A Praia da Fortaleza
[Arrifana, 1965]
Mais uma vez venho falar de coisas antigas e de que me lembro vagamente, às vezes até muito vagamente, por causa do calendário. É o caso deste pequeno povoado; inicialmente de pescadores, mas que neste ano de 1965 já acalentava esperanças de cativar forasteiros com as suas areias e pedras rolantes (roladas) e a suave ondulação das águas da baía. A venda da aldeia disponibilizava já bebidas frescas, e quando a frequência aumentava oferecia outros produtos para atrair os forasteiros, e refiro-me à moreiazinha frita, uns percebinhos, ou até algum outro petisco preparado na hora ou por encomenda, incluindo a caldeirada ou a carniça de porco que o panito de cozedura caseira acompanhava.
As antigas cabanas de tábuas e braceja para os materiais da pesca, salpicadas pela encosta, deram lugar a pequenas casinhas de pedra e cal. A imagem da Arrifana, acima, tão frequentemente designada por Praia da Fortaleza, data do Verão de 1965, e fui eu próprio que a registei na minha rudimentar Kodak Instamatic 50, máquina de jovem amador e de poucas lecas, numa tarde soalheira de frequentes banhos para sossegar a caloraça. Nessa tarde bem quente, a calma que caía levou-me ao balcão da venda que na foto aparece com a placa dos CTT – Cabine Telefónica, indicador de tímido progresso, mas que, ainda assim, era o único meio de ligação deste cantinho ao mundo. Uma gasosa ou um pirolito eram os meus refrescos preferidos pois naquele tempo, naquele meu tempo, a cerveja era ainda uma coisa amarga que eu pouco apreciava.
Passaram quase 60 anos e no antigo povoado de pesadores tudo é tão diferente e é, para mim, já difícil identificar algumas localizações daquele tempo. O que resta da venda, dos caminhos de terra ziguezagueando, das estreitíssimas ruas que, em socalco, sustinham as pequenas casas?
Quem me dera uma ajuda para recordar, recordando comigo? O portinho de abrigo não existia nem tão pouco a estrada rasgada na rocha, ao Norte, desde a Fortaleza até à zona mais abrigada onde se fazia o desembarque. O pescado, muito ou pouco, subia às costas dos homens que o pescavam ou daqueles que se dispunham a ajudar, com magra compensação, galgando largas dezenas de degraus pela rocha acima. Manobra mais tarde substituída por um complicado sistema de teleférico de carga, o que reduzia o enorme esforço, e que transportava as caixas do peixe para o topo da rocha onde as pequenas carrinhas dos compradores, modernismo em substituição das bicicletas e motorizadas, esperavam a carga para partirem em demanda dos mercados da região ou para o revenderem de terra em terra, de porta em porta.
Hoje a encosta está bem preenchida com casas: casas de habitação, casas de veraneio, casas para rendimento, vista de mar a encarecer as propinas e as transacções. O mesmo se passa no topo da falésia, onde dantes se punham as algas a secar e os porquitos na engorda, levantam-se agora várias edificações e se iniciou um novo núcleo habitacional, hoje mesclando-se com empreendimentos turísticos e loteamentos, perdendo-se o uso inicial, e que se distribuem num desconexo “plano urbanístico”.
E quando vou passear até lá, delicia-me a extraordinária vista para Sul com a Pedra da Agulha como secular guardiã, essa sempre igual, sem ter tido que se adaptar à modernidade turística nem ao movimento das escolas de surf, tão desejadas e tão frequentadas que mal lhes chega a língua de areia, pouco restando para os amantes dum mergulho nas preguiçosas ondas. Transformou-se a Arrifana numa praia cada vez menos familiar.
Quanto à actividade piscatória, nestes tempos em que o Portinho ganhou bons acessos, requalificações, continua a dar que fazer à lota, com os desembarques devidamente fiscalizados, pois as transacções geram receitas para o Estado que é preciso acautelar para não afectar o OGE! Entretanto (Março de 1999) é fundada a Associação de Pescadores e são inventadas tradições que se afirmam anualmente. Eventos como a “Festa dos Pescadores da Arrifana” a par com o “Arrifana Sunset Fest”, trazem à aldeia e sobretudo à zona do porto de abrigo a grande animação importada e que o pessoal do barlavento, macambúzio, bem precisa para levantar a pestana e animar o cenho.
Estas festas, modernizadas e cheias de estilo, quero dizer “style”, com uma designação à moda dos “influencers” anglo-saxónicos tipo Sunset Fest, pois uma Festa de Pôr-do-Sol não é a mesma coisa e, eventualmente, não transmitiria o verdadeiro espírito da coisa, promovem a reunião no apertado espaço do Portinho de muitos pescadores(?), muitos alunos e instrutores de surf, enfim, de muita gente e se dá à festa a componente religiosa e pagã que as diversas estirpes requerem. O São Pedro que conforta os que se arriscam no mar, e as potentes aparelhagens para o indispensável consolo da “religião” do divertimento.
Tudo, claro, bem regado com um Sunset Tequila, ou com um Pink Paradise, ou com um Mosko Club ou, porque não, um Watermelon Margarita. Refrescantes e… desinibidores, para quando umas minis forem demasiado barlaventinas para a população das acrobacias na crista das ondas.
Independentemente dos cocktails em portinglês, pingam os €uros na caixa e… haja saúde, que a malta mais nova é assim mesmo, na prancha e na mesa, e a Arrifana ou Praia da Fortaleza, a responder ao apelo de modernidade que o século XXI impõe.
Carlos eNe
Praia de Buarcos, Dezembro 2023