Mas digo o quê? Se a gente se acerta? Pode ser…

— Pode ser, ou queres mesmo? — Zé aproximando-se, tentando dar-lhe um beijo na face.

— Sim... Também quero. — Ela permitiu o beijo e retribuiu beijando a face dele.

Para ela já chegava por hoje e disse-lhe isso. Que se fosse já. Tinha a cabeça numa grande baralhação e precisava de pensar. Ele concordou, mas puxando-a mais para si, beijou-lhe os lábios. Implorou só mais um bocadinho e trocaram outro beijo. A hora da partida ia-se alongando na tarde. Tanto para um como para o outro a novidade dos beijos era maravilhosa. Ele sempre segurando as mãos dela fê-la pôr-se de pé. Ficaram frente a frente e beijaram-se de novo e desta vez com um abraço, primeiro tímido, mas depois apertado e desinibido. Excitados os dois, ela defendeu-se, afastando-se murmurou-lhe que deviam ficar por ali.

— Só mais um abraço para a despedida. — Pediu ele.

E com esse derradeiro abraço se despediram. Combinaram que ela o visitaria na oficina já na Segunda-feira, e depois combinavam como se veriam. Ele encostou-lhe a boca ao ouvido e disse-lhe baixinho “Inda há-des ser a m’nha rainha!”

 


sábado, outubro 22, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (10)

 

10. Agostinho – Fuzileiro


Aquele Domingo tinha sido a sua despedida da vida civil. A caminhada até à Avenida de Roma e o regresso servira de verdadeiro tranquilizante e cedo adormeceu, confiante no hábito madrugador da tia.

Na manhã seguinte, ou melhor, na madrugada seguinte, levantou-se às seis horas, ainda antes da tia o acordar. Despachou-se depressa, higiene tratada e barba feita, pouca barba, mas enfim, a cara foi devidamente escanhoada. Agarrou o seu pequeno saco com o indispensável e saiu. Antes de começar a descer a escada voltou atrás para um beijo à tia.

Apanhou o eléctrico, quase vazio àquela hora. Já sabia que aquela carreira ia passar na Rua da Conceição, onde devia sair e caminhar para a Doca da Marinha. Era perto e em dez minutos chegou ao portão. Não viu campainha, abanou-o para anunciar a sua presença. Apareceu-lhe um marinheiro armado, com espingarda em bandoleira e baioneta no cinturão, a perguntar-lhe: “O que é que queres a esta hora, pá?”

Agostinho, um pouco intimidado, gaguejando lá explicou que se vinha apresentar como voluntário para a Marinha.

O marinheiro, percebendo a hesitação e a timidez dele, quis aproveitar para se divertir, pois ali não era ele a autoridade? portanto o outro teria que dançar com a sua música.

— E quem te disse para vires para aqui? A apresentação é no Alfeite, não é o que diz a tua guia? Ora mostra lá.

— Sim. Mas também me disseram que aqui eu posso apanhar a vedeta H para atravessar o rio, ou não?

Entretanto um Cabo saiu da casa-da-guarda e atalhou para o marinheiro.

— Estás armado em quê, pá? Então não te disseram que iam aparecer alguns candidatos à recruta para apanharem a vedeta? Verifica a guia e deixa-te de merdas.

— OK. — E para o Agostinho, entre dentes. — Tás com sorte. Entra lá e vai para além, para o pé daquele banco. É de lá que parte a vedeta.

Agostinho lá foi e sentou-se no banco grande, azul. Esteve sozinho durante muito pouco tempo, outros candidatos começaram a chegar.

Às sete e vinte, aproximou-se um pequeno barco cujo nome não conseguiu ler, escondido que estava por um pneu pendurado à proa.

— Este barco é que é a vedeta? — Perguntou um, mal disfarçando o nervosismo.

— Deve ser, não aparece mais nenhum. — Avançou outro, de cabelo ruivo.

Por fim o tipo das manobras saltou para o cais para amarrar o cabo. Ao vê-los exclamou: — Vá, toca para bordo e acomodem-se, que isto hoje é capaz de encher.

Recolheu-se e foi para a cabine. Soaram três toques na sirene e ele gritou: — Vamos sair às sete e meia. Quem não estiver fica em terra.

Do portão surgiu mais um grupinho de rapazes apressando o passo. Afinal a vedeta hoje não ia encher, mas quase! Novo toque da sirene e soltou a amarra. Partiram. O das manobras gritou: — Esta embarcação é um verdadeiro calhordas e com a maré a vazar vamos demorar aí uns três quartos de hora. E aviso já: ninguém vai chamar pelo gregório aqui dentro do meu barco. Se almarearem vão para a popa vomitar pela borda fora, olha ó caraças!

Era cedo e estava fresco. Os mais inseguros instalaram-se perto das janelas. Abriram-nas para entrar o ar, mas juntamente com o ar, entravam imensos salpicos que por vezes eram uma autêntica chuveirada que molhava mais do que aliviavam o enjoo, embora o rio estivesse calmo. A viagem decorreu sem incidentes. Durante parte do percurso tiveram a companhia de alguns golfinhos que pareciam disputar uma corrida com a vedeta. Demoraram mesmo os três quartos de hora anunciados.

Quando atracaram foram encaminhados para o Grupo Número 2 onde estavam preparadas três mesas de recepção, cada uma com um cabo escriturário a fazer o atendimento que constava de um pequeno questionário, findo o qual eram encaminhados para outra fila onde esperavam pela inspecção médica: uma breve auscultação, observação da planta dos pés e das partes íntimas e um elementar teste à visão. Finalmente tinham de cumprir os mínimos de desempenho físico numa corrida de aproximadamente 100 metros e avaliar a capacidade de recuperação. Obtida a “aprovação” nesta inspecção, passavam então à recolha de sangue para análise.

Havia perto duma centena de candidatos, voluntários, com elevada taxa de aprovação. Este processo levou muito tempo e depressa se esgotou a manhã. Foi atribuído a cada um uma guia com a sua identificação e um número. O almoço foi servido num grande refeitório. Antes de comerem, o mesmo cabo instruiu que havia autocarros à espera deles. Tinham o destino indicado num papel no vidro da frente, Vila Franca de Xira e Escola de Fuzileiros em Vale de Zebro.

— Alguém tem dúvidas? — Pausa. — Muito bem!

O grupo do Agostinho chegou à Escola de Fuzileiros pelas quatro da tarde onde os esperava a praxe do corte de cabelo modelo recruta, a habitual carecada. Após uma passagem pela arrecadação para receberem toda a palamenta, foram encaminhados para a caserna onde foram distribuídos pelos respectivos lugares.

— Amanhã apresentem-se na parada às sete e meia da manhã. — Instruiu o cabo. — A caserna tem de ficar arrumada, com todas as camas bem feitas. Bem feitas ouviram? As mãezinhas não vêm cá arrumar o quartinho dos meninos!!! Ok?

— Hoje vão jantar às 19 horas no refeitório do rés-do-chão, ainda sem formatura nem lugar marcado. Recolhem aqui até às 21 horas e pelas 22 será apagada a luz e é o silêncio.

A vida de fuzileiro começava assim, com dureza. Nas primeiras duas semanas não havia autorização para sair. Em boa verdade, nem apetecia: os dias eram cansativos com tanta actividade. Era a ginástica, era a aplicação militar, eram as operações nocturnas. A exigência era sobretudo física, sempre pondo à prova a resistência. Na segunda semana já houve eliminações por incapacidade.

Finalmente, na sexta-feira durante o almoço, o sargento da instrução informou que quem quisesse ir de fim de semana podia pedir um “passaporte” ao comandante do seu pelotão e apanhar o autocarro para Cacilhas ou para o Barreiro que saíam às quatro e meia da tarde.

Agostinho foi dos primeiros a chegar junto do comandante do seu pelotão. Com o dito passaporte para justificar à PM ou à PA se fosse interceptado, envergou a sua farda de sair, a precisar de um arranjo, poliu as botas, e foi instalar-se no autocarro. Estava ansioso. Não tinha conseguido telefonar aos tios e muito menos à Vitoriana.

 

 

CASAS NO FORTE - Folhetim (9)

 

9. Paris, Paris!

 

Ia adiantada a Primavera em Paris naquele ano de 1994; a canícula já batia nos 27 e podiam-se ver alguns franceses mais acalorados a tomarem banhos de sol pelos parques da cidade, com destaque para os Jardins das Tulherias e do Luxemburgo, ou ainda nas margens do Sena.

No seu intervalo para almoçar, Francisco juntara-se ao seu amigo Édouard Henri na esplanada do Café des Phares, na Praça da Bastilha. Debicavam sem pressa as salades niçoises, enquanto discutiam o trabalho sobre a língua portuguesa que Édouard preparava para a apresentação na aula de Português que frequentava na Sorbonne.

Estava animada a conversa quando tocou o telemóvel de Francisco. Retirou-o da bolsa de cintura. Era a Alice.

— Alô querida Alice! Ça va?

— Alô Chico, estou em crise. Preciso da tua ajuda para um problema da minha amiga de Lisboa, a Teresa. Estamos junto à Nôtre Damme e roubaram-lhe a carteira com os documentos; lembrei-me que talvez tu…

— Ok! Eu estou no Café des Phares, na Bastilha e ainda demoro uns minutos. E se vocês viessem até cá? Tomaríamos um refresco. Apanhem um táxi, d’accord?

Desligou com um à bientôt e voltou a dar atenção a Édou. Comentou o texto, a descendência do Latim, como o Francês, alguns vocábulos semelhantes e algumas declinações verbais. Recomendou que não deixasse de referir o Galego e o Galaico-Português. Não era uma especialidade sua, mas no seu curso ainda teve de se confrontar com o Latim em que, afinal, até fora muito bom aluno, e adorava a linguística.

— Acho que ficará melhor se desenvolveres um pouco mais estas questões — e apontou as frases já sublinhadas — e se incluíres um ou outro poema do Cancioneiro de Garcia de Resende, do século XVI, ou de três séculos antes, uma das Cantigas de Amigo de D. Dinis? “Ai Deus, e u é?”

— Achas que ficará bem? Os outros colegas vão incidir mais sobre Camões: a biografia, a lírica, os Lusíadas.

— Então e tu avanças com um estudo anterior ao Renascimento, — aconselhou Chico. — Acabas por apresentar uma língua bastante diferente da de Camões e, por maioria de razão, da actual. É um desafio, n’est ce pas?

Et bien, se mais ninguém atacar este tema, ainda sou capaz de tirar uma boa nota!

— Claro! Sûrement si j'étais ton profe…

Édou arrumou os papéis e despediram-se com um “tchau”, quando as três raparigas se aproximaram. Francisco e a Alice beijaram-se à moda dos franceses, com três beijos.

— Esta é a minha amiga Maria Teresa, e a sua colega…

Enchanté! — Disse para a Maria Teresa, trocando dois beijos.

Em seguida olhou fixamente para a colega cujo nome tinha ficado em suspenso. Havia qualquer coisa de familiar naquela cara. Os olhos e o modo de olhar… Os óculos de sol e um penteado à Mireille Mathieu não lhe transformavam suficientemente o rosto, o ar. A comissura dos lábios, o nariz inconfundível, ligeiramente adunco… Mas que coincidência! A parte do seu cérebro que se ocupava das coisas antigas executava um varrimento de conteúdos à mais alta velocidade. Será caso?

— Peço desculpa, mas não entendi bem o seu nome.

— Então! É a Vi…

— Sim, Vi. Os amigos costumam tratar-me assim. Mas na verdade o meu nome é…

— Vitoriana! — Atalhou Francisco para surpresa delas. — Vi, Vivi, Vita apenas para alguns.

— Ah! Mas que graça! Afinal conhecem-se! — Exclamou a Maria Alice.

Vitoriana ainda mais surpreendida, retirou os óculos revelando os olhos lindos e as sobrancelhas bem delineadas: “Desculpe, mas não estou a reconhecê-lo. Ora ajude-me lá.”

— Claro! É a coisa mais natural, há tantos anos… é a barba, faz-me parecer muito diferente. — Francisco, saboreando o momento com imensa satisfação.

— Hum… Não, não estou a ver. — Sorria. Já lhe parecera, mas não queria arriscar, desejava mais pistas.

— Imagina-me assim, de cara limpa. Ou melhor, vê a foto no meu BI. — Retirou o cartão da carteira e mostrou-lho, tapando o nome.

Ela olhou para o cartão e começou a corar. Continuava a evidenciar esse rubor sempre que se sentia surpreendida ou apanhada em falta, desde a infância.

— Chico?! Não posso acreditar! — Murmurou. — És mesmo tu?! — Caíram nos braços um do outro e assim ficaram num demorado abraço, perante a surpresa das duas amigas.

— Oh! Chico, que felicidade! Aqui, num sítio tão distante! — Vitoriana, ainda tremendo e muito corada, iniciava uma explicação, mas ambos acabaram por a proferir ao mesmo tempo.

— Somos amigos de infância!

— Tantos anos sem saber nada de ti… estás linda, aliás, estás ainda mais bonita!

— Pára de me envergonhar, por qualquer coisa continuo a ficar vermelha.

— Oh! Que saudades! Temos muito que falar, que recordar... Mais tarde? — E voltando-se para a Alice, — qu'est-ce qu'il y a? Oh! Desculpem lá, é o hábito, então qual é a aflição?

— Como te disse, roubaram a carteira da Teresa.

— É grande o prejuízo?

— Algum dinheiro, mas isso é o menos. Grave é terem-lhe levado o Bilhete de Identidade e elas têm o regresso marcado para amanhã ao fim do dia.

— E cartões de crédito?

— Felizmente mantinha-os à parte, numa carteira sob a blusa. — Explicou a Teresa.

— Bem. Não deve ser difícil recuperar o BI. Estes carteiristas pretendem sobretudo valores, o mais provável é colocarem o que não lhes interessa num marco dos PTT.

Parou um pouco, tornando a fixar os olhos da Vitoriana, o que lhe provocou novo rubor. Anunciou que tinha de regressar à embaixada, que estava na sua hora do almoço e tinha compromissos de tarde. Iria fazer uns contactos para a Police Nationale. Pediu os elementos de identificação à Teresa.

— Dá-me todos os teus dados e o número do BI, se te lembrares. E uma fotografia é fundamental.

— Fotografia… como vou arranjar uma? Onde haverá um fotógrafo?

— Tens de ir a uma máquina PhotoMaton… em qualquer estação du Métro. — Ajudava a Maria Alice.

— Sairei da embaixada perto das cinco da tarde. Entrarei em contacto com a Alice para nos encontramos à noite. Podemos… — de novo o seu olhar preso na Vitoriana — jantar juntos?

Ela disse que sim com naturalidade, mas interiormente pensava até num grande e repetido sim, sim. E de novo corou.

As outras anuíram. Despediram-se com um a tout a l'heur, quer dizer, até logo!

 

Em Praia de Buarcos, 2022


domingo, agosto 07, 2022

CASAS NO FORTE - Folhetim (8)

 Zé Marujo - Carpinteiro e Abegão


“As ondas vão e vêm num eterno vaivém”. Era o que a avó lhe costumava dizer sempre que na conversa se falasse do mar. Dizia ela e ainda é o que se diz. Mas não, ele não tinha a mesma opinião, não era verdade. As ondas vêm, só vêm, não vão. Enrolam-se sempre na mesma direcção, ou seja, do mar para a terra, para as rochas, para as praias. Verdade até quando a maré vaza. E era nesta fase da maré vazia que José Alberto dos Santos, carpinteiro e abegão, com costela de pescador da Fortaleza que lhe influenciou a alcunha de Zé Marujo, instalado nas rochas perto da água, dava banho ao seu isco. Prendia uma pedrinha furada junto ao anzol para garantir um bom arremesso e fazê-lo afundar, pois sargos à tona d´água foi coisa que nunca vira. Iscava com minhoca da pedra que apanhava no laredo e que misturava com terra grossa. Segurava-as entre os dedos da mão esquerda para lhes enfiar o anzol com a direita. Era um petisco para o peixe, mas desta vez o pexinho tava bicoso, bicava com a ponta da beiçola e limpava o anzol sem se prender. Zé Marujo precisava de levar pelo menos um sargo ou uma dourada para o jantar, como prometera à mãe. Queria alternar às couves com toucinho. Mas as esperanças estavam a perder-se e o que ele previa era um chibato daqueles.

Resolvera ir à pesca para pensar na conversa que teria de ter com mestre Jacinto sobre a oficina. Assim que saíra da escola tinha ido aprender o mister da carpintaria e abegoaria com o mestre Jacinto e tornou-se o seu braço direito. Após o mestre ter tido aquele estúpido acidente que o deixara incapacitado, ele sozinho dava conta da oficina.

Dedicou-se com todo o afinco ao trabalho. Se fosse dele gostaria de modernizar o equipamento, comprar máquinas e um motor para mecanizar a serração e o aparelhamento da madeira. Mas a oficina não era sua…

Resolvera abordar o assunto com o mestre Jacinto.

Meste Jacinto, estando como está e com a sua idade, o que pensa fazer com a sua oficina?

— Não penso grande coisa. — Respondeu-lhe o patrão. — Quero é ficar sossegado, pois se já pouco posso fazer. Se aparecer alguém…

Ficaram-lhe no ouvido estas últimas palavras. O mestre Jacinto não se importaria de vender, mas o pior era o dinheiro. Nem sabia quanto e muito menos como o obter.

Fixava os olhos na bóia, mas o seu pensamento estava na oficina.

Zé mantinha o dedo indicador na sedela esticada à espera de sentir qualquer subtil esticanito antes da cana vergar. E se sentisse… puxava. Técnica do seu pai e que funcionava bem, mas não hoje, pois se os gajos nem picavam.

Para ele chegava, decidiu-se. Estava ali já há tempo de mais. Era assim, a sorte quando vem, nem sempre bafeja toda a gente, e muito menos por igual. Neste caso, a sorte não é como as ondas do mar. Vem e… não vem... Hoje não havia peixe no Penduradoiro de Baixo.

Arrumou os seus materiais no seirão. Queria aproveitar a maré baixa para ir ao laredo apanhar uns mexilhões, ou talvez algum polvinho distraído. Se não, seriam outra vez papas ao jantar.

Tocou a mulinha pelo areão abaixo e foi prendê-la numa pequena pedra em frente às Margaridas. Nas suas alpargatas de sola de corda, depressa caminhou pelas rochas rasteiras até onde as águas batiam. Por ali não andava mais ninguém. Com o peixeiro esgravatou uma pinha de mexilhões, e logo outra e mais outra. Que belos! Grandes e recheados! Num instante ficou com o seirão quase cheio, já bastavam. Ainda procurou numas frestas das rochas com o gancho do seu peixeiro, mas nem o trapinho branco os atraía nem os polvos estavam com disposição para o tacho. Não há peixe, não há polvo, mas vai haver uma arrozada de mexilhão que até já lhe fazia crescer água na boca. A sua mãe era uma artista na cozinha, tudo o que fazia lhe saía bem e então com uma copada daquele vinho que trouxe dos Vales em paga do conserto da janela. Regressou à praia e preparou a sua navalha para limpar as conchas. Era uma bela apanha.

Carregou o seirão num dos lados da gorpelha, prendeu o peixeiro no outro lado, junto à cana, e caminharam pela areia direito à ribeira do Monte Clérigo por mor da mula beber. O animal bebeu demoradamente e deixou de lhe cobiçar o barrilinho de barro.

A seguir marchou pela ribeira acima. Olhou a inclinação do sol, e pensou que chegaria à vila antes do fim do dia.

Não se enganara, mas já caía o sereno quando deixou a mula na cavalariça. A mãe assomou ao postigo e perguntou-lhe se trazia peixe para o jantar.

— Não ‘nha mãe trouxe mexilhões. Já estão raspados e prontos a saltar para o tacho do arroz.

Em pouco tempo já estava na mesa. A mãe ainda trabalhara na Casa Grande satisfazendo o fino paladar dos patrões e das muitas visitas, e por lá se manteve até à morte da senhora. Desde então remeteu-se à sua própria casa e, depois da morte do pai, dedicou-se completamente ao filho que ia agora nos seus vinte e dois. Ele cedo assumira o papel do homem da casa. Nada faltava. O rapaz era trabalhador e habilidoso.

Um dos filhos da Casa Grande, tenente do exército, intercedeu por ele e ficou isento do serviço militar alegando ser amparo de mãe, o que até era verdade.

Naquela noite, depois de despachada a arrozada de mexilhão, Zé Marujo partilhou com a mãe a sua ambição e a angústia que isso lhe fazia. Toda a tarde na rocha e no laredo não pensou noutra coisa. Fora à pesca para pensar e não concluiu nada.

— ‘Nha mãe, qu’é qu’eu faço? Não posso perder a oficina… E se for outra pessoa a comprar e eu ficar de fora?

— Amanhã é Segunda, é um bom dia para começar coisas. Fala com o meste Jacinto. Pergunta-lhe qual a ideia dele. Propõe-lhe pagares uma renda.

— Como se fosse uma courela onde um homem tem de largar a pele para pagar as meias!

— Mas é para começares, e depois logo vês! Quem sabe ele esteja de acordo. Não deixa de ser o dono e receberá uma paga, sem trabalhar. Tens de ser cauteloso, fazeres contas. Sabes quanto a casa cobra… oferece-lhe a terça parte.

Saiu e passou ainda na venda do Largo da Ponte e bebericou um copinho de aguardente. O Ti João preparava-se para fechar e já não estava ninguém para conversar. Era áspera a medronheira e arrepiou-se. O homem disse-lhe, como a inspirar-lhe confiança, que viera do Mourão, e que até o Presidente Carmona a tinha bebido aquando da eleição em Fevereiro, mas o Zé não estava disposto a repetir a dose. Despediu-se e pôs-se rua acima. Amanhã era Segunda-Feira, dia de começar coisas como dissera a mãe, e o Carmona não havia de perceber grande coisa destas bebidas dos alambiques da serra.