Esta vila tem sítios cuja designação, por mais natural que nos pareça a nós, que já nascemos com eles, não deixa de parecer estranha a muita gente, sobretudo às pessoas de fora. Acho que a toponímia é assim mesmo em quase toda a parte. Um desses sítios é o “Lá por trás”.
(Descida pelo antigo Hospital da Misericórdia)
Na nossa juventude esse era um dos locais onde as brincadeiras se abriam para horizontes infinitos. Com salpicos de sabores variados, já que as várias hortas eram generosas; lá passa a ribeira, convidando à banhoca, com bons pegos para mergulhar e a ponte de pau para saltar ou, como tanto gostávamos, os ramos dos chorões donde, gritando que nem Tarzan-Weissmuller, nos pendurávamos para as acrobacias no meio dos crocodilos da nossa imaginação.
Também de “Lá por trás” provinham os ataques ao Castelo, imitação imaginada da tomada da vila: os exércitos das tropas de Sant’Iago (nós, a moçada das Cabeças), reuniam acoitados nos desníveis do terreno para definir a estratégia e as hierarquias, e amarinhando a encosta — pelo meio dos favais ou da cevada – conforme a época — dando vivas a El-Rei, galgavam a muralha arruinada para destroçar a moirama à espadeirada com varas de marmeleiro e copos de cortiça, acabando por desfraldar um trapo vitorioso no alto da cisterna conquistada.
(Trepar para a conquista!)
Disse que já nascemos com estes sítios, efetivamente. Ainda pequenotes e sem saber andar, já as mães nos levavam quando iam lavar à ribeira: o mecinho num quadril, o caixote com a roupa e o sabão no outro. Cedo portanto aprendemos o caminho. E com meia dúzia de anos já nos aventurávamos pela ladeira do hospital abaixo, explorando para lá do velho portão que nos franqueava a entrada até ao moinho d´água, território do nosso amigo Zé, o Zé do Moinho. A distância das nossas casas até ao portão era insignificante, no entanto bastava para marcar a diferença entre ser da vila e ser do campo. Diferença essa que se vinha a notar mais na escola primária, onde os nossos amigos do campo chegavam já estafados, mais do trabalho e das madrugadas com o gado que da distância, uma vez que bem cedo, no tempo e na idade, tinham atribuídas tarefas como se adultos fossem. Era gostosa a partilha de experiências entre nós! Ir aos ninhos, armar aos pássaros, apanhar pintassilgos nos bebedouros da ribeira, técnica que depois aplicávamos na eira da Barrada, no meio dos roleiros, nos tempos da debulha do trigo. Ou então partir a caminho das Índias em barquinhos de casca de pinheiro que saíam do Açude e seguiam pela vala, contornando o monte do Forte, até à azenha do Zé do Moinho onde às vezes nos esperava uma bela fatia de pão caseiro com manteiga encarnada.
(A Fonte das Mentiras - Restaurada!)
À beira da ribeira, no sítio onde curvava, eram as pastagens em terras enlameadas, e charcos para a cultura de arroz. Pelos combros desses charcos corríamos alegremente e costumávamos procurar cobrinhas de água para nos entretermos com algumas maldades, ou até para levarmos para a escola e assustar as moças, e fazer a senhora Marcolina perder a cabeça e distribuir ponteiradas a torto e a direito.
Era também “Lá por trás”, a caminho do Vale Palheiro — outros pelos lados de S. Pedro —, que alguns anos mais tarde nos organizávamos para apanhar rosmaninho para as fogueiras dos santos populares ou para as festas da igreja. Aí, já mais espigadotes, formávamos ranchinhos de moços e moças, que rapidamente nos dispersávamos em pequenos grupos (ou mesmo pares, quando tal era possível), para a quatro mãos puxarmos as ramas das plantas e arrancá-las, o que frequentemente resultava (ou se provocava) em rebolanços pelo declive proporcionando inusitados e furtivos contactos. Dessa forma se cursavam os caminhos de iniciações várias, algumas delas conduzindo a uniões que se consolidaram ao longo dos anos.
(Lá por Trás... do castelo até ao Mar)
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