- Prima Fatima, venha, venha! Passou por cá o Emanuel e deixou-lhe mais esta. É do Ibrahîm. Vamos lê-la?
-Oh! Primo Xico, inda bem, que já me tardavam as notícias desse sobrinho que anda lá por tão longe. Leia, leia!
Eu próprio estava a apaixonar-me pelos casos do Ibrahîm, sempre duma imaginação que até pareciam inventados... ou seriam mesmo? Abri o sobrescrito com cuidado, e também curioso, comecei, com o habitual
Querida Tia,
Passaram já alguns meses desde a minha última carta, mas como o amigo Emanuel lhe tem levado notícias minhas, espero que não tenha ficado muito preocupada.
Hoje gostava de partilhar consigo um achado, desencantado numa mala de porão que há muito não era aberta, em casa dos avós do meu amigo Matias. Veio-nos parar à mão uma pequena brochura, já sem capa, com meia dúzia de folhas ainda legíveis e outras tantas tão esburacadas pela traça, que não foi possível perceber o seu conteúdo.
Trata-se de uma pequena história de cordel, de autor anónimo, mas de cuja veracidade a avó não duvida. Eu e o Matias achamos que essa veracidade se deve mais ao facto de ter sido tantas vezes contada...
É assim um folhetim, em um episódio e dois títulos, publicado em edição única pela Tipografia da Graça, em Beja, no ano de 1946, e que se vendia na feira de Castro e na do Pereiro, e noutras por todo o Sul.
“Morte em Sant’Ana”
ou “O triste fim dos amores de Sebastião e Joanita”
Há quanto tempo ele andava por cá? Há quantos anos? Mais de 25!
Conhecia bem o povo e era capaz de reconstituir a imagem de cada uma das ruas, das suas embocaduras e desembocaduras, da praça, nem redonda nem comprida, mas um pouco de cada. Torta. Desenho sem arquitecto nem plano, sem régua nem esquadria. Geometria secular desenhada pelo tempo. Uma cerca de ontem, uma casa de hoje…
Sim, Sebastião caminhava mentalmente por essas ruas. Uma escuridão de breu (Porque diabo não acendiam os candeeiros?!) Imaginava-se de passada segura, adivinhando cada pedra sob os seus pés: pedras que pareciam casadas, lajedo, gastas pelas botifarras cardadas dos cívicos ou pelas ferraduras dos seus cavalos, que alpargatas não alisam pedra, nem o fazem os burros desferrados.
Revê a casa da Joanita, mais de meio metro recuada, criando um canto para o monturo, e outro onde a avó ficava horas esquecidas ao sol, na sua cadeirinha de buinho. Desvia-se do carro de mula do Gregório, invariavelmente repousando perto do palheiro, junto da sua tirante, a Boneca.
Revê tudo isso. A última casa da rua, com as barras desalinhadas e de azuis diferentes, uma mais escura que a outra, resultante da deficiente mistura das anilinas, e do olho daltónico do dono, que só lhe deixa perceber a natureza em tons de cinzento.
Porque lhe viriam à cabeça essas imagens coloridas, nesta medonha noite de lobos?
Num turbilhão. Saltando de rua em rua a uma velocidade impossível, estonteante. Que vertigem! Sente-se tonto, enjoado, como se viajasse de pé na lancha do Zé Pinto. Agora devagar... mais devagar… ainda mais devagar… até… parar.
Reconhecia, com toda a precisão, a pedra branca onde a sua cabeça descansava, sentindo-lhe o pequeno relevo na extremidade que encostava à outra pedra, mais amarelada Não, não era a pedra amarela, nem a branca. Era o colo da Joanita, da sua Joanita.
Sebastião já pensara nela hoje? Já revira a sua imagem? Já lhe beijara os lábios hoje, à chegada… à despedida…
— Por onde andam as tuas mãos? Joanita, que falta me fazes aqui… Segura a minha cabeça no teu colo. Sou eu, o teu Sebastião, não vês? Passa-me os dedos pelos cabelos, como gostavas… Joanita! Joanita! Joanita!
Não ouvia os seus gritos, Sebastião. Nem a sua boca se abria. A sua respiração era um sopro ruidoso, um ronco.
Sentia-se confuso.
Mas já há mais de vinte e cinco anos. Eso es. Há mais de vinte e cinco anos que o tinham levado para a Finca de las Cruces, para as vacas de Don Pablo. El ganado de Don Pablo. Sim, no lado de lá do Chança.
Acabara de o atravessar a vau, a carga à cabeça para não molhar o tabaco para o primo e a paletita de jamón serrano para unas copas.
“Joanita!!! Oh! como me arde o peito…”
Sebastião não percebia que a sua voz não ia além da sua mente. Os seus gritos não os ouvia Joanita… nem nenhuma outra pessoa naquele povo fantasma. Nem os lobos.
Ou só os lobos ouviriam, misteriosos cúmplices da desgraça, distantes, uivando solitários.
Um mastim farejava o bornal ao lado do corpo, com a alça ainda presa no pescoço de Sebastião. Rosnava. A trela esticada pelas mãos firmes do guarda Ferreira. O outro, o Marreiro, segurava ainda a caçadeira numa posição agressiva, arfando excitado, operacional.
Foram dois cartuchos, dois tiros. Ecoaram na noite e na noite ficaram. A aldeia continuou no seu sono, impassível, habituada que estava a barulhos nocturnos. Mais um tiro, ou menos um tiro, não constituía novidade.
Iam para uma noitada de veados e saíra-lhes o figurão pelo caminho. O dever é o dever, e uma autoridade é sempre uma autoridade, quer dizer, está sempre de serviço. E logo o contrabandista mor! O seu andar não deixava margem para dúvidas, a sua silhueta agigantava o Quadrilheiro. Perto da Rua Corrente que franqueava a entrada do povo a quem vinha dos lados de Espanha, àquela hora da madrugada, só poderia vir de um carrego. Os dois bornais pendendo nas ancas e o malote às costas. Um tiro certeiro e estava mais do que garantida a promoção. Ainda por cima durante as horas de descanso, dava direito a um louvor. E o jeito que faria, para limpar da folha o dia de prisão que a puta da sobrinha do sargento Pereira lhe aprontara, depois de o ter convidado para o meio do milho. A puta provocadora.
Tinha-lhe atirado com zagalote. Ao segundo tiro o Quadrilheiro emborcara de imediato, a cara no chão, uma poça de sangue.
“Busca!”, incitava o Ferreira, “Busca, Leão!”
O Leão rosnava, encostando o nariz ao bornal, esgravatando com a pata.
Marreiro avançou, virando o bornal com a coronha do fuzil, “É aqui, a carga!”, pensou. E para o companheiro, “Pequena, mas valiosa, hem! Puxa o raio do perro!”
Abriu o bornal e retirou o embrulho, em papel de cera. Com um tremor nas mãos rasgou rapidamente o papel, revelando uma dúzia de maços de cigarros Ducados.
Atirou-se sofregamente ao outro bornal e retirou um saco de pano com côdeas e um punhado de azeitonas e um pequeno piporro com um resto de vinho.
“O malote, Marreiro, o malote”, murmurou-lhe o companheiro.
Marreiro jogou-lhe os dedos e desatou rapidamente o atilho do malote. Enfiou-lhe as mãos, apalpando, na ânsia enorme de sentir neles a justificação do seu acto. Mas o que sentiu foi a sua promoção a fugir-lhe ao reconhecer, pelo tacto, uma pequena paleta de presunto.
“Porra! Porra!” gritou o Marreiro, com contenção, continuando em voz mais baixa, “Um contrabandista sem contrabando! Seguramente foi uma manobra de diversão. Quis distrair a guarda enquanto a carga se fez por outras veredas. Era muito esperto este filho da puta! Mas já lerpaste e agora acabou-se. De toda a maneira, era procurado pela gente, não é, Ferreira?”
Ferreira fez um encolher de ombros, desinteressado das motivações do Marreiro, pigarreou e murmurou um “por acaso…” quase inaudível.
Marreiro tinha de assumir o controlo dos acontecimentos. Era o mais antigo, e isso dava-lhe autoridade sobre o Ferreira. Podia não ser promovido, mas o Sargento havia de gostar do feito. Até apostava que lhe iria pagar uns copos no Virgílio. Sempre era um bom serviço prestado pela Secção e o Tenente também havia de ficar satisfeito.
“Vá Ferreira, vai lá buscar a burra e vamos levar o Quadrilheiro para o Posto.”
Com os seus movimentos um tanto destrambelhados, o Marreiro desviou o chapéu do homem, revelando-lhe uma cabeleira farta.
“Mas este gajo agora usava chinó!” Exclamou surpreendido. Toda a gente estava farta de saber que o Quadrilheiro era careca.
Olhou com mais atenção. “Oh Ferreira! Eh pá, oh Ferreira, olha-me lá este gajo, pá!”
“Mas o qu’é isto?! O que é que este homem andava a fazer por aqui a uma hora destas, pá?”
…
Algumas horas depois, ao raiar do sol, o Ti Gregório passava por ali com o seu carrinho e a sua Boneca, a caminho das hortas. Gostava de regar pela fresca da manhã.
A Boneca hesitou, mas com um toque da varinha avançou, embora se desviasse para não pisar o bornal.
O Ti Gregório desceu do carro em andamento e apanhou-o. Estava praticamente novo, apesar duma mancha escura, sem importância. Dava-lhe jeito. Quem o teria perdido? Apressou o passo e saltou para a traseira do carro.
“Sim senhor! Uma sacola em bom estado! Já dizia o meu avô que quem quer achar tem de sair cedo!”
E enfiando a alça, pôs o bornal a tiracolo.
*
Até aqui foi tudo o que pudemos ler, Tia. A avó do Matias já não se conseguiu lembrar do final da história, e só repetia, “Bendito e louvado, está este conto acabado. Bendito e louvado, está este conto acabado.”
Ah! É verdade, esta casa da avó do Matias é precisamente em Sant’Ana, a de Cambas é claro, terra de onde também toda a família é natural.
Receba um grande abraço deste seu sobrinho,
Ibrahîm
P.S.: Vou ficar por estas terras mais uns meses, e se o Ministério não se lembrar mais de mim, ficarei para sempre, levantando-me cedo para achar qualquer coisa…
sexta-feira, março 05, 2010
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2 comentários:
Vou dizer verdades,minhas verdades
ao contrário do que pede, no cimo.
Não é para contrariar, mas quero dizer a verdade desta carta que tanto diz e tanto conta.
É uma carta, como a confissão de alguém que nunca confessa.
É uma crónica, também
e traz, uma tristeza sentida
Um silêncio desmedido
de quem tudo diz,
sem dizer nada.
Aí tem uma espécie de verdade
que não deixa de ser verdade,
mas é diferente das outras verdades
Gostei!
Maria Luísa Adães
Obrigado por ter lido e comentado, Maria Luísa. Sim é uma crónica, mas uma crónica que conta um caso. Um caso de amor e morte e que revela quão precipitadas eram (e às vezes ainda o são) as intervenções da autoridade, ou ainda do risco que consiste em investir de autoridade alguém de carácter duvidoso. Gosto de usar este estilo de contar uma estória que alguém conta a alguém, e contá-la eu, em terceira ou quarta "mão"! O primo Ibrahîm é uma grande fonte destas estórias.
Não perca a próxima! É também uma história de amor sofido...
Deste que "sassina",
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